A escrita e as vestes do entremeio: Sobre a voz que vem de outro lugar e o vazio que nos constitui.
Essa semana, no Espaço do Leitor, contamos com a participação de Éderson Luís Silveira que elucida sobre a tarefa árdua de escrever em uma perspectiva fora da tradicional. Um breve estudo literário.
O presente texto emerge a partir de uma responsabilidade
(quase) inconcebível: trazer aos leitores reflexões situando a tarefa árdua de
escrever (e interpretar) nos terrenos do entremeio (entre o início e o fim).
Localizando a escrita nesse plano haveremos então de considerar a dor do parto
e a angústia do início de qualquer intervenção que vise impregnar a presença
daquele que escreve em uma folha em branco. Ao contrário de aulas de redação
tradicionais que subdividem textos em princípio, meio e fim, escrever não é
tarefa fácil que se reduz a começar a partir de uma inicial maiúscula e rumar
na direção de um ponto final dispondo ideias entre o começo e o fim. Algo
escapa àquele que escreve. Desse modo, não se pretende aqui tomar o texto como
inspiração, mas como transpiração, através da alusão à dor de nascer,
considerando o ser humano que escreve no sentido que Max Weber atribui a cada
um de nós, enquanto animal que, ao nascer, está atrelado às teias de
significações que ele mesmo teceu na história e assume-se então a incompletude
fundante de toda palavra. Trata-se de um texto para possibilitar o descaminho
daquele que escreve e, possivelmente, daquele que lê.
Inspirando-nos em dois autores situados (pelos que vieram
depois e, através das chaves de leitura possibilitadas por seus escritos) nos
estudos da arte e da literatura, refugiamo-nos então sob a presença de uma voz
que vem de outro lugar. Seus nomes são Maurice Blanchot e Georges
Didi-Huberman. Maurice Blanchot é um dos responsáveis na cena teórica da qual
partimos para impregnar nos estudos literários e nos estudos sobre a linguagem
em geral um elemento perturbador: existe um exterior constituinte que não
esgota de fazer reverberar palavras para além das que foram escritas, uma voz
vinda de outro lugar que “vibra ainda que longe como uma tormenta/que não
sabemos se se está aproximando ou indo embora” (BLANCHOT, 2011, p. 43)
constatação que ele traz à tona inspirado nos versos de Samuel Wood. Nossa
segunda inspiração, através das palavras de Georges Didi-Huberman, um
historiador das artes, pode então acrescentar ao presente texto de caráter
ensaístico que aqui propusemos (eu e os leitores, pois ao ler cada linha, dá-se
a construção de outro texto, para além dos vestígios físicos que a tinta das
palavras aqui foram se deixando impregnar) outras reverberações do que aqui
está sendo proposto. À voz vinda de outro lugar em Blanchot vem somar-se um
vazio que nos observa e, por isso mesmo, nos constitui.
Como se o ato de
ver acabasse sempre pela experimentação tátil de um obstáculo erguido diante de
nós, obstáculo talvez perfurado, feito de vazios. (…) Mas este texto admirável
propõe um outro ensinamento: devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver
nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em
certo sentido, nos constitui. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 31, grifo do autor)
Cabe então destacar que,
sob a égide das problematizações que aqui deixamos inscritas, não cabe aquele
que escreve pensar a si como começo de onde emerge a totalidade dos sentidos
possíveis. A obra aberta e a natureza da arte e dos clássicos é tida a partir
da característica de possibilitarem as palavras escritas outras reverberações
com o passar do tempo. Se para Jorge Larrosa, a partir de Foucault, é a
experiência e não aquilo que colocamos no lugar do verdadeiro que dá sentido à
escritura, então toda escritura, assim como toda interpretação inscreve a
dialogicidade como instância inerente a cada texto escrito com outros textos em
uma cadeia de enunciados que reverberam vazios a partir da ação daquele que
assina o texto assim como de vazios que escapam aquele que escreve.
Esta era uma das
preocupações de Platão, para quem a “verdadeira” linguagem, capaz de remeter a algum referente “palpável” seria a
fala, em que a linguagem encontraria garantia de existência viva na presença do
enunciador. Ao desconfiar da escrita, Platão a caracteriza como palavra morta,
relegada ao esquecimento, porque ela não tem por trás de si um homem real
preocupado com a verdade daquilo que diz. Então, a escrita e a pintura, por
assemelharem-se em não dizer o verdadeiro, por abrirem-se a um vazio
desconcertante de possibilidades, tornam-se terríveis: porque o silêncio
majestoso da pintura e da escrita abrem ao homem possibilidades de terras
estrangeiras. Por isso, para Sócrates, o que há de terrível na escrita é a sua
semelhança com a pintura, já que, no diálogo com Fedro, ele assinala que os
rebentos desta não se apresentam como seres vivos, mas se calam majestosamente
quando interrogados. Não há retomada de origem ou início primordial nem
finalidade única possível e essa abertura da escrita, das interpretações da
escritura com o passar dos tempos, ao trazer à tona a exclamação de Calvino
sobre os clássicos como os que não terminaram de dizer o que tinham para dizer,
também se abre para duas ressalvas: o encontro com o vazio não significa que
não existe possibilidade de interpretar, mas que em toda interpretação algo
escapa. Finalmente, não se está defendendo que se possa interpretar qualquer
coisa, como pode fazer parecer: há ancoragens possíveis e estas são tantas quantas
a escrita ou a arte permitirem e não qualquer interpretação. Sobretudo a
responsabilidade de assumir, daqui em diante, a recusa às presunções que
atestam certezas irrefutáveis, nos terrenos da escrita e da interpretação, já
que:
Toda palavra
iniciante, ainda que seja o movimento mais suave e mais secreto, é, porque nos
empurra infinitamente para adiante, aquela que abala e que mais exige: tal como
o brando raiar do dia no qual se declara toda a violência de uma primeira
claridade, e tal como a palavra oracular que nada dita, que a nada obriga, que
nem sequer fala, mas faz desse silêncio o dedo imperiosamente fixo na direção
do desconhecido. (BLANCHOT, 2011, p64)
Referências:
BLAANCHOT,
Maurice. Uma voz vinda de outro lugar.
Trad. Adriana Lisboa. RJ: Rocco, 2011.
DIDI-HUBERMAN,
Georges. O que vemos, o que nos olha.
2ª ed. Trad. Paulo Neves São Paulo: Editora 34, 2010.
PLATÃO.
Fedro. Introdução, tradução e notas
de José Ribeiro Ferreira. Lisboa/São Paulo: Verbo, 1973.
Éderson Luís Silveira é mestrando em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina –UFSC, pós-graduando em Ontologia e Epistemologia e graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande. É membro do Grupo de Estudos em Territorialidades da Infância e Formação Docente (GESTAR/CNPq)
E-mail: ediliteratus@gmail.com
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