sábado, 22 de agosto de 2015

A escrita e as vestes do entremeio: Sobre a voz que vem de outro lugar e o vazio que nos constitui.



       Essa semana, no Espaço do Leitor, contamos com a participação de Éderson Luís Silveira que elucida sobre a tarefa árdua de escrever em uma perspectiva fora da tradicional. Um breve estudo literário. 




O presente texto emerge a partir de uma responsabilidade (quase) inconcebível: trazer aos leitores reflexões situando a tarefa árdua de escrever (e interpretar) nos terrenos do entremeio (entre o início e o fim). Localizando a escrita nesse plano haveremos então de considerar a dor do parto e a angústia do início de qualquer intervenção que vise impregnar a presença daquele que escreve em uma folha em branco. Ao contrário de aulas de redação tradicionais que subdividem textos em princípio, meio e fim, escrever não é tarefa fácil que se reduz a começar a partir de uma inicial maiúscula e rumar na direção de um ponto final dispondo ideias entre o começo e o fim. Algo escapa àquele que escreve. Desse modo, não se pretende aqui tomar o texto como inspiração, mas como transpiração, através da alusão à dor de nascer, considerando o ser humano que escreve no sentido que Max Weber atribui a cada um de nós, enquanto animal que, ao nascer, está atrelado às teias de significações que ele mesmo teceu na história e assume-se então a incompletude fundante de toda palavra. Trata-se de um texto para possibilitar o descaminho daquele que escreve e, possivelmente, daquele que lê.

Inspirando-nos em dois autores situados (pelos que vieram depois e, através das chaves de leitura possibilitadas por seus escritos) nos estudos da arte e da literatura, refugiamo-nos então sob a presença de uma voz que vem de outro lugar. Seus nomes são Maurice Blanchot e Georges Didi-Huberman. Maurice Blanchot é um dos responsáveis na cena teórica da qual partimos para impregnar nos estudos literários e nos estudos sobre a linguagem em geral um elemento perturbador: existe um exterior constituinte que não esgota de fazer reverberar palavras para além das que foram escritas, uma voz vinda de outro lugar que “vibra ainda que longe como uma tormenta/que não sabemos se se está aproximando ou indo embora” (BLANCHOT, 2011, p. 43) constatação que ele traz à tona inspirado nos versos de Samuel Wood. Nossa segunda inspiração, através das palavras de Georges Didi-Huberman, um historiador das artes, pode então acrescentar ao presente texto de caráter ensaístico que aqui propusemos (eu e os leitores, pois ao ler cada linha, dá-se a construção de outro texto, para além dos vestígios físicos que a tinta das palavras aqui foram se deixando impregnar) outras reverberações do que aqui está sendo proposto. À voz vinda de outro lugar em Blanchot vem somar-se um vazio que nos observa e, por isso mesmo, nos constitui.

Como se o ato de ver acabasse sempre pela experimentação tátil de um obstáculo erguido diante de nós, obstáculo talvez perfurado, feito de vazios. (…) Mas este texto admirável propõe um outro ensinamento: devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 31, grifo do autor)

Cabe então destacar que, sob a égide das problematizações que aqui deixamos inscritas, não cabe aquele que escreve pensar a si como começo de onde emerge a totalidade dos sentidos possíveis. A obra aberta e a natureza da arte e dos clássicos é tida a partir da característica de possibilitarem as palavras escritas outras reverberações com o passar do tempo. Se para Jorge Larrosa, a partir de Foucault, é a experiência e não aquilo que colocamos no lugar do verdadeiro que dá sentido à escritura, então toda escritura, assim como toda interpretação inscreve a dialogicidade como instância inerente a cada texto escrito com outros textos em uma cadeia de enunciados que reverberam vazios a partir da ação daquele que assina o texto assim como de vazios que escapam aquele que escreve.

Esta era uma das preocupações de Platão, para quem a “verdadeira” linguagem, capaz de remeter a algum referente “palpável” seria a fala, em que a linguagem encontraria garantia de existência viva na presença do enunciador. Ao desconfiar da escrita, Platão a caracteriza como palavra morta, relegada ao esquecimento, porque ela não tem por trás de si um homem real preocupado com a verdade daquilo que diz. Então, a escrita e a pintura, por assemelharem-se em não dizer o verdadeiro, por abrirem-se a um vazio desconcertante de possibilidades, tornam-se terríveis: porque o silêncio majestoso da pintura e da escrita abrem ao homem possibilidades de terras estrangeiras. Por isso, para Sócrates, o que há de terrível na escrita é a sua semelhança com a pintura, já que, no diálogo com Fedro, ele assinala que os rebentos desta não se apresentam como seres vivos, mas se calam majestosamente quando interrogados. Não há retomada de origem ou início primordial nem finalidade única possível e essa abertura da escrita, das interpretações da escritura com o passar dos tempos, ao trazer à tona a exclamação de Calvino sobre os clássicos como os que não terminaram de dizer o que tinham para dizer, também se abre para duas ressalvas: o encontro com o vazio não significa que não existe possibilidade de interpretar, mas que em toda interpretação algo escapa. Finalmente, não se está defendendo que se possa interpretar qualquer coisa, como pode fazer parecer: há ancoragens possíveis e estas são tantas quantas a escrita ou a arte permitirem e não qualquer interpretação. Sobretudo a responsabilidade de assumir, daqui em diante, a recusa às presunções que atestam certezas irrefutáveis, nos terrenos da escrita e da interpretação, já que:

Toda palavra iniciante, ainda que seja o movimento mais suave e mais secreto, é, porque nos empurra infinitamente para adiante, aquela que abala e que mais exige: tal como o brando raiar do dia no qual se declara toda a violência de uma primeira claridade, e tal como a palavra oracular que nada dita, que a nada obriga, que nem sequer fala, mas faz desse silêncio o dedo imperiosamente fixo na direção do desconhecido. (BLANCHOT, 2011, p64)



Referências:

BLAANCHOT, Maurice. Uma voz vinda de outro lugar. Trad. Adriana Lisboa. RJ: Rocco, 2011.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. 2ª ed. Trad. Paulo Neves São Paulo: Editora 34, 2010.

PLATÃO. Fedro. Introdução, tradução e notas de José Ribeiro Ferreira. Lisboa/São Paulo: Verbo, 1973. 




Éderson Luís Silveira é mestrando em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina –UFSC, pós-graduando em Ontologia e Epistemologia e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande. É membro do Grupo de Estudos em Territorialidades da Infância e Formação Docente (GESTAR/CNPq) 
E-mail: ediliteratus@gmail.com

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