Exercício de empatia
Passei os últimos dias imaginando o que teria acontecido comigo se eu não fosse filho da dona Angela e do seu José – à época da minha concepção, dois adultos que já ganhavam o próprio dinheiro e estavam casados havia três anos. E se eu não tivesse sido tão desejado, tão planejado, tão amado mesmo antes de vir à luz?
Se minha mãe não pudesse ter largado o emprego para ficar em casa trocando minhas fraldas? Se eu não tivesse morado num apê com quarto só para mim e meu irmão? Se meus pais não tivessem feito festinha com bolo e brigadeiro nos meus aniversários? Se não tivessem encomendado ao Papai Noel (quase) todos os brinquedos que sempre quis? Se não tivessem me levado ao cinema para ver os Trapalhões e depois ao Bob’s para tomar um sundae? Se não tivessem me dado a chance de conhecer a Disney ainda tão jovem? Se eu não tivesse estudado num colégio particular? Se eu fosse obrigado a faltar à escola para cuidar do meu irmão mais novo? Se meus pais não tivessem me ajudado com o dever de casa? Se não tivessem pagado o curso de inglês e o de informática? Se não tivessem permitido que eu cursasse a universidade inteirinha sem precisar trabalhar?
O que teria sido de mim se por acaso eu tivesse nascido de um mero desencontro, como tantos por aí, entre dois jovens ainda nos hormônios da adolescência? Se meu pai – quem sabe um aviãozinho do tráfico, ou um desses pivetes que batem carteira nas grandes cidades – tivesse abandonado minha mãe ainda grávida? Se ela – tão imatura – não me quisesse de verdade? Se só tivesse me aguentado nove meses porque não pôde pagar um bom médico para fazer o serviço?
A imaginação persistiu: e se, por uma fatalidade geográfica, eu não tivesse sido criado num bairro com saneamento básico, água encanada, ruas asfaltadas, luz e relativa segurança, mas sim numa favela onde todo dia (como lembra o sociólogo Antonio Engelke) traficante matasse traficante, traficante matasse morador, polícia matasse traficante, polícia matasse morador, polícia torturasse morador para saber de traficante, traficante torturasse morador para saber de polícia, polícia extorquisse traficante – um lugar, enfim, onde a vida não tivesse o menor valor?
E se minha mãe fosse obrigada a me deixar sozinho nesse ambiente porque precisava passar o dia catando latinha? Se à noite, enquanto eu chorava, ela bebesse para não me escutar? Se, exausta da rotina sem perspectivas, não olhasse o caderno que eu trazia da escola? Se eu começasse a matar aula para chamar sua atenção e ela não percebesse? Se eu passasse a ter mais e mais dificuldades de entender o que a professora escrevia no quadro (por ir à escola raramente)? Se aquelas letras – e o mundo que elas representam – me fossem cada vez mais incompreensíveis? Se eu tivesse que abandonar de vez os estudos para olhar meus irmãos? Se de repente eu visse naqueles caras cheios de ouro e minas uma chance de ter o que jamais tive, e talvez nunca tivesse? Se eu conseguisse ao menos uns trocados pro pó que me faria esquecer, ainda que por pouco tempo, a merda de buraco em que vivia? Se a patrulha me pegasse roubando celular e me levasse pro mato só para me encher de porrada? Se o prefeito da minha cidade dissesse que sou apenas mais um caso de polícia? Se os playboys que moram nos prédios do outro lado da rua apontassem para mim e vissem ali só um moleque com o demônio no corpo, um pedaço de pau que ia morrer torto, uma criatura de índole má, que já havia nascido ruim, que tinha deliberadamente escolhido ser cruel com a sociedade?
Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
1 comentários:
Tens razão Fábio, boa reflexão. Nascer também é uma questão de sorte...
26 de maio de 2015 às 08:54Postar um comentário
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