sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A Escrita de Si e do Outro – Joyce Johnson em "Missing Men – a memoir".




Texto de hoje da autora convidada: Joana Pupo



As memórias são uma forma maravilhosa porque as vidas reais são mais estranhas que a ficção. Suas histórias são mais confusas; elas não são modeladas e previsíveis como muita ficção.[1]
(Joyce Johnson)


Se a vida de Joyce Johnson não parece tão estranha e imprevisível, como ela afirma que são as vidas reais em oposição às fictícias e o quanto se poderia esperar de uma moça que, em meados da década de 50, deixa a casa dos pais com apenas dezenove anos, se envolve com o movimento Beat, um dos movimentos literários e artísticos de maior vanguarda norte-americanos, namora Kerouac, ícone daquela geração, é porque, desde muito cedo, Johnson tinha um projeto de vida: a escrita.

Missing Men – a memoir (2004), seu segundo livro de memórias, revela claramente a realização exemplar deste projeto. Escrito quando já está com aproximadamente setenta anos, portanto, de um lugar distante, em pelo menos, vinte anos das primeiras memórias de Minor Characters, nas quais, pela primeira vez, as mulheres do movimento Beat ganharam visibilidade, e com as quais ganhou o National Book Critics Award em 1983, Missing Men mantém o mesmo estilo poético da rememoração e a mesma lucidez enérgica ao representar as relações entre mulheres e homens, porém com o foco agora na construção de memórias mais pessoais e da 
sua família.

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Missing Men fala de ausências. Ausências masculinas na vida de Joyce Johnson e suas consequências para a construção de sua subjetividade. Mas nem por isso deixa de ser uma obra em que o lugar das mulheres não seja sensivelmente problematizado. Afinal, são memórias de como se construiu como mulher a partir de suas relações com os homens: o avô, o pai, os maridos. Porém, não menos importante a partir de sua relação com mãe, e a partir de todas as outras relações que as pessoas que lhe eram mais próximas tiveram também com outras pessoas ainda, em um jogo sem fim de reciprocidade nas autoconstituições de si

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Dedicado a Peter Pinchbeck, seu segundo marido, Missing Men é dividido em três partes. Na primeira, Samuel Rosenberg's Daughters, encontramos a história da família materna, desde a chegada do avô, poeta e intelectual judeu, cujo suicídio aos 37 anos, provoca a primeira e profunda ausência masculina na vida não só de sua mãe, mas da própria Joyce Johnson. Da ausência do avô, revertida em apagamento pela queima de seus poemas, pela substituição do sobrenome Rosenberg para Ross, Joyce herdará o talento literário e, ao tornar-se escritora, cumprirá este mandato geracional.

Ainda nesta primeira parte, conheceremos a segunda grande ausência na vida da autora: a morte de seu pai, David Glassman, aos 62 anos. Nesta passagem, ficamos sabendo que também a vinda da família dos Glassman para os EUA fora marcada por trágicos motivos e mais ausências masculinas: a morte de um irmão, pouco antes do Armistício, na França e a morte do avô paterno de ataque cardíaco em consequência do conhecimento da morte do filho. Sabemos também que o pai de Joyce crescera à sombra da glória deste irmão morto. E seguirá sendo sempre um personagem secundário, principalmente, em comparação com a influência exercida pela mãe de Joyce sobre ela durante a infância e adolescência.

A segunda parte, Red, White, and Black, narra a vida de Johnson, depois do fim da relação com Kerouac, e seu breve casamento com o pintor James Johnson, o qual Joyce viveu intensamente, mas que culminou no desfecho trágico da morte precoce do pintor em um acidente de motocicleta, tornando-se esta a terceira grande ausência em sua vida. Talvez minimizada apenas pela manutenção do sobrenome Johnson, do qual Joyce nunca abriu  mão.

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    A busca pelos … desígnios temáticos durante toda uma vida
                deveria ser, acredito, a verdadeira finalidade de uma autobiografia.[2] 
(NABOKOV, Vladimir)

A epígrafe de Nabokov, que abre a obra, nos indica que o que Joyce busca são as recorrências que nos constituem e que determinarão nossas escolhas ao longo da vida. E é preciso buscá-las em nossa história para que exista a possibilidade de reconciliação com nós mesmas. O que nos lembra da sugestão de Ricouer de que o verdadeiro trabalho da memória “não se limita à caça aos fatos, mas se dedica a explicar, a compreender, por meio de que engrenagens tudo aconteceu.” (RICOUER, 2003). É este trabalho de memória, de driblar o esquecimento dos pontos mais doloridos, que Johnson executa com coragem e lirismo, com rigor, mas simultaneamente com piedade. Com lucidez, mas com compaixão, realizando este trabalho sem desespero e com generosidade.

Seu olhar para os homens ausentes é compreensivo, quase materno, mas não é menor sua aceitação para com as mulheres da família, para com a avó, a mãe, as tias e suas histórias pessoais e individuais. A Joyce Johnson de Missing Men que observa os demais é uma mulher madura e experiente e que pode entender os limites que a vida colocou para cada personagem.

Se Joyce parece se colocar no divã para reconstruir uma imagem de si, coloca aí também cada um e cada uma das pessoas que amou, porque reconhece que as memórias de si só serão possíveis na medida em que se entrelaçam com as memórias dos outros porque as feridas da memória são, simultaneamente, solitárias e partilhadas.

