terça-feira, 29 de setembro de 2015

Cheia de vontades


Assim era a bolsa amarela onde Raquel – personagem do clássico romance de Lygia Bojunga – guardava cada uma delas. Três eram as que mais estufavam seu tecido: a vontade de crescer logo, a de ter nascido garoto e a de escrever. Com o tempo, as duas primeiras emagreceram, voaram feito pipa e a deixaram mais leve. A terceira, por sua vez, continuou imensa; mas, como a menina inventava uma história atrás da outra, não dava chance de o desejo engordar em excesso e pesar demais.

Dessas vontades, a de crescer eu nunca tive. Aliás, sigo não tendo. Os Mickeys que insistem em se multiplicar pela casa não me deixam mentir. Já a vontade de ser (no meu caso) menina talvez tenha ganhado um miligrama quando me disseram que eu, por ser homenzinho, seria obrigado a servir o Exército e comer comida que não a da mamãe. Por sorte, sobrei no alistamento – e a Fernanda respirou aliviada. Quanto à vontade de escrever, essa eu controlo com a dieta de crônicas que meus treze leitores conhecem bem.

Mas se engana quem pensa que minhas vontades param por aí: tem a de chafurdar no sorvete, que só diminui quando aumenta a glicose; a de sair viajando pelo mundo, que só esvazia quando esvazia o bolso junto; a de não fazer a cama quando acordo, em geral menor que a de ver a colcha impecavelmente esticada; a de transferir para a segunda todo feriado que caia no finde (um desejo platônico, admito); a de levar uma vida menos sedentária – vontade superfácil de manter em forma, já que dá e passa no primeiro sofá.

Em suma, carregar a bolsa nossa de todo dia nem megacheia, nem ultravazia é um baita desafio. Às vezes é difícil achar a medida certa. A gente pena até acertar na dose dos quereres e acaba desenvolvendo uma lordose de culpa aqui (por ter cedido a essa ou àquela vontade), uma escoliose de remorso acolá (por não ter). Felizmente, porém, o passar dos anos, a despeito das osteoporoses físicas, nos ensina que – com um dorflex de boa vontade e exercícios regulares de bom humor – a missão é possível.

A coluna agradece.

O problema é que nem sempre as pessoas conseguem atingir esse equilíbrio. Falta-lhes a postura de quem tem vontade – de aprender. Um breve passeio por aeroportos e afins controlados pela Agência Nacional de Metáforas, e o que mais se vê é passageiro na fila da Receita pagando excesso de bagagem. Não, não estou falando daquele povo que chega de Miami com duas dúzias de Azzaros e dez pares do mesmo Nike jurando que é tudo pra uso pessoal.

Falo dos que abarrotam suas bolsas das piores vontades e de lá não as tiram nem sob risco de condenação por tráfico de drogas. Falo dos que enchem a sacola alheia com sua vontade de discriminar quem usa o aparelho excretor para o número três; de disparar intolerância na direção de quem resolveu votar no vermelho e não no azul; de compartilhar ignorância com os que estão à sua volta apenas para ganhar quinze curtidas de fama.

Todos quasímodos de tanto arrastar por aí capangas atochadas de má vontade. Má vontade com a leitura para além das manchetes, má vontade com o estudo para além dos prefácios. Por sinal, leitura e estudo deveriam ser itens indispensáveis a qualquer carteira, valise ou mochila que levássemos mundo afora – fosse ela verde, abóbora ou lilás, com uma ou duzentas divisões internas, com ou sem segredo, made in China ou Chanel. Ambos são imprescindivelmente úteis e não pesam quase nada.

Como o rolinho de Neve que socamos no fundo da bolsa – pra hora em que dá aquela vontade.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

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