quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Até quando a realidade do outro não é a nossa?




      Hoje me dei conta, com um sentimento diferente, que vivo no "centro do mundo". Vivo num país europeu ocidental rico, um dos mais de todos. Numa grande potência econômica mundial, como dizem hoje, um global player. E nada mais coerente do que este termo para tal país e tais países que nele cabem. Brincam, jogam com o mundo, seu parque de diversões. Estão aí pra isso, esta é a sua força, o poder que os definem como tais. "O poder de influenciar o mundo, em detrimentos de muitos para o proveito de poucos." Assim em uma frase simplória-panfletária, a base do nosso tão defendido sistema capitalista.

      A Alemanha está entre os maiores exportadores de armas e de armas de guerra do mundo. Ganhou rios de dinheiro com isso, assim como outros. A guerra gera lucro: primeiro ganha-se com o comércio de armas. Depois, se tudo der certo, "ganha-se a guerra indiretamente" com os aliados vencedores. Num segundo momento ganha-se com empréstimos ao país arrasado para sua reconstrução. Abre-se um mercado, por exemplo,  para "firmas" fazerem dinheiro em obras de infra-estrutura ou com a exportações de produtos básicos, já que o país arrasado provavelmente deve ter perdido suas industrias etc e e tal... Além destas, ainda acredito que existam várias outras formas de se fazer dinheiro com a guerra. A guerra é também um mercado.


Quem planta armas, colhe refugiados
      Agora este país está vivendo um fenômeno há muito tempo previsto, o deslocamento de milhares e milhares de pessoas para o centro do mundo. A maioria dos refugiados que alcançam a Europa fogem da guerra. A Inglaterra quer repetir a sua política do pós 2. Guerra: fechar as suas portas para pobres miseráveis. A Alemanha tem uma mancha maior no seu passado, não pode fazer isso. E é, acima de tudo, um imã para estas pessoas desesperadas, porque afinal aqui está o dinheiro!

     Extremistas de direita vão às ruas protestar contra a chegada de mais pobres no país, simpatizantes concordam e engrossam o coro. Covardes urinam em duas crianças estrangeiras no trem em Berlim. Locais que seriam abrigos para refugiados são incendiados em outras cidades. Políticos de partidos oportunistas lançam mentiras na internet sobre como refugiados tiram dinheiro do povo.

    E tudo isso eu vejo pela TV, pela internet ou pelo facebook. Parece surreal, parece coisa de cinema, não me toca, não muda o meu dia a dia. Eu nunca pensei em fazer "qualquer coisa para ajudar não sei o que". Tenho uma opinião, mudei a foto de capa do meu perfil no facebook em protesto... Mais que isso não me passa pela cabeça. Eu não sou a única. Seremos nós os cidadãos a nos responsabilizar por esta catástrofe anunciada? Cabe tal pergunta? Ou nossa obrigação agora é "ajudar", como estão fazendo milhares de pessoas aqui na Alemanha e em outros lugares? Isso não aconteceu de repente, como um tsunami ou um terremoto. Isso vem sendo denunciado há anos - a minha foto de capa do face é de abril de 2014... Poderia ter sido evitado? Tenho a impressão que a "incompetência" dos Estados é uma posição política. Não pretendem organizar algo que funcione, que acolha e alente tais pessoas, para não estimular a chegada de outras mais.

      E os que ainda não se sentem tocados - como eu -  seguirão assim, até que um dia a realidade invada a zona de conforto? Assim como aconteceu com um inglês que mora em Hamburg? Estes dias ele foi pegar a bicicleta no porão do prédio e descobriu uma mulher que se escondia no local. Ele tentou conversar, ela fugiu de medo... Lendo o texto percebi que não tenho a menor ideia do que irá acontecer daqui pra frente, e que essa realidade vai deixar de ser "algo surreal" e distante. Seja por nos confrontarmos com os recém chegados ou com a reação de extrema direita... Imagino que as convicções se mostrarão e se mostrarão de forma acirrada.

      Viver no centro do mundo via passar a ter um outro significado, e nem sei e nem sabemos qual será. 

Aqui: quem ganha no comércio de armas, o artigo de Bernie Duffy sobre a mulher no porão e um statement do primeiro ministro da Hungria. 


Ana Valéria é historiadora e mora em Berlim. Terminou dois “estudos de História” uma vez no Brasil outra na Alemanha. Hoje trabalha como tradutora.


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