Desapega
Era a mesma praça, era o mesmo banco, eram as mesmas crianças, era até o mesmo jardim. Mas naquele dia nem tudo foi igual. Um gole do papo entre dois amigos grisalhos respingou nos meus ouvidos: espera mais não, arruma suas coisas e toma seu rumo, não vale a pena investir na infelicidade.
Não vale mesmo. Os juros são altíssimos, o risco para o capital humano supera a mais sombria previsão orçamentária, e o retorno é tão líquido quanto o lucro de itaús e bradescos.
Por que seguir com o marido que ainda não troca as próprias fraldas, se você não tem vocação para mãe nem babá? Por que continuar com a namorada que prefere sapatos a livros, se você não resiste a ficar descalço em bibliotecas? Por que insistir naquela amizade colorida, se você está certo de que ela jamais vestirá branco (pelo menos para deixar a igreja ao seu lado)? Por que pagar anos no escritório de advocacia do pápi, se você não sabe, não quer saber e condena – à cadeira elétrica – quem sabe dar nó de gravata enquanto assobia a Constituição?
Por que se irritar todo santo capítulo com aquela novela ruim, se você já percebeu que o autor escreve sempre a mesma bagaça, a ponto de não mudar nem o nome da protagonista? Por que teimar em ler os textos daquele colunista reaça, se você tem certeza de que o camarada (epa) vai achar comunistas malvados até em comercial de Coca-Cola (aquele logo vermelho...)? Por que xingar diariamente o mesmíssimo congestionamento, se você pode voltar para casa naquela bike estacionada há séculos na sua garagem?
Às vezes vale tomar um porre de OLX e desapegar: do marido com síndrome de menor abandonado; da namorada que não te enxerga porque não desce do salto; da amiga que só quer se aproveitar da sua nobreza, do seu amor e de certos itens originais de fábrica; do sonho do pápi – que é só dele – de ver você dando uma gravata nos foras da lei; da novela que faz qualquer Malhação parecer Roque Santeiro; do colunista que não sai do seu abrigo nuclear com medo de ser descoberto pela KGB; do carro cujo velocímetro não atinge os trinta por hora há uns vinte mil quilômetros.
Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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