A Escrita de Si e do Outro – Joyce Johnson em "Missing Men – a memoir".
Texto de hoje da autora convidada:
Joana Pupo
As memórias são uma forma
maravilhosa porque as vidas reais são mais estranhas que a ficção. Suas histórias
são mais confusas; elas não são modeladas e previsíveis como muita ficção.[1]
(Joyce Johnson)
Se a
vida de Joyce Johnson não parece tão estranha e imprevisível, como ela afirma
que são as vidas reais em oposição às fictícias e o quanto se poderia esperar
de uma moça que, em meados da década de 50, deixa a casa dos pais com apenas
dezenove anos, se envolve com o movimento Beat, um dos movimentos literários e
artísticos de maior vanguarda norte-americanos, namora Kerouac, ícone daquela geração,
é porque, desde muito cedo, Johnson tinha um projeto de vida: a escrita.
Missing Men – a memoir (2004),
seu segundo livro de memórias, revela
claramente a realização exemplar deste projeto. Escrito quando já está com
aproximadamente setenta anos, portanto, de um lugar distante, em pelo menos, vinte
anos das primeiras memórias de Minor
Characters, nas quais, pela primeira vez, as mulheres do movimento Beat
ganharam visibilidade, e com as quais ganhou o National Book Critics Award em 1983, Missing Men mantém o mesmo estilo poético da rememoração e a mesma
lucidez enérgica ao representar as relações entre mulheres e homens, porém com
o foco agora na construção de memórias mais pessoais e da
sua família.
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sua família.
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Missing Men
fala de ausências. Ausências masculinas na vida de Joyce Johnson e suas
consequências para a construção de sua subjetividade. Mas nem por isso deixa de
ser uma obra em que o lugar das mulheres não seja sensivelmente problematizado.
Afinal, são memórias de como se construiu como mulher a partir de suas relações
com os homens: o avô, o pai, os maridos. Porém, não menos importante a partir de
sua relação com mãe, e a partir de todas as outras relações que as pessoas que
lhe eram mais próximas tiveram também com outras pessoas ainda, em um jogo sem
fim de reciprocidade nas autoconstituições de si
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Dedicado a Peter Pinchbeck, seu segundo marido, Missing Men é dividido em três partes. Na primeira, Samuel Rosenberg's Daughters,
encontramos a história da família materna, desde a chegada do avô, poeta e
intelectual judeu, cujo suicídio aos 37 anos, provoca a primeira e
profunda ausência masculina na vida não só de sua mãe, mas da própria Joyce
Johnson. Da ausência do avô, revertida em apagamento pela queima de seus poemas,
pela substituição do sobrenome Rosenberg para Ross, Joyce herdará o talento
literário e, ao tornar-se escritora, cumprirá este mandato
geracional.
Ainda nesta primeira parte, conheceremos a segunda grande
ausência na vida da autora: a morte de seu pai, David Glassman, aos 62 anos.
Nesta passagem, ficamos sabendo que também a vinda da família dos Glassman para
os EUA fora marcada por trágicos motivos e mais ausências masculinas: a morte
de um irmão, pouco antes do Armistício, na França e a morte do avô paterno de
ataque cardíaco em consequência do conhecimento da morte do filho. Sabemos
também que o pai de Joyce crescera à sombra da glória deste irmão morto. E
seguirá sendo sempre um personagem secundário, principalmente, em comparação
com a influência exercida pela mãe de Joyce sobre ela durante a infância e
adolescência.
A segunda parte, Red, White, and Black, narra a vida de Johnson, depois do fim da
relação com Kerouac, e seu breve casamento com o pintor James Johnson, o qual
Joyce viveu intensamente, mas que culminou no desfecho trágico da morte precoce
do pintor em um acidente de motocicleta, tornando-se esta a terceira grande
ausência em sua vida. Talvez minimizada apenas pela manutenção do sobrenome
Johnson, do qual Joyce nunca abriu mão.
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A
busca pelos … desígnios temáticos durante toda uma vida
deveria ser, acredito, a
verdadeira finalidade de uma autobiografia.[2]
(NABOKOV, Vladimir)
A
epígrafe de Nabokov, que abre a obra, nos
indica que o que Joyce busca são as recorrências que nos constituem e que determinarão
nossas escolhas ao longo da vida. E é preciso buscá-las em nossa história para que
exista a possibilidade de reconciliação com nós mesmas. O que nos lembra da
sugestão de Ricouer de que o verdadeiro trabalho da memória “não se limita à caça aos fatos, mas se dedica a explicar, a
compreender, por meio de que engrenagens tudo aconteceu.” (RICOUER, 2003).
É este trabalho de memória, de driblar o esquecimento dos pontos mais
doloridos, que Johnson executa com coragem e lirismo, com rigor, mas
simultaneamente com piedade. Com lucidez, mas com compaixão, realizando este
trabalho sem desespero e com generosidade.
Seu
olhar para os homens ausentes é
compreensivo, quase materno, mas não é menor sua aceitação para com as mulheres
da família, para com a avó, a mãe, as tias e suas histórias pessoais e
individuais. A Joyce Johnson de Missing
Men que observa os demais é uma mulher madura e experiente e que pode entender
os limites que a vida colocou para cada personagem.
Se
Joyce parece se colocar no divã para reconstruir uma imagem de si, coloca aí também
cada um e cada uma das pessoas que amou, porque reconhece que as memórias de si
só serão possíveis na medida em que se entrelaçam com as memórias dos outros
porque as feridas da memória são, simultaneamente, solitárias e partilhadas.
Há
sempre certa dor em recordar o passado. Nem que seja a dor de que seja
simplesmente passado. Em Missing Men,
isso parece claro. Já no título, a presença da ausência, da falta, do vazio.
