O livro Cartas Portuguesas, ou Lettres Portugaises, nome original de
publicação, escrito por Mariana Alcoforado e publicado pela primeira vez na
França em 1669, encontra-se em nova edição pela editora L&PM, mas também
pode ser encontrado como obra de domínio público na web. Já passou por uma série
de edições, entretanto jamais se chegou a um consenso a respeito de sua
verdadeira autoria.
A obra trata
essencialmente de amor, não de forma estática, idealizada, mas levando em conta
as ramificações psicológicas e cruéis que agitam seus percalços. Talvez por
isso, também, a obra trata da própria Mariana. Abandonada por um amante intenso
e veloz, constrói cada uma das cartas, endereçadas a ele, de maneira a avaliar
sua própria posição como amante, indivíduo e mulher. Não obstante, atribui
culpas, martiriza-se, realiza uma autoavaliação e decide o rumo que sua vida
tomará dali em diante.
Publicado
originalmente como um livro, carrega já no título uma informação peculiar a
respeito da forma: trata não de um romance ou de poesia, mas de um apanhado de
cartas. Sendo assim, remete a grande intimidade, que, além disso, era a única
forma de vencer a distância.
Na primeira
carta Mariana deixa clara sua angústia, que será o pano de fundo em que constrói
o conflito entre o amor e a razão, marca que se apresenta logo nos primeiros
parágrafos, quando a autora dialoga consigo mesma, alertando que apesar de
tamanho amor, precisa parar de se mortificar. Há sempre um tom paradoxal nas
palavras de Mariana, que se organizam quase como o próprio pensamento do
amante. A impossibilidade, nesse caso, reforça a paixão, intensifica o conflito
e torna a mente da mulher um campo de batalha que se configura no limite entre
a dor e o prazer.
Na segunda
carta Mariana nos traz novas informações a respeito de sua situação, deixando
claro que seu amado não lhe responde há pelo menos seis meses. Graças a isso,
lamenta sua solidão e melancolia, mas volta a duvidar destes mesmos sentimentos
através da razão, deixando claro que reconhece o próprio engano em acreditar
que receberia alguma resposta. Tomando esse momento de iluminação como um
impulso para o pensamento, Mariana reconhece sua posição na situação e começa a
analisá-la como indivíduo. Graças a essa retomada de postura, sempre apoiada na
razão, analisa que o soldado a deixou de tal forma, desgraçada e lamentosa,
justamente por não querer nada senão prazeres momentâneos. Por isso reconhece
que é inocente por tê-lo creditado tamanho valor, mas não se protege ao ponto
de evitar que, linhas depois, torne a reconsiderar o amor e a felicidade que
passou com o homem, apenas para terminar em novo lamento por sua enorme desgraça,
talvez ainda mais intensa que os momentos felizes que tivera ao lado do amado.
No entanto é importante que se diga que ao final desta carta, Mariana declara
abertamente que seu amor já não depende mais da forma como o homem a trataria,
ou seja, toma para si própria o amor, torna-o autossuficiente e, por isso
mesmo, cria uma relação paradoxal entre dependência e independência.
Prosseguindo
com as cartas, já na terceira, Mariana começa a se aprofundar cada vez mais na
própria psiquê, deixando de lado o homem a quem as endereçava. É claro que ele
ainda é figura recorrente, mas vai, pouco a pouco, perdendo inclusive o
protagonismo em seu sofrimento. Aqui Mariana começa a notar que o sofrimento é
causado por uma ação do homem, mas apenas isso. De resto, tudo parte dela, tudo
é sentimento dela, e tudo precisa ser resolvido por ela. Talvez por isso
considera com mais profundidade a frieza e distanciamento dos sentimentos do
homem, portanto entende que fora usada como objeto sexual, sem que houvesse
qualquer amor que vivesse n'outro lugar que não suas próprias esperanças. Sendo
assim, transfere o peso do sentimento, atribuindo maior alegria ao “amar
violentamente” (como ela faz) que ao “ser amado”. Dessa forma, rebaixa a posição
do homem e exalta a própria, assumindo-se como indivíduo, como mulher, como
detentora da própria alegria – mesmo que novamente, linhas depois, torne a cair
em sofrimento pela sua não correspondência.
