Retrato de uma terça-feira cinza
Não consigo escrever. Uso a desculpa de
sempre, começo dizendo que não começo – como quem promete doces no fim do
jantar. Acordar cedo demais (quando cinco ou seis) tem pesado a minha vista e o
ponto extremo da coluna logo abaixo da nuca. Estrangulo a minha altura – quero
estalar, preciso estalar, mas nada estala. Tenho três textos para terminar –
nenhum deles pareceria obrigação para os outros que me leem. São contos metidos
a crônicas – ou crônicas travestidas de short
stories. Não sei dizer – ou talvez hoje não saiba, nessa terça-feira cinza
de espasmos inabitáveis. A minha tendência de arredondar quando não posso
construir, a minha maldita tendência de cercar quando não enfrento.
Quantas
horas são?
Meu
estômago ronca três vezes e três vezes penso em levantar. E a minha cabeça tem
sido a roda viciada de um carro a motor, um aristocrata que foi a campo e respirou
traumas da guerra. Nunca tive talento
para mãos finas, nunca vi curiosidade na constância. Começo a desvencilhar-me
outra vez.
Percebe o quão difícil
está hoje?
Percebe o quão
dificultoso está sendo, nessa terça-feira cinza, levantar qualquer migalha? Eu
e o problema metafísico simples de não ser Antônio Lobo Antunes ou Fernando
Pessoa. Eu e a solução de não ser ambos. Eu e as vantagens intermináveis de
continuar sendo o que tenho sido. Meu deus (o menor, não o Maior), que
dificuldade insolente. Desde que prometi – uma heresia – escrever sempre e
escrever, passo por abismos intermináveis. Não seria melhor ficar calado?
Não
seria melhor?
Você acha que seria melhor? Não sei
dizer. Não hoje. Dormi tarde ontem. Ficamos - eu e meu irmão - a jogar como
dois meninos antigos. Ele também parece cansado, mas não mais do que eu. Eu
pareço mais cansado, mais sonolento, mais ruído e pareço isso e tanto mais
porque sou eu e moro aqui. Aqui onde tudo o que está faz parte do que sou. Aqui
onde as dores são maiores porque as conheço de perto. Na cidade em que vivo
dentro da cidade e da casa em que vivo. Na dobra do que entendem por mim.
Os outros estão de
férias.
Eu não posso mais ter
férias – não as tenho. Entende? Se parasse agora, como parava antes, seria o
enguiço inevitável de uma máquina que trabalha porque trabalha e gira porque
tem de girar. Não tenho mais pique para o arranque. Ele diz sempre. Eu digo. Quando
a coisa aparece, tudo se torna diferente. É diferente se alguma coisa
aparece. Nova oportunidade, nova energia.
Basta qualquer coisa e me renovo.
Desço
até o segundo andar – na casa dos meus pais. Não hoje, há dois dias. Sento-me
ao sol, numa cadeira velha e firme. Havia corrigido várias linhas. Corrigi
vários textos escritos por outras pessoas. A
situação é pior do que ele pensava. Está pior do que eu pensei. Não fazer o mínimo – ele pensou. Não
fazer nem o suficiente. Não está tão mal assim – eles dirão. Que exagero.
Minhas costas doem e a
vontade continua empurrando as palavras que pesam como três elefantes e um
jaguar. O estomago – outra vez. Não posso culpa-los. Ele não poderia culpa-los. Essa manhã cinza. Cristo, o que eu vou
fazer? A correria de sempre
– deve ser.
Escravos do tempo, do
dinheiro, do espaço. Reis de países particulares. Peixes alucinados no fervor
da correnteza, como o Coringa de Heath Ledger – cães atrás de um carro impossível
(enquanto houver um para-choque, ficaremos bem). Correndo correndo correndo –
indiscriminadamente. Num ato de loucura, saltamos para fora do rio, sufocados,
sem ar – não estamos habituados às margens. Batemos com força os braços – convencidos
das penas que não temos – batemos com força e saltamos. No salto, alimentamos a
esperança. Quase, você viu? Dessa vez foi
quase! Estreitos, de pês no chão e olhando para a lua. Metem-nos óculos
cuidadosamente preparados para ampliar o que deve ser ampliado. Estamos progredindo, não vê? Antigamente
era muito mais difícil – eles dizem. Antigamente era muito mais antigo. Dizemos. Antes era antes e não agora.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. E aquela história sobre um gato
caolho que se chamava Camões – que na verdade é uma homenagem ao Tripa – um
gato semicego que não se chama Camões. Que bagunça isso de falar sem critério
de corte.
Que bagunça isso de
estar cansado.
A corrente convence ao
rio de que só existe um caminho.
Não parem o mundo – o
ponto lá fora é perigoso. Eu não quero descer. O meu ponto é perigoso. Não
parem. Vocês não devem parar. Eles
não param. Nunca param. Não paramos. Nem quando estamos parados.
Tenho um gato em casa.
Ele e as crianças da
rua fazem com que eu me sinta um completo idiota. Ele mia porque tem fome, as
crianças correm porque correm e entram quando as mães lhes chamam. Vem, Fulana! O futuro ainda não é
problema. Quando passo por toda aquela gritaria e pelas roupas sujas e pelo meu
gato que dorme. E me sinto salvo, porque está tudo de esquina – tombado, torto –
e não enclausurado em uma redoma, conectado a um cabo. Durante alguns poucos
instantes
– durante alguns instantes
–
tudo aquilo que está lá
fora e não é o que me mostram. Tudo aquilo parece possível aparece. A visão logo
passa, mas, enquanto permanece, eu tenho certeza da minha incerteza e da salvação.
Enquanto aquilo ainda estiver lá, a minha doença – que é minha, porque sou eu o
sintoma, a causa e o remédio – desaparecerá. Posso olhar para o cinza dessa
terça-feira cinza e ver um céu nublado que é o céu e não a tristeza de um dia assombroso.
Os carros são maquinas com máquinas e combustível. O cantar dos pássaros não é
melancólico, nem alegre – o cantar é o cantar que ouço e o café não é amargura,
mas é amargo e forte. O barulho das marretas é o barulho das marretas e mais
nada. O sol que desponta preguiçoso não é um sinal de Deus e não tem preguiça.
Eu tenho preguiça e cansaço. O meu gato é um gato que não me pertence.
E mais nada.
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