Mas, ao longo da narrativa, não há a configuração de um vazio total, não é a
voz de quem não tem mais nada, mas a Joyce que rememora é alguém que conseguiu
superar as perdas ou conviver com elas. Fez das perdas algo que a impulsionou
para outros caminhos. Foi, neste sentido, mais uma vez uma Beat, continuou na
estrada.
Talvez
seja o prefácio que nos dê a chave para compreendermos o real significado deste
percurso:
Certa vez tive um marido que começou a pintar
quadrados obsessivamente _ três quadrados em relações cambiantes entre si no
que aparecia uma base plana, um vazio colorido. Ele me explicou que o espaço
negativo em seu trabalho era tão importante quanto o positivo, que cada um
recebia sua forma do outro. O que o interessava era principalmente a tensão
entre eles. Lembro-me de ter ficado fascinada com seu conceito de espaço
negativo, apesar de que o termo negativo pareceu-me a palavra inadequada para
algo que tinha uma presença tão importante.
Eu ainda era muito
jovem então, muito jovem para olhar para minha história e ver o quanto minha
vida foi ela mesma moldada por ausências _ primeiramente por acaso, ao final,
por escolha. (JOHNSON, 2005, pos.39)
Podemos
imaginar que a imagem da pintura resuma para Joyce Johnson como as relações
entre as pessoas acontecem, revelando a interdependência afetiva e emocional
que se estabelece entre elas. Também, podemos considerá-la uma metáfora para a
questão da memória na medida em que a memória individual perpassa pela nossa
memória dos outros e vice e versa.
A terceira e última parte de Missing Men, Negative Space,
é a rememoração de seu casamento com Pinchbeck, também pintor, em uma relação
tumultuada que terminará em divórcio, mas amizade, e na qual percebemos
semelhanças com as histórias do passado, mas também na qual encontramos Joyce
desviando-se da herança familiar e construindo uma vida nova e singular. Aquela
que vislumbrara, em um verão remoto aos doze anos, quando se determinara a ser
feliz, distante daquilo que seus pais representavam. Fora esta sua escolha.
No
início de Missing Men, Johnson nos fornece
as origens de sua trajetória e a possível determinação de suas escolhas. A
segunda parte descreve a intensidade de sua relação com James que parecia poder
desviá-la do controle que a preponderante posição de observadora sempre lhe
proporcionara. Todavia, paralelamente as
vicissitudes daquele período, Joyce Johnson mantém seu projeto protofeminista de
independência individual através da persistência na escrita e na carreira
profissional. A terceira e última parte dessas memórias fecha o círculo, confirmando
a transformação das perdas e das ausências em motivo para seguir em frente,
escolhendo tornar-se protagonista da própria vida.
Nesta
obra memorialista, como quem fotografa a própria vida, a autora regula o foco
de seu olhar, ora distanciando, ora aproximando o foco sobre si mesma. Ora
apresentando-se como protagonista, ora escolhendo a posição de um minor character, Joyce Johnson nos
ensina que o espaço negativo é aquele
necessário para constituir o positivo e nos dando a clara evidência desta
complementaridade.
Finalmente,
Missing Men – a memoir é uma obra
belíssima que não nos deixa esquecer que a morte é também o espaço negativo da
vida, cujo chamado sempre se fez mais forte para a escritora e ao qual, felizmente
para nós, atende até hoje.
Joana Pupo é licenciada em Letras Português/Inglês e mestre em língua inglesa pela Universidade Federal do Paraná. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia na linha de pesquisa Cultura e Sociabilidades, desenvolvendo pesquisa na área de gênero e literatura.
Joana Pupo é licenciada em Letras Português/Inglês e mestre em língua inglesa pela Universidade Federal do Paraná. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia na linha de pesquisa Cultura e Sociabilidades, desenvolvendo pesquisa na área de gênero e literatura.
*Todas as fotos são
parte da coleção pessoal de Joyce Johnson e estão publicadas em Missing Men – a memoir.
Referências:
Blog Critical Mass. Enrevista com Joyce Johnson em agosto de 2007.Em: http://bookcritics.org/blog/archive/in-retrospect-a-qa-with-joyce-johnson).
JOHNSON,
Joyce. Minor characters – A Young Woman’s
Coming-of-Age in the Beat Orbit of Jack Kerouac. New York. Penguin Books,
1994. Kindle Edition.
_______ Missing
Men – a memoir. New York. VIKING, 2004.
Kindle edition.
NABOKOV, Vladimir. Speak
Memory. Em: JOHNSON, Joyce. Missing
Men – a memoir. New York. VIKING,
2005.
RICOUER, Paul. Memória, história e esquecimento. 2003.
Disponível em: http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/memoria_historia.
Acessado em: 11/12/2014.
_______. O bom uso das feridas da memória. 2005.
Disponível em: http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/o_bom_uso_das_feridas_da_memoria.
Acessado em: 11/12/2014.
Joana Pupo é licenciada em Letras
Português/Inglês e mestre em língua inglesa pela Universidade Federal do
Paraná. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia na linha de
pesquisa Cultura e Sociabilidades,
desenvolvendo pesquisa na área de gênero e literatura.
[1] No original: Memoirs are a wonderful form because
real lives are stranger than fiction. Their stories are shaggier; they are not
as shaped and predictable as a lot of fiction.(JOHNSON, Joyce. Em entrevista para o
blog Critical Mass em agosto, 2007).
[2] No original: The
following of... thematic designs through one's life should be, I think, the
true purpose of autobiography. (JOHNSON, 2004, pos.36)
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