domingo, 12 de abril de 2015

O gene da normalidade.





Muita gente tem preocupação em marcar lugar no mundo, destacar-se do ordinário, compor um personagem ou personalidade diferente dos demais. Bom, este não é o meu sonho. Meu sonho, ao contrário, é sentir-me integrada, finalmente identificada, sem os conflitos habituais de quem não se adapta ao meio, ainda que tanto se esforce.
Talvez por isso, escreva sobre mim. Porque escrevendo sobre mim, acabo por descobrir que o outro, enfim, não é assim tão melhor que eu. Que minhas dores e dilemas não são exclusivos e que por mais que a maioria diga e aparente jamais ser abatida pela insegurança de sentir-se, ao mesmo tempo, repleta de alegria e inundada de tristeza, é, sim, abatida pelos mesmos sentimentos que eu, sometimes.
Por isso, escrevo tanto nos dias felizes como nos tristes.
As palavras absorvem a energia que sobra, seja ela do bem, seja ela do mal. Porque a energia extra, ainda que seja boa, tem consequência ruim. Explico: a alegria exagerada ou euforia, cobra, brevemente, ao corpo e à alma, os excessos que concede. Por este motivo, almejo a normalidade, o estar, como nas minhas estações de tempo preferidas, em clima ameno (um dia de outono, ensolarado, mas agradável, sem o sol incandescente do verão, sem o frio inibidor do inverno, sem tormentas e trovoadas).

Contudo, estou distante do ideal.

O que sucede comigo, apesar da busca intensa por equilíbrio, é um alternando de estados d'alma, um sobe e desce na escala das emoções e a escrita exerce papel significante, imprescindível, improrrogável até, na tarefa de me adequar.
No meu blog "Nunca te vi, sempre te amei" (cafehparis.blogspot.com), anotei um trecho das cartas de Van Gogh a Theo, em que Van Gogh fala ao irmão sobre a simplicidade, sobre esse incorporar-se ao mundo. E ele usa o personagem mais corriqueiro que se possa imaginar: um jardineiro, (um jardineiro japonês, como os pintores que os impressionistas tanto admiravam) alcançando mais perto que ninguém que eu já tenha lido, o sentido do que quero dizer aqui:

"Ao estudar a arte japonesa, se vê inquestionavelmente um homem sábio, inteligente e filósofo, que passa o seu tempo fazendo o quê? Estudando a distância entre a Terra e a Lua? Não. Estudando política de Bismarck? Não. Estudando uma única lâmina de grama.
(...) 
Mas, na verdade, não é quase uma verdadeira religião esta que nos ensinam esses japoneses tão simples que vivem no meio da natureza, como se fossem eles mesmo flores?"

É isso! Tão compreendido e inserto no meio que não se distingue dele: está na natureza, interage com ela, não como alguém que a usufrui, mas como quem dela faz parte. 
Por conta desse sonho, às vezes gostaria de uma profissão que usasse as mãos, pra transformar em algo útil ou belo, um toco de madeira, uma fazenda de tecido e ter entre os dedos, o produto do meu trabalho, fazer parte do milagre da recriação e assim sentir-me mais perto de Deus.

Eu sonho alto sim, sonho com as nuvens, com o impossível. Minha imaginação é fértil, meus desejos: sem medida. Minha intenção não é voar, mas viajar pelas galáxias. Contudo, me contentava também com o simples, uma rotina prevista, alguns mais próximos amigos, mais prateleiras de orquídeas, outro filho, alguém pra ajudar com a vida. Eu sonho alto, acredito em absurdos, me jogo do precipício, mas também volto pro início, revejo meus passos, prossigo. Quem dera minha vida inteira fosse como as manhãs - minha mente livre da poluição do mundo, a morna perspectiva do dia que começa, sem seus cansaços, desesperos, sem o fracasso dos planos que não deram certo. Eu sonho alto, mas o mais alto que sonho, talvez, seja viver como um jardineiro vive.


Sonho de ser normal, de não ter grandes conflitos, dúvidas intermináveis, nem pressentimentos, pensamentos, lágrimas que não se sabe de onde vêm. E não sentir sentimentos que não são meus e não incompreender com o raciocínio, o que compreendo com o espírito (independentemente do querer). Ser simples como um animal selvagem, que não espera o amanhã e não lamenta o hoje.


Eu gostaria de ter nascido leão (macho e com juba) e lutar pela sobrevivência com ímpeto, como este bicho por si mesmo, (não como quem está a superar fraquezas). 
Pelo simples fato de que é pra isso que se existe. E mais nada.

Simples como um jardineiro, um carpinteiro, um alfaiate, que manipula a matéria e a transforma - verdadeiros alquimistas.
Simples como meu avô.
Meu avô sempre usava uma regata por baixo da camisa pra se proteger da friagem, enfiada por baixo da calça social, de tecido e cós alto, com passa cinto. 
Ele tinha bronquite e a cada vez que inspirava e expirava com tanta dificuldade, recordava o valor da vida. 
Meu avô afiava serrotes e, teve um tempo, trabalhava no cinema. Era uma época em que a cidade pequena de que minha gente veio, tinha um cinema de rua. Eu era criança e era muito importante e pomposo pra mim, ter um avô que rodava os filmes no cinema da cidade.
Meu avô também era marceneiro e fazia as piadas mais simples que você pode imaginar (piadas que, pensando melhor, foram as únicas que compreendi e achei graça até hoje).
Meu avô era magro e alto, moreno, e sua língua ficava em funil quando ele assoviava ou respirava com mais força. 
Algum professor disse que é preciso um gene específico pra ter habilidade de curvar a língua.
Eu não tenho. Nem esse, nem o da simplicidade de existir sem poréns e névoas como meu avô: os olhos cheios de vontade de viver. Contente, apesar da doença, apesar do ar que faltava. 
(A doença: um fator que tirava do meu avô, o ser comum. Mesmo assim ele não confrontava nem o viver, nem a dificuldade de viver. A simplicidade é sábia).

Estar em paz, independentemente das circunstâncias.

Como diz Clarice Lispector, simplesmente SER (em "Um sopro de vida").

Talvez não seja assim tão estranho este sonho.... Afinal, ainda que em segredo, estar em paz e não estar em paz, põe a humanidade a andar pé ante pé, nos caminhos da terra, nos caminhos do céu...


"O meu cão me ensina a viver. 
Ele só fica 'sendo'. Ser é a sua atividade. 
E ser é a minha mais profunda intimidade". 







ouça esta canção e entenda com o coração, o que não está dito.









Larissa Germano é autora de "Cinzas e Cheiros" e escreve nos blogs Palavras Apenas (naoapenaspalavras.blogspot.com) e Nunca Te Vi Sempre Te Amei (cafehparis.blogspot.com), Tem perfil no facebook e no twitter e a página Lári Prosa e Trova no facebook. É também compositora intuitiva e tem perfil no Sound Cloud e Youtube.



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