terça-feira, 14 de abril de 2015

Na falta de um panelaço


Era para o ruído do alumínio, do aço inox, do titânio, do ferro fundido esmaltado ainda estar ecoando pelas varandas de todo o país. Mas não. Nem um sussurro de teflon foi ouvido mesmo diante daquela cena distópica: trabalhadores sendo agredidos do lado de fora do Congresso Nacional – por se manifestarem contra o projeto de lei que amplia a terceirização no mercado de trabalho –, enquanto empresários eram representados lá dentro pelos parlamentares que eles financiaram e elegeram.

Para quem ainda não sabe ou não procurou saber, o tal projeto de lei da terceirização – cujo texto-base foi aprovado pela Câmara dos Deputados na última semana em regime de urgência – legaliza a contratação de prestadoras de serviços para executarem atividades-fim numa empresa. Ou seja: uma escola, que hoje já pode terceirizar os funcionários da limpeza e da cantina, poderá, caso a lei seja sancionada, terceirizar até os professores. O que isso significa? Que a escola se livra das responsabilidades trabalhistas relativas a seu empregado e as transfere para uma pessoa jurídica menor – que, como a experiência tem mostrado, nem sempre honra seus compromissos, age corretamente ou mesmo paga os salários em dia (quando paga).

Não por acaso as megacorporações midiáticas – empresas mantidas por outras empresas, os anunciantes – têm apoiado despudoramente esse projeto de lei. Escorada em analistas escolhidos a dedo, a imprensona justifica a “flexibilização das relações de trabalho” (expressão gourmet para “quebra de direitos trabalhistas”) com o mantra capitalista do aumento da competitividade. Recentemente, um editorial do Globo – que um dia já manchetou o quão desastroso seria para o Brasil a criação de um décimo terceiro salário – criticou uma proposta de redução da jornada de trabalho afirmando que a França e outros países europeus, onde a medida foi adotada, “tinham perdido competitividade no ambiente globalizado ao concorrer com países da Ásia, [...] que não tinham restrição legal para o número de horas trabalhadas”.

É ou não é de parar o mundo e pedir um Engov – o jornal de maior circulação do país sugerindo que, em nome da tal “competitividade”, valeria até prescindir da legislação que protege o empregado ao limitar sua carga horária de trabalho? Confesso que, ao me deparar com esse artigo, por pouco não entrei numa cápsula do tempo e voltei ao século dezenove: olha lá os senhores de engenho reclamando que a economia do império será irreparavelmente prejudicada com a abolição da escravatura. Não é à toa que já ouvi gaiato por aí brincando com a possibilidade de o Eduardo Cunha, presidente da Câmara, botar em votação a revogação da Lei Áurea.

Não dá ideia.

Já bastam as manchetes querendo convencer cada cidadão – principalmente o que será mais prejudicado com a terceirização e afins – de que estão ali apenas para informar. Não, não estão. Como certa vez alertou o filósofo e linguista Noam Chomsky, “o propósito da mídia de massa não é informar, mas dar forma à opinião pública de acordo com o interesse do poder corporativo”. E ela (a mídia) faz isso com talento de dar inveja ao ilusionista mais competente que o Mister M jamais desmascarou: terceirizando seu discurso para os chamados “midiotas úteis”, criaturas que, do alto da sagacidade de seus dois neurônios, não só desdenham de temas realmente importantes, como ainda regurgitam a fala de quem faz o que for necessário para alavancar o próprio lucro.

Inclusive esmagá-las cada vez mais.

Entre esses temas importantes, está uma reforma política que combata a crise de representatividade que tem distanciado povo e parlamento; uma reforma que acabe com o financiamento privado para campanhas eleitorais, o que ajudaria a diminuir consideravelmente a sensação (sensação?) de que os políticos chegam às suas respectivas casas legislativas como jogadores que entram em campo uniformizados, das chuteiras aos bumbuns, com os logos de seus patrocinadores.

Outra matéria fundamental é a famigerada regulação da mídia, que para os desantenados é uma tentativa de censura por parte de quem está no poder. Pois não é. Aliás, é justamente o oposto. Regular a mídia é democratizar a informação, é romper com o monopólio das megacorporações (aquelas empresas mantidas por outras empresas etc. etc.) que insistem em contar apenas um lado da história – o que lhes interessa, é claro – e censurar todos os outros. Ou terá sido mera coincidência que os especialistas entrevistados ontem no jornal só enxergassem vantagens na terceirização?

Antes de concluir minhas paneladas, peço licença ao leitor que as aguentou até aqui para voltar ao midiota, ao sujeito de ingênuos predicados que, após mais uma edição daquele mesmo jornal, só consegue repetir o bordão “Fora PT” e similares. Mal sabe ele que o malditupetê – responsável pela corrupção, pela luta de classes, pela violência urbana, pelo racismo, pela intolerância religiosa e por todos os males que passaram a frequentar o país há pouco mais de uma década – votou unanimemente contra a tramitação urgente do projeto de lei da terceirização e, por tabela, contra os empresários; ao contrário da oposição, que, convenientemente blindada pela grande imprensa, foi a favor de mais um golpe contra os trabalhadores.

Não dá para piorar? Dá. Sempre dá. Especialmente quando o fulano do parágrafo aí em cima – ao final da leitura e apesar das incontáveis evidências de que o capitalismo segue são, salvo e selvagem – retruca inconsolável que, do jeito que as coisas vão, logo seremos todos cubanos; que vamos virar uma Venezuela; que caminhamos, enfim, para o comunismo.

Uma frigideira e uma colher de pau, por favor.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

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