quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Amor e desencanto em Mariana Alcoforado






            O livro Cartas Portuguesas, ou Lettres Portugaises, nome original de publicação, escrito por Mariana Alcoforado e publicado pela primeira vez na França em 1669, encontra-se em nova edição pela editora L&PM, mas também pode ser encontrado como obra de domínio público na web. Já passou por uma série de edições, entretanto jamais se chegou a um consenso a respeito de sua verdadeira autoria.
             A obra trata essencialmente de amor, não de forma estática, idealizada, mas levando em conta as ramificações psicológicas e cruéis que agitam seus percalços. Talvez por isso, também, a obra trata da própria Mariana. Abandonada por um amante intenso e veloz, constrói cada uma das cartas, endereçadas a ele, de maneira a avaliar sua própria posição como amante, indivíduo e mulher. Não obstante, atribui culpas, martiriza-se, realiza uma autoavaliação e decide o rumo que sua vida tomará dali em diante.
             Publicado originalmente como um livro, carrega já no título uma informação peculiar a respeito da forma: trata não de um romance ou de poesia, mas de um apanhado de cartas. Sendo assim, remete a grande intimidade, que, além disso, era a única forma de vencer a distância. 
             Na primeira carta Mariana deixa clara sua angústia, que será o pano de fundo em que constrói o conflito entre o amor e a razão, marca que se apresenta logo nos primeiros parágrafos, quando a autora dialoga consigo mesma, alertando que apesar de tamanho amor, precisa parar de se mortificar. Há sempre um tom paradoxal nas palavras de Mariana, que se organizam quase como o próprio pensamento do amante. A impossibilidade, nesse caso, reforça a paixão, intensifica o conflito e torna a mente da mulher um campo de batalha que se configura no limite entre a dor e o prazer.
             Na segunda carta Mariana nos traz novas informações a respeito de sua situação, deixando claro que seu amado não lhe responde há pelo menos seis meses. Graças a isso, lamenta sua solidão e melancolia, mas volta a duvidar destes mesmos sentimentos através da razão, deixando claro que reconhece o próprio engano em acreditar que receberia alguma resposta. Tomando esse momento de iluminação como um impulso para o pensamento, Mariana reconhece sua posição na situação e começa a analisá-la como indivíduo. Graças a essa retomada de postura, sempre apoiada na razão, analisa que o soldado a deixou de tal forma, desgraçada e lamentosa, justamente por não querer nada senão prazeres momentâneos. Por isso reconhece que é inocente por tê-lo creditado tamanho valor, mas não se protege ao ponto de evitar que, linhas depois, torne a reconsiderar o amor e a felicidade que passou com o homem, apenas para terminar em novo lamento por sua enorme desgraça, talvez ainda mais intensa que os momentos felizes que tivera ao lado do amado. No entanto é importante que se diga que ao final desta carta, Mariana declara abertamente que seu amor já não depende mais da forma como o homem a trataria, ou seja, toma para si própria o amor, torna-o autossuficiente e, por isso mesmo, cria uma relação paradoxal entre dependência e independência.
             Prosseguindo com as cartas, já na terceira, Mariana começa a se aprofundar cada vez mais na própria psiquê, deixando de lado o homem a quem as endereçava. É claro que ele ainda é figura recorrente, mas vai, pouco a pouco, perdendo inclusive o protagonismo em seu sofrimento. Aqui Mariana começa a notar que o sofrimento é causado por uma ação do homem, mas apenas isso. De resto, tudo parte dela, tudo é sentimento dela, e tudo precisa ser resolvido por ela. Talvez por isso considera com mais profundidade a frieza e distanciamento dos sentimentos do homem, portanto entende que fora usada como objeto sexual, sem que houvesse qualquer amor que vivesse n'outro lugar que não suas próprias esperanças. Sendo assim, transfere o peso do sentimento, atribuindo maior alegria ao “amar violentamente” (como ela faz) que ao “ser amado”. Dessa forma, rebaixa a posição do homem e exalta a própria, assumindo-se como indivíduo, como mulher, como detentora da própria alegria – mesmo que novamente, linhas depois, torne a cair em sofrimento pela sua não correspondência.
