terça-feira, 9 de junho de 2015

Ensaio sobre a cegueira


Saí do cinema após a sessão de Entre abelhas com a certeza de que a situação vivida por Bruno (Fábio Porchat) – depois de se separar da esposa, aos poucos ele passa a não ver mais quem está à sua volta – não é exclusividade dele: as pessoas estão deixando de enxergar as pessoas. Estão deixando de enxergar o outro. À medida que esse mal avança, passam a enxergar apenas os seus iguais. Apenas a si mesmas.

Não por acaso um exercício de empatia, como o que propus na última coluna, tenha provocado tanto desconforto em certos leitores. É muito mais fácil – pelo menos para aqueles cuja paisagem diária é a Lagoa Rodrigo de Freitas ou afins – olhar pela janela do “podia ser eu” quando a vítima é o médico que podia ser seu pai, seu vizinho, seu amigo; que podia ser, enfim, você mesmo.

Difícil, compreensivelmente difícil, é olhar com as córneas (os cornos?) do outro; é se colocar no lugar de um sujeito que vive noutro planeta, apesar de viver na mesma cidade; um indigente que podia ser, com sorte megassênica, o porteiro do seu prédio ou a caixa da padaria onde você compra seus amanteigados – aquelas criaturas para as quais tantas vezes não sobra um bom-dia, muito menos um sorriso.

Há quem diga por aí, do alto de sua miopia, que recuperar a história de um menino capaz de matar por causa de uma bicicleta é defender bandido, é colaborar com a impunidade. Não é. Resgatar tragédias – como a família desestruturada ou a ausência do Estado – que podem levar a outras tragédias não significa impedir ou não querer uma punição justa; significa tão somente investigar as possíveis causas desses atos bárbaros.

Só entendendo por que eles acontecem será viável combatê-los de fato.

Reduzir a discussão a um mero desejo de vingança – tantas vezes confundida com justiça –, ao caquético clichê do bem contra o mal – quantas vezes difundido por manchetes sensacionalistas –, ao senso supercomum de que bandido já nasce pronto, de que toda crueldade está nos genes ou (pior) na alma, não resolve a questão. Ao contrário. Só contribui para que se perca mais uma oportunidade de enfrentá-la.

Continuar achando que, por um golpe de azar, atravessamos um surto de psicopatia (o que explicaria os casos diários de violência extrema) e tentar curá-lo apenas com os analgésicos da repressão policial aprofundará ainda mais o abismo existente em nossa sociedade; um abismo que, se tem seu prólogo no drama estrelado por Fábio Porchat, pode ter seu desfecho noutro filme, de horizonte bem mais árido – o novo Mad Max.

Nele, o protagonista – um dos poucos sobreviventes de um mundo em que as areias da barbárie há muito cegaram a humanidade – já não sabe dizer quem é mais louco: se ele ou todos os outros.







Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

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