Mariana mantém
sua análise baseando-se nos sacrifícios que fizera, todos não correspondidos,
nem mesmo valorizados. É importante frisar que apesar de tentar se enxergar
como indivíduo, ela jamais deixa de se observar através das ações do amado. Seu
amor vem da dor, que por sua vez só existe como consequência do abandono,
portanto fruto da indiferença do homem. É sob essa ótica que Mariana persegue a
situação nesta terceira carta, por isso escreve algo mais sóbrio, muito mais
envolvido em razão que emoção. No entanto, não deixa de terminá-la
entregando-se novamente ao amor, ao sentimento, à melancolia que se faz tão
necessária para que continue na mesma situação e torne a escrever, afinal, não é
agora que ela quer dar um basta na situação.
Na quarta
carta, uma das mais longas, há no início um certo tom de cobrança, na medida
que Mariana insiste em tentar entender porque o homem não lhe escreve.
Novamente ela deixa claro seu engano em tê-lo dado algum crédito e chama a atenção
para a fidelidade de seu amor, que só culpa ao homem para ter o prazer de
justificá-lo.
No entanto
fica a pergunta: fiel a quem?
Seguindo em
frente, Mariana torna a culpá-lo por sua desgraça, mas não mais com afirmações.
Na verdade é interessante frisarmos que ela faz uso de uma série de
interrogativas a fim de tentar compreender os porquês de ter sido abandonada.
Afinal, se ele sabia que não ficaria em Portugal, que iria embora, voltaria
para sua pátria e para seus muitos amores na França, não havia razão para
desgraçá-la com tamanho sentimento.
Mariana
certamente conhece a resposta para tais perguntas, mas insiste em sua retórica.
A quem, portanto, as endereça? A resposta não parece tão distante: a ela mesma.
Tais perguntas parecem ter maior profundida quando endereçadas ao próprio
interrogador que a algum interlocutor.
Ao fazê-las, posiciona-se longe de qualquer inocência, aproxima-se mais
de si mesma. Cria um argumento contra as intempéries do mundo, contra o
abandono e, talvez, contra a própria ilusão. Aqui, parece-me, há a construção
de um processo que será crucial para o encerramento do livro e, portanto, o fim
de sua última carta.
Há,
portanto, a intensificação de uma ratio
que a mulher desenvolve em torno de si mesma. Mariana começa a consolidar seu
raciocínio, ainda que constantemente mutilado pela emoção, encontrando-se como
uma vítima das próprias esperanças – o que é um avanço, se considerarmos que
anteriormente ela se dizia vítima terrível das ações do soldado. Outro elemento
desta carta também nos é de grande importância: pela primeira vez ela revela
que recebe cartas em resposta às suas. E tais cartas “são frias, cheias de
repetições, metade do papel em branco”. É graças a elas que a mulher torna a
questionar seus sentimentos, passando a desejar maldições imaginárias ao homem,
afinal se dá conta do peso que a indiferença e a infidelidade têm para ela.
Note a importância do termo “para ela” nesse momento.
A quarta
carta se encerra com Mariana derramando-se em novos desejos de amor, seguidos
de uma enxurrada de outras perguntas que, ela sabe, jamais terão resposta.
Talvez jamais sejam lidas, como sublinha a própria. Portanto, para se despedir,
pede perdão, lamenta a causalidade de sua situação e lhe escreve um seco e
solitário “Adeus”, que pela primeira vez aparece isolado do restante do parágrafo,
acompanhado por ponto final, não reticências.
A quinta e última
carta começa como uma espécie de apêndice da quarta. Pela estrutura da
anterior, Mariana parecia que não escreveria mais, contudo, claramente algo
ficou mal resolvido. Ela sabe que está se encontrando nas próprias
idiossincrasias, mas também entende que ainda há questões a abordar.
Ao primeiro
parágrafo, já deixa clara sua intenção: dar um basta definitivo na situação.