             Mariana mantém sua análise baseando-se nos sacrifícios que fizera, todos não correspondidos, nem mesmo valorizados. É importante frisar que apesar de tentar se enxergar como indivíduo, ela jamais deixa de se observar através das ações do amado. Seu amor vem da dor, que por sua vez só existe como consequência do abandono, portanto fruto da indiferença do homem. É sob essa ótica que Mariana persegue a situação nesta terceira carta, por isso escreve algo mais sóbrio, muito mais envolvido em razão que emoção. No entanto, não deixa de terminá-la entregando-se novamente ao amor, ao sentimento, à melancolia que se faz tão necessária para que continue na mesma situação e torne a escrever, afinal, não é agora que ela quer dar um basta na situação.
             Na quarta carta, uma das mais longas, há no início um certo tom de cobrança, na medida que Mariana insiste em tentar entender porque o homem não lhe escreve. Novamente ela deixa claro seu engano em tê-lo dado algum crédito e chama a atenção para a fidelidade de seu amor, que só culpa ao homem para ter o prazer de justificá-lo.
             No entanto fica a pergunta: fiel a quem?
             Seguindo em frente, Mariana torna a culpá-lo por sua desgraça, mas não mais com afirmações. Na verdade é interessante frisarmos que ela faz uso de uma série de interrogativas a fim de tentar compreender os porquês de ter sido abandonada. Afinal, se ele sabia que não ficaria em Portugal, que iria embora, voltaria para sua pátria e para seus muitos amores na França, não havia razão para desgraçá-la com tamanho sentimento.
             Mariana certamente conhece a resposta para tais perguntas, mas insiste em sua retórica. A quem, portanto, as endereça? A resposta não parece tão distante: a ela mesma. Tais perguntas parecem ter maior profundida quando endereçadas ao próprio interrogador que a algum interlocutor.  Ao fazê-las, posiciona-se longe de qualquer inocência, aproxima-se mais de si mesma. Cria um argumento contra as intempéries do mundo, contra o abandono e, talvez, contra a própria ilusão. Aqui, parece-me, há a construção de um processo que será crucial para o encerramento do livro e, portanto, o fim de sua última carta.
             Há, portanto, a intensificação de uma ratio que a mulher desenvolve em torno de si mesma. Mariana começa a consolidar seu raciocínio, ainda que constantemente mutilado pela emoção, encontrando-se como uma vítima das próprias esperanças – o que é um avanço, se considerarmos que anteriormente ela se dizia vítima terrível das ações do soldado. Outro elemento desta carta também nos é de grande importância: pela primeira vez ela revela que recebe cartas em resposta às suas. E tais cartas “são frias, cheias de repetições, metade do papel em branco”. É graças a elas que a mulher torna a questionar seus sentimentos, passando a desejar maldições imaginárias ao homem, afinal se dá conta do peso que a indiferença e a infidelidade têm para ela. Note a importância do termo “para ela” nesse momento.
             A quarta carta se encerra com Mariana derramando-se em novos desejos de amor, seguidos de uma enxurrada de outras perguntas que, ela sabe, jamais terão resposta. Talvez jamais sejam lidas, como sublinha a própria. Portanto, para se despedir, pede perdão, lamenta a causalidade de sua situação e lhe escreve um seco e solitário “Adeus”, que pela primeira vez aparece isolado do restante do parágrafo, acompanhado por ponto final, não reticências.
             A quinta e última carta começa como uma espécie de apêndice da quarta. Pela estrutura da anterior, Mariana parecia que não escreveria mais, contudo, claramente algo ficou mal resolvido. Ela sabe que está se encontrando nas próprias idiossincrasias, mas também entende que ainda há questões a abordar.
             Ao primeiro parágrafo, já deixa clara sua intenção: dar um basta definitivo na situação. Para isso começa avisando que esta será a última carta e que finalmente entendeu que não é amada, portanto precisa esquecê-lo. Logo deixa clara sua vontade de lhe devolver todos os presentes e pertences sem sequer nomear o pacote. Apesar das lágrimas e hesitações, como descreve nos primeiros parágrafos, Mariana parece ter um tom mais sóbrio nesta carta. Há alguma indiferença em suas considerações iniciais, reflexo da distância que ele havia colocado entre os dois. Mariana ainda não desiste de falar em amor, mas agora faz questão de diferenciá-lo de paixão, de entender a situação e de nomear tudo aquilo que lhe fora desagradável até então.
 
