Fernando Pessoa era um iniciado? (Parte I)
Comecemos por ai: Fernando Pessoa era um iniciado? Muito tem se dito sobre os seus
princípios e estudos ocultistas, mas o que efetivamente podemos considerar? Trabalhos apontam para
uma possível afiliação do poeta com a Ordo Templi Orientis[1]
(Ordem Templária do Oriente), como também com outras “várias ordens ocultas”,
ou - melhor seria dizer – ocultistas, compreendendo que não são elas
propriamente ocultas, mas sim seu principal interesse e objeto de estudo. No
entanto, ao que parece, seu contato não foi propriamente iniciático, no sentido
místico do termo, mas sim intelectual. Partes de seu espólio atestam sua não
vinculação:
Começo por uma
referência pessoal, que cuido, por necessária, não dever evitar. Não sou maçon,
nem pertenço a qualquer outra Ordem semelhante ou diferente. Não sou porém
anti-maçon, pois o que sei do assunto me leva a ter uma ideia absolutamente
favorável da Ordem Maçónica. A estas duas circunstâncias, que em certo modo me
habilitam a poder ser imparcial na matéria, acresce a de que, por virtude de
certos estudos meus, cuja natureza confina com a parte oculta da Maçonaria —
parte que nada tem de político ou social —, fui necessariamente levado a
estudar também esse assunto, assunto muito belo, mas muito difícil, sobretudo
para quem o estuda de fora. (Apud SERRÃO, 1979, p. 132)[2]
A
citação acima foi retirada de um artigo publicado por Pessoa, intitulado Associações Secretas, em 4 de fevereiro
de 1935, onde o poeta faz a defesa da ordem maçônica de Portugal contra um
projeto de lei apresentado à Assembleia. Após sugerir um certo cunho
inquisitorial na essência do projeto, Pessoa esclarece que a proposta
apresentada estabelecia “várias e fortes
sanções (com exceção da pena de morte) para todos quantos pertençam ao que o
seu autor chama ‘associações secretas, sejam quais forem os seus fins e organização’"(Apud
SERRÃO, 1979).
Dessa forma, poderíamos
crer que não houve ligação oficial, se entendermos por isso o rito iniciático,
entre Fernando Pessoa e nenhuma ordem mística, visto que o próprio poeta afirma
não ser maçom, nem fazer parte de qualquer outra organização semelhante. Porem,
não devemos concluir por já. Em
uma nota deixada sobre o texto mencionado, Pessoa pontua os argumentos contidos
no seu artigo. Interessa-nos aqui o sétimo tópico, que retoma o fragmento
apresentado anteriormente:
7. (a) Não sou
maçon, nem pertenço a qualquer Ordem; (b) sou suficientemente conhecedor de
assuntos maçónicos para deles poder confiadamente ocupar-me; (c) os meus
conhecimentos maçónicos derivam-se, não da simples leitura de livros mas de
certa "preparação especial", cuja natureza me não propunha, nem agora
me proponho, indicar; (d) não sou anti-maçon; antes, através do meu estudo da
Maçonaria, adquiri um conceito favorável dessa Ordem; (e) em virtude disso —
não foi realmente só em virtude disso — vim defender a Maçonaria.[3]
O
até então exposto fica seguro e afirmado na subdivisão (a) e estaríamos certos
se não houvesse, em (c), menção à uma “preparação especial”, da qual a origem o
poeta não estava disposto a indicar e que transcendia à simples leitura de
livros. Nota-se uma clara indicação de conhecimentos “práticos”, que
ultrapassam as possibilidades da teoria. Seria a preparação especial apontada
por Pessoa uma iniciação? Caso fosse, por que ausentar-se do papel de membro?
Por que o lisboeta diria não fazer parte de ordem alguma? Outro fragmento nos
responde, de maneira relativamente satisfatória, tais questões.
Na
obra Pessoa Inédito (1993), com
orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes, é possível encontrar
um trecho, também sobre o referido artigo, onde se verifica possíveis explicações
para essa “preparação especial”:
(1)
Uma Ordem iniciática é verdadeiramente uma Ordem só quando está em actividade —
isto é, quando tem abertos os seus templos, ou o seu templo único, e realiza
sessões e iniciações em ritual vivido. Quando em dormência, ou vida latente e
simplesmente transmissa, não é propriamente uma Ordem, mas tão-somente um
sistema de iniciação, avanço e completamento. São os três termos que competem à
conferição, por exemplo, dos três Graus Menores da Ordem Templária de Portugal.
(2)
Por isso eu disse, legitimamente, que não pertencia a Ordem nenhuma[4].
Não podia legitimamente dizer que não tinha nenhuma iniciação. Antes, para quem
pudesse entender, insinuei que a tinha, quando falei de «uma preparação
especial, cuja natureza me não proponho indicar.» Essa frase escapou, e ainda
mais o seu sentido possível, aos iledores anti-maçónicos. Só posso pois dizer
que pertenço à Ordem Templária de Portugal. Posso dizer, e digo, que sou
templário português. Digo-o devidamente autorizado. E, dito, fica dito. (apud
LOPES, 1993, p. 196)[5]
Compreende-se
disso que: 1) Sim, Fernando Antônio Nogueira Pessoa, “poeta maior” de Portugal,
era um iniciado; 2) Não, Pessoa não se considerava membro de uma ordem
iniciática, porque a ordem na qual fora iniciado estava em dormência, como
aconteceu à outras ordens no decorrer da história, à exemplo a própria Rosae
Crucis. Sendo assim, fica o poeta em condição de Iniciado, incluso em um “sistema
de iniciação, avanço e completamento”, sem pertencer à maçonaria, nem a qualquer
outra ordem semelhante, pois está sua ordem temporariamente inativa, em “vida
latente e simplesmente transmissão”. Cabe-nos ainda retornar à Ordo Templi
Orientis (Ordem Templária do Oriente), aqui já referenciada, da qual Gisele
Cardoso de Lemos afirma ter feito parte o poeta. Inegavelmente, a Ordem Templária
de Portugal descende, tradicional e ritualisticamente, dessa ordem e, de certa
forma simplista, podemos dizer que todas as ordens iniciáticas derivam de uma
mesma Tradição Ocultista Ocidental.
[1] Ver Simbologia e esoterismo em “Iniciação”, de Fernando Pessoa, de Gisele Cardoso de Lemos.
[2]
PESSOA, Fernando. Da República (1910 -
1935). (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão.
Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979. P. 132.
[3] PESSOA, Fernando. Da República (1910 - 1935). (Recolha de
textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização
de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979. P. 135.
[4] Grifo nosso.
[5] PESSOA,
Fernando. Pessoa Inédito.
(Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros
Horizonte, 1993. P. 196.
Lucca Tartaglia está
onde Deus é servido conceder-lhe que esteja, em companhia dos anseios,
desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado
das casas e dos sonhos. Graduou-se (ou Graduaram-no) na Faculdade de
Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa. É colunista na
ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área
de Literatura (Cabala e Estudos Pessoanos).
0 comentários:
Postar um comentário
Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.