quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Retrato de uma terça-feira cinza





Não consigo escrever. Uso a desculpa de sempre, começo dizendo que não começo – como quem promete doces no fim do jantar. Acordar cedo demais (quando cinco ou seis) tem pesado a minha vista e o ponto extremo da coluna logo abaixo da nuca. Estrangulo a minha altura – quero estalar, preciso estalar, mas nada estala. Tenho três textos para terminar – nenhum deles pareceria obrigação para os outros que me leem. São contos metidos a crônicas – ou crônicas travestidas de short stories. Não sei dizer – ou talvez hoje não saiba, nessa terça-feira cinza de espasmos inabitáveis. A minha tendência de arredondar quando não posso construir, a minha maldita tendência de cercar quando não enfrento.
            Quantas horas são?
            Meu estômago ronca três vezes e três vezes penso em levantar. E a minha cabeça tem sido a roda viciada de um carro a motor, um aristocrata que foi a campo e respirou  traumas da guerra. Nunca tive talento para mãos finas, nunca vi curiosidade na constância. Começo a desvencilhar-me outra vez.
Percebe o quão difícil está hoje?
Percebe o quão dificultoso está sendo, nessa terça-feira cinza, levantar qualquer migalha? Eu e o problema metafísico simples de não ser Antônio Lobo Antunes ou Fernando Pessoa. Eu e a solução de não ser ambos. Eu e as vantagens intermináveis de continuar sendo o que tenho sido. Meu deus (o menor, não o Maior), que dificuldade insolente. Desde que prometi – uma heresia – escrever sempre e escrever, passo por abismos intermináveis. Não seria melhor ficar calado?
            Não seria melhor?
            Você acha que seria melhor? Não sei dizer. Não hoje. Dormi tarde ontem. Ficamos - eu e meu irmão - a jogar como dois meninos antigos. Ele também parece cansado, mas não mais do que eu. Eu pareço mais cansado, mais sonolento, mais ruído e pareço isso e tanto mais porque sou eu e moro aqui. Aqui onde tudo o que está faz parte do que sou. Aqui onde as dores são maiores porque as conheço de perto. Na cidade em que vivo dentro da cidade e da casa em que vivo. Na dobra do que entendem por mim.
Os outros estão de férias.
Eu não posso mais ter férias – não as tenho. Entende? Se parasse agora, como parava antes, seria o enguiço inevitável de uma máquina que trabalha porque trabalha e gira porque tem de girar. Não tenho mais pique para o arranque. Ele diz sempre. Eu digo. Quando a coisa aparece, tudo se torna diferente. É diferente se alguma coisa aparece. Nova oportunidade, nova energia. Basta qualquer coisa e me renovo.
            Desço até o segundo andar – na casa dos meus pais. Não hoje, há dois dias. Sento-me ao sol, numa cadeira velha e firme. Havia corrigido várias linhas. Corrigi vários textos escritos por outras pessoas. A situação é pior do que ele pensava. Está pior do que eu pensei. Não fazer o mínimo – ele pensou. Não fazer nem o suficiente. Não está tão mal assim – eles dirão. Que exagero.
Minhas costas doem e a vontade continua empurrando as palavras que pesam como três elefantes e um jaguar. O estomago – outra vez. Não posso culpa-los. Ele não poderia culpa-los. Essa manhã cinza. Cristo, o que eu vou fazer? A correria de sempre
– deve ser. 





Escravos do tempo, do dinheiro, do espaço. Reis de países particulares. Peixes alucinados no fervor da correnteza, como o Coringa de Heath Ledger – cães atrás de um carro impossível (enquanto houver um para-choque, ficaremos bem). Correndo correndo correndo – indiscriminadamente. Num ato de loucura, saltamos para fora do rio, sufocados, sem ar – não estamos habituados às margens. Batemos com força os braços – convencidos das penas que não temos – batemos com força e saltamos. No salto, alimentamos a esperança. Quase, você viu? Dessa vez foi quase! Estreitos, de pês no chão e olhando para a lua. Metem-nos óculos cuidadosamente preparados para ampliar o que deve ser ampliado. Estamos progredindo, não vê? Antigamente era muito mais difícil – eles dizem. Antigamente era muito mais antigo. Dizemos. Antes era antes e não agora. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. E aquela história sobre um gato caolho que se chamava Camões – que na verdade é uma homenagem ao Tripa – um gato semicego que não se chama Camões. Que bagunça isso de falar sem critério de corte.
Que bagunça isso de estar cansado.
A corrente convence ao rio de que só existe um caminho.
Não parem o mundo – o ponto lá fora é perigoso. Eu não quero descer. O meu ponto é perigoso. Não parem. Vocês não devem parar. Eles não param. Nunca param. Não paramos. Nem quando estamos parados.
Tenho um gato em casa.
Ele e as crianças da rua fazem com que eu me sinta um completo idiota. Ele mia porque tem fome, as crianças correm porque correm e entram quando as mães lhes chamam. Vem, Fulana! O futuro ainda não é problema. Quando passo por toda aquela gritaria e pelas roupas sujas e pelo meu gato que dorme. E me sinto salvo, porque está tudo de esquina – tombado, torto – e não enclausurado em uma redoma, conectado a um cabo. Durante alguns poucos instantes
– durante alguns instantes –
tudo aquilo que está lá fora e não é o que me mostram. Tudo aquilo parece possível aparece. A visão logo passa, mas, enquanto permanece, eu tenho certeza da minha incerteza e da salvação. Enquanto aquilo ainda estiver lá, a minha doença – que é minha, porque sou eu o sintoma, a causa e o remédio – desaparecerá. Posso olhar para o cinza dessa terça-feira cinza e ver um céu nublado que é o céu e não a tristeza de um dia assombroso. Os carros são maquinas com máquinas e combustível. O cantar dos pássaros não é melancólico, nem alegre – o cantar é o cantar que ouço e o café não é amargura, mas é amargo e forte. O barulho das marretas é o barulho das marretas e mais nada. O sol que desponta preguiçoso não é um sinal de Deus e não tem preguiça. Eu tenho preguiça e cansaço. O meu gato é um gato que não me pertence.
E mais nada.

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