            Até o fim da carta ela ainda fará um pedido: que ele não escreva novamente e que, inclusive, ajude-a a esquecê-lo. Um pedido muito simbólico, uma vez que se transveste de algo puramente emocional, mas, olhando mais de perto, parece mais uma fusão perfeita entre razão e emoção, conflito que Mariana parecia não conseguir resolver até então. Afinal, pedir este tipo e ajuda é se dar conta que para ela será impossível vencer algo que vem de dentro. Mariana sabe que não quer se afastar de verdade do amado, mas entende que é o melhor a fazer. Por isso precisa criar uma distância ela mesma, colocando o homem em posição inferior, deixando claro que agora ela é quem deseja estar longe e, portanto, ele precisa fazer a sua parte e ignorá-la. Ou seja, agora Mariana deseja a indiferença. Uma indiferença que antes, quando impensada, era incômoda, afinal não correspondia ao seu sentimento. Mas agora, pensada e direcionada, é tudo o que mais precisa.
             Nesta carta, Mariana é mais existencialista, mais voltada para si mesma como jamais antes fora. Parece haver certo protagonismo da razão, entretanto ela ainda não deixa de pensar emocionalmente. Agora, contudo, parece pensar num sentimento que existe mais dentro de si mesma que em relação ao homem. Passa, portanto, a definir que amor foi esse, como ele deveria e poderia ter continuado e que razões o levaram a sofrer e minguar. E entende que não vale a pena continuar a senti-lo. Melhor para ela, talvez, seja a dor de enterrá-lo e a sensação de seguir em frente consigo mesma, de ser livre, de finalmente dizer Adeus.
             Findas as cartas, de pronto é possível que se ocorra imediatamente uma questão: o caráter barroco da obra. O conflito entre o racional e o emocional, marca inegável em cada uma das cartas, é sem dúvida prova disso. Trata-se, portanto, de obra pontual, periodizável, mas, ainda assim, de absoluta complexidade. Sua própria origem, em que não se sabe realmente se a tal Mariana Alcoforado foi a verdadeira autora das cartas (apesar da prova de sua existência como pessoa e freira), cria um conflito que se estende para além das páginas do livro, entre a ficção e a realidade, gerando uma tensão que, sim, tem início no barroco, nas próprias cartas, mas acaba estendida à literatura e a seu valor como força transformadora de realidades. Afinal, Mariana aparentemente transformou a sua, contudo, jamais saberemos se de fato existiu alguma. No entanto, mesmo que não haja qualquer vestígio de um mundo concreto, o texto fez o papel de criá-lo e, na mesma medida, transformá-lo. Afinal esse mundo é Mariana. Um mundo que se manifesta em suas cartas, que tem força no amor, e que se transforma quando a mulher descobre que pode deixar de orbitar em torno do homem, do sentimento, e passar a gravitar pela razão, por si mesma. Essa, claro, talvez seja uma escolha difícil (o processo da própria Mariana ao longo das cartas nos é indicativo disso), mas certamente a mais adequada à mulher que busca se tornar indivíduo pleno, consciente de si e, portanto, feminista, na medida em que reconhece que seu lugar está muito além daquilo que lhe é oferecido.

             Cartas Portuguesas é um livro simples, um diálogo construído com primazia, indicado tanto para leitores ocasionais quanto para os mais exigentes. Ainda mais indicado para os que se interessam pelo sentimento, pela razão e pelo conflito entre ambas as forças, jamais compreendido ou solucionado por qualquer homem que tenha passado pela terra. Mas que talvez o seja por uma mulher.

Referência:
ALCOFORADO, Mariana: Cartas portuguesas. Disponível em http://cdn.luso-livros.net/wp-content/uploads/2013/02/Cartas-de-Amor-de-uma-Freira-Portuguesa.pdf. Acesso em 12/10/2014.





 Higor David Rosa é estudante de letras, professor estagiário, roteirista e poeta. Nasceu homem, mas bem sabe que a graça do mundo está na vida da mulher.  

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