Berlinês avançado
Estes dias li o quão uma conterrânea se sente feliz em Berlim por se ver livre da
„escravidão brasileira da beleza“ e assim poder ser mais natural e leve, aceitando-se como é. Ao sair de seu meio, da sua cultura, ela pôde encontrar pessoas que pensam e agem de uma outra forma, e ver e viver alternativas.
Ao sairmos de nosso contexto há a possibilidade de um distanciamento daquilo que „somos“, esta experiência pode ser ignorada ou vivida, depende de como ela vai bater na sua alma. Pessoas afortunadas usam essa experiência para refletirem sobre si mesma, para questionarem o que têm sido ou feito e, então, para decidirem se querem experimentar serem diferentes ou não. „escravidão brasileira da beleza“ e assim poder ser mais natural e leve, aceitando-se como é. Ao sair de seu meio, da sua cultura, ela pôde encontrar pessoas que pensam e agem de uma outra forma, e ver e viver alternativas.
El Bocho, Berlim |
Morar em Berlim, enfim morar „no estrangeiro“, é experimentar o estranhamento da cultura do outro e também da própria cultura e, consequentemente, num sentido mais profundo, é experimentar o estranhamento de si mesmo. Quem resiste a isso, no fim, acaba levando a sua vida no estrangeiro dando murro em ponta de faca. Uma outra alternativa é se fechar e construir para sí um mundinho a parte, é recusar a reflexão. Infelizmente muitos resistem por razões diversas e não me cabe aqui julgar esta decisão, eu pesssoalmente acho apenas um pouco mais dolorosa.
O estranhamento, que se manifesta em várias situações, conhecemos como "choque cultural". Usado no plural, estes são vividos diariamente e, às vezes, acontecem de forma tão sutil que mal percebemos o „problema“. Fica só a sensação esquisita. Eles também nos oferecem a oportunidade de relativizar a nossa própria cultura, de percebermos em exemplos práticos, no dia-a-dia, o quanto muito do que somos são códigos construídos. O „como ser educado“, o como „ser homem ou ser mulher“, o como „ser mãe e pai“ etc, não deixa de ser - a grosso modo - tudo criado.
Consequentemente o „como somos“ passa obrigatoriamente por um conjunto de convenções inventadas e combinadas por um grupo de pessoas. Saiu desse grupo, a combinação é outra. Vejo como uma das tarefas do imigrante, e talvez a mais difícil, a desconstrução e construção desse „como ser“.
Ilustrando o dito acima, situações onde meus códigos combinados se chocaram com os códigos combinados de Berlim.
Papo furado na fila ou sala de espera. Ninguém fica conversando numa fila ou numa sala de espera e se você insistir em passar o tempo num gostoso „papo furado“, pode ter certeza que está irritando sobremaneira a maioria das pessoas. É claro, dá pra ter sorte e encontrar um dos poucos berlinenses que vão curtir isso, mas não convém contar com ela…
Ilustrando o dito acima, situações onde meus códigos combinados se chocaram com os códigos combinados de Berlim.
Papo furado na fila ou sala de espera. Ninguém fica conversando numa fila ou numa sala de espera e se você insistir em passar o tempo num gostoso „papo furado“, pode ter certeza que está irritando sobremaneira a maioria das pessoas. É claro, dá pra ter sorte e encontrar um dos poucos berlinenses que vão curtir isso, mas não convém contar com ela…
A comunicação diária nas ruas é, como eu chamo, bem „masculina“. Ela tem de ser objetiva, curta, direta, eficiente, e no final só um obrigado basta. Nada de usar o condicional (como aprendemos no curso de alemão), quer irritar um berlinense da gema é pedir pãozinho na padaria no condicional. E se esse malabarismo gramatical ainda vier acompanhado de um sorriso… ai! Você vai receber junto com seus pãezinhos uma cara feia!
Sorrir. Sorrir é mostrar os dentes. Não é aconselhável sorrir para um cachorro desconhecido, afinal ele pode ver isso como uma agressão. Para evitar também qualquer desentendimento não é aconselhável sorrir para um berlinense. Para ele, um desconhecido que sorri é suspeito. „Sorriu por que?“, „Qual o motivo?“, „Esta rindo de mim?“ E acreditem, não há coisa mais chata do que ter um sorriso não correspondido. Por exemplo, logo de manhã, quando você vai comprar seu pão.... Uma péssima maneira de começar o dia.
Mas tenha certeza, se você for assíduo na padaria, for direto e curto, não sorrir logo de cara e deixar o condicional de lado, em algum momento vai começar receber um „bom dia“ e, se o padeiro, inesperadamente, fizer um comentário qualquer, ele já lhe aceitou como cliente da casa.
Existe uma expressão na Alemanha para o "berlinês", que nomeia a mistura do dialeto falado na cidade e na região de Brandenburgo com um humor grosseiro: Berliner Schnauze. Além do humor, coloque aí o jeito simples e direto de falar o que pensa, de maneira espontânea, às vezes com pouca paciência, além da certa aversão a muitos „frufrus“. Com o passar do tempo aqui, se aprende a perceber e - ao menos no meu caso - a gostar desse humor. Como Berlim foi uma cidade industrial e a maioria de seus habitantes eram trabalhadores com uma forte consciência de classe, me pergunto se não vem daí este jeito de ser...
Nestes meus muitos anos de "estranhamento" eu me senti realmente integrada na cultura da cidade, quando ouvi e entendi esse humor, e a minha coroação foi rebater com sucesso o comentário sarcástico/irônico/brincalhão feito, de maneira direta, sobre você ou sobre uma situação que acontece no momento. E isso eles fazem com a maior das boas intenções, garanto, porque a maneira de ofender é bem outra. Quando souber diferenciar isso daquilo, de um tampinha nas suas costas e considere-se num nível avançado de berlinês!
Mas, como são as coisas, a cidade está mudando demais nestes últimos 25 anos e esse „charme berlinense“ pode deixar de ser característico da cidade, um pouco assim como em São Paulo, que depois dos anos 70, foi perdendo seu "charme italiano". Ah! E não se preocupe, muitos alemães também sentem choques culturais quando vêm para Berlim.
Fotos: Fedo Suarez
Fotos: Fedo Suarez
Ana Valéria Celestino é historiadora
e mora em Berlim. Terminou dois “estudos de História” uma vez no Brasil outra na Alemanha. Especializando-se na leitura de manuscritos, o que quase significa: “quanto mais ruim for o garrancho melhor”. trabalhou no Brasil como paleógrafa, mas a vida quis a tradução, trabalho que exercia durante os estudos e até hoje.
4 comentários:
Muito bom, Ana! mesmo não sendo 'cidadão vitalício', se sente esse choque cultural...viajei na sua crônica e lembrei de muitas situações, ainda mais quando a gente está de bem com o mundo e expressa um bom humor espontâneo e inesperado...
29 de abril de 2015 às 17:22abç.
Bel
Que bom, Bel! Obrigada. Abraço
1 de maio de 2015 às 10:16É bem isso mesmo, não é? A gente pode se fechar no nosso mundinho e brasileirismos ou se abrir pra uma nova cultura, deixar que um novo jeito de existir e ser, nos remodele e até nos surpreenda... opening the minds!....
5 de maio de 2015 às 12:37Bem isso Lari, hoje mesmo vivi mais uma vez o jeito brincalhão e direto do berlinense.
12 de maio de 2015 às 16:28É muito legal ; D
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