Para isso começa avisando que esta será a última carta e que finalmente
entendeu que não é amada, portanto precisa esquecê-lo. Logo deixa clara sua
vontade de lhe devolver todos os presentes e pertences sem sequer nomear o
pacote. Apesar das lágrimas e hesitações, como descreve nos primeiros parágrafos,
Mariana parece ter um tom mais sóbrio nesta carta. Há alguma indiferença em
suas considerações iniciais, reflexo da distância que ele havia colocado entre
os dois. Mariana ainda não desiste de falar em amor, mas agora faz questão de
diferenciá-lo de paixão, de entender a situação e de nomear tudo aquilo que lhe
fora desagradável até então.
Até o fim da
carta ela ainda fará um pedido: que ele não escreva novamente e que, inclusive,
ajude-a a esquecê-lo. Um pedido muito simbólico, uma vez que se transveste de
algo puramente emocional, mas, olhando mais de perto, parece mais uma fusão
perfeita entre razão e emoção, conflito que Mariana parecia não conseguir
resolver até então. Afinal, pedir este tipo e ajuda é se dar conta que para ela
será impossível vencer algo que vem de dentro. Mariana sabe que não quer se
afastar de verdade do amado, mas entende que é o melhor a fazer. Por isso
precisa criar uma distância ela mesma, colocando o homem em posição inferior,
deixando claro que agora ela é quem deseja estar longe e, portanto, ele precisa
fazer a sua parte e ignorá-la. Ou seja, agora Mariana deseja a indiferença. Uma
indiferença que antes, quando impensada, era incômoda, afinal não correspondia
ao seu sentimento. Mas agora, pensada e direcionada, é tudo o que mais precisa.
Nesta carta,
Mariana é mais existencialista, mais voltada para si mesma como jamais antes
fora. Parece haver certo protagonismo da razão, entretanto ela ainda não deixa
de pensar emocionalmente. Agora, contudo, parece pensar num sentimento que existe
mais dentro de si mesma que em relação ao homem. Passa, portanto, a definir que
amor foi esse, como ele deveria e poderia ter continuado e que razões o levaram
a sofrer e minguar. E entende que não vale a pena continuar a senti-lo. Melhor
para ela, talvez, seja a dor de enterrá-lo e a sensação de seguir em frente
consigo mesma, de ser livre, de finalmente dizer Adeus.
Findas as
cartas, de pronto é possível que se ocorra imediatamente uma questão: o caráter
barroco da obra. O conflito entre o racional e o emocional, marca inegável em
cada uma das cartas, é sem dúvida prova disso. Trata-se, portanto, de obra
pontual, periodizável, mas, ainda assim, de absoluta complexidade. Sua própria
origem, em que não se sabe realmente se a tal Mariana Alcoforado foi a
verdadeira autora das cartas (apesar da prova de sua existência como pessoa e
freira), cria um conflito que se estende para além das páginas do livro, entre
a ficção e a realidade, gerando uma tensão que, sim, tem início no barroco, nas
próprias cartas, mas acaba estendida à literatura e a seu valor como força
transformadora de realidades. Afinal, Mariana aparentemente transformou a sua,
contudo, jamais saberemos se de fato existiu alguma. No entanto, mesmo que não
haja qualquer vestígio de um mundo concreto, o texto fez o papel de criá-lo e,
na mesma medida, transformá-lo. Afinal esse mundo é Mariana. Um mundo que se
manifesta em suas cartas, que tem força no amor, e que se transforma quando a
mulher descobre que pode deixar de orbitar em torno do homem, do sentimento, e
passar a gravitar pela razão, por si mesma. Essa, claro, talvez seja uma
escolha difícil (o processo da própria Mariana ao longo das cartas nos é
indicativo disso), mas certamente a mais adequada à mulher que busca se tornar
indivíduo pleno, consciente de si e, portanto, feminista, na medida em que
reconhece que seu lugar está muito além daquilo que lhe é oferecido.
Cartas
Portuguesas é um livro simples, um diálogo construído com primazia, indicado
tanto para leitores ocasionais quanto para os mais exigentes. Ainda mais
indicado para os que se interessam pelo sentimento, pela razão e pelo conflito
entre ambas as forças, jamais compreendido ou solucionado por qualquer homem
que tenha passado pela terra. Mas que talvez o seja por uma mulher.
Referência:
Higor David Rosa é
estudante de letras, professor estagiário, roteirista e poeta. Nasceu homem,
mas bem sabe que a graça do mundo está na vida da mulher.
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