Há sempre certa dor em recordar o passado. Nem que seja a dor de que seja simplesmente passado. Em Missing Men, isso parece claro. Já no título, a presença da ausência, da falta, do vazio. Mas, ao longo da narrativa, não há a configuração de um vazio total, não é a voz de quem não tem mais nada, mas a Joyce que rememora é alguém que conseguiu superar as perdas ou conviver com elas. Fez das perdas algo que a impulsionou para outros caminhos. Foi, neste sentido, mais uma vez uma Beat, continuou na estrada.

Talvez seja o prefácio que nos dê a chave para compreendermos o real significado deste percurso:
Certa vez tive um marido que começou a pintar quadrados obsessivamente _ três quadrados em relações cambiantes entre si no que aparecia uma base plana, um vazio colorido. Ele me explicou que o espaço negativo em seu trabalho era tão importante quanto o positivo, que cada um recebia sua forma do outro. O que o interessava era principalmente a tensão entre eles. Lembro-me de ter ficado fascinada com seu conceito de espaço negativo, apesar de que o termo negativo pareceu-me a palavra inadequada para algo que tinha uma presença tão importante.
Eu ainda era muito jovem então, muito jovem para olhar para minha história e ver o quanto minha vida foi ela mesma moldada por ausências _ primeiramente por acaso, ao final, por escolha. (JOHNSON, 2005, pos.39)

Podemos imaginar que a imagem da pintura resuma para Joyce Johnson como as relações entre as pessoas acontecem, revelando a interdependência afetiva e emocional que se estabelece entre elas. Também, podemos considerá-la uma metáfora para a questão da memória na medida em que a memória individual perpassa pela nossa memória dos outros e vice e versa.

A terceira e última parte de Missing Men, Negative Space, é a rememoração de seu casamento com Pinchbeck, também pintor, em uma relação tumultuada que terminará em divórcio, mas amizade, e na qual percebemos semelhanças com as histórias do passado, mas também na qual encontramos Joyce desviando-se da herança familiar e construindo uma vida nova e singular. Aquela que vislumbrara, em um verão remoto aos doze anos, quando se determinara a ser feliz, distante daquilo que seus pais representavam. Fora esta sua escolha.

No início de Missing Men, Johnson nos fornece as origens de sua trajetória e a possível determinação de suas escolhas. A segunda parte descreve a intensidade de sua relação com James que parecia poder desviá-la do controle que a preponderante posição de observadora sempre lhe proporcionara. Todavia, paralelamente as vicissitudes daquele período, Joyce Johnson mantém seu projeto protofeminista de independência individual através da persistência na escrita e na carreira profissional. A terceira e última parte dessas memórias fecha o círculo, confirmando a transformação das perdas e das ausências em motivo para seguir em frente, escolhendo tornar-se protagonista da própria vida.

Nesta obra memorialista, como quem fotografa a própria vida, a autora regula o foco de seu olhar, ora distanciando, ora aproximando o foco sobre si mesma. Ora apresentando-se como protagonista, ora escolhendo a posição de um minor character, Joyce Johnson nos ensina que o espaço negativo é aquele necessário para constituir o positivo e nos dando a clara evidência desta complementaridade.

Finalmente, Missing Men – a memoir é uma obra belíssima que não nos deixa esquecer que a morte é também o espaço negativo da vida, cujo chamado sempre se fez mais forte para a escritora e ao qual, felizmente para nós, atende até hoje.
 
Joana Pupo é licenciada em Letras Português/Inglês e mestre em língua inglesa pela Universidade Federal do Paraná. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia na linha de pesquisa Cultura e Sociabilidades, desenvolvendo pesquisa na área de gênero e literatura.

*Todas as fotos são parte da coleção pessoal de Joyce Johnson e estão publicadas em Missing Men – a memoir.

Referências:

Blog Critical Mass. Enrevista com Joyce Johnson em agosto de 2007.Em: http://bookcritics.org/blog/archive/in-retrospect-a-qa-with-joyce-johnson).
JOHNSON, Joyce. Minor characters – A Young Woman’s Coming-of-Age in the Beat Orbit of Jack Kerouac. New York. Penguin Books, 1994. Kindle Edition.
_______ Missing Men – a memoir. New York. VIKING, 2004. Kindle edition.
 NABOKOV, Vladimir. Speak Memory. Em: JOHNSON, Joyce. Missing Men – a memoir. New York. VIKING, 2005.
RICOUER, Paul. Memória, história e esquecimento. 2003. Disponível em: http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/memoria_historia. Acessado em: 11/12/2014.
_______. O bom uso das feridas da memória. 2005. Disponível em: http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/o_bom_uso_das_feridas_da_memoria. Acessado em: 11/12/2014.

Joana Pupo é licenciada em Letras Português/Inglês e mestre em língua inglesa pela Universidade Federal do Paraná. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia na linha de pesquisa Cultura e Sociabilidades, desenvolvendo pesquisa na área de gênero e literatura.




[1] No original: Memoirs are a wonderful form because real lives are stranger than fiction. Their stories are shaggier; they are not as shaped and predictable as a lot of fiction.(JOHNSON, Joyce. Em entrevista para o blog Critical Mass em agosto, 2007).

[2] No original: The following of... thematic designs through one's life should be, I think, the true purpose of autobiography. (JOHNSON, 2004, pos.36)




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