quinta-feira, 10 de setembro de 2015

São metáforas desarrumadas de um bombardeio em marcha lenta



Embalo a minha filha Joana que acordou num berreiro, diz o Vasco Graça Moura. Como as ondas do mar embalaram o sono prematuro de um menino morto. A minha história será para sempre povoada de crianças em azul e vermelho. Meu Deus! Quando me lembro agora de o ver brincar e avisto novamente seu pequenino Vulto transcendente, mas tão perfeito e vivo como outrora! São Trágicas Recordações, Pascoaes. No entanto, não vale esquecer. Meu menino canta, canta uma canção que é ele só que entende e que o faz sorrir, comenta o Lahmeyer Bugalho. Pois o meu menino, Bugalho, canta uma canção silenciosa, fria e úmida como as lágrimas dos refugiados. Os mesmos refugiados que - para tanta gente - se tornaram novela na TV. As bolas de sabão que esta criança se entretém a largar de uma palhinha são translucidamente uma filosofia toda. São metáforas desarrumadas de um bombardeio em marcha lenta. A brincadeira impossível, o sorriso impossível, o abraço impossível. Eu posso ver o clarão das bombas e acabo por descobrir que a Síria faz fronteira com o Brasil. Que está ao lado de mim. Criança desconhecida e suja brincando à minha porta, não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos. Entre a Turquia e a Grécia, surgi um novo continente. Respiro o peso daquele rosto na areia. Não quero saber dos símbolos. Antes a vida estampada em dois lábios ao lado de um urso. O que mais nos espanta? Você na praia, Ayslan Kurdi – você na praia. E seguem contigo todas as crianças da minha vida, na mesma posição, no mesmo silêncio. Até mesmo aquela que fui eu quando outro. Os noticiários dizem que o pai sobreviveu, mas eu duvido muito. Ele também foi levado pelas águas, tragado para o fundo. Nunca será encontrado em nenhuma praia de parte alguma. No dia 07 de setembro, Leonardo Boff publicou, no Jornal do Brasil, um belíssimo texto intitulado “O pequenino afogado Ayslan Kurdi nos faz chorar e pensar”. Esse “vovô de um país distante”, como carinhosamente se intitula, traz a imagem do Jesus Menino...

Você não pôde chegar a um lugar de paz. Mas agora, apesar de toda a tristeza que sentimos, sabemos que você, tão inocente, chegou a um paraíso onde pode enfim brincar, pular e correr por todos os lados na companhia de um Deus que um dia foi também menino, de nome Jesus, e que, para não deixá-lo só, voltou a ser de novo menino.



...o que me lembra o poema VIII de O Guardador de Rebanhos...



Num meio dia de fim de primavera / Tive um sonho como uma fotografia / Vi Jesus Cristo descer à terra, / Veio pela encosta de um monte / Tornado outra vez menino, / A correr e a rolar-se pela erva / E a arrancar flores para as deitar fora / E a rir de modo a ouvir-se de longe.


mas a minha vontade deturpa a criação do mestre – porque eu vi numa fotografia o menino voltar à terra, vindo pelo braço do mar, tornado outra vez deus, parado e quieto como nenhuma criança é capaz de fingir, a arrancar tudo de mim para deitar fora. O menino do poema tinha fugido do céu, este tinha fugido da guerra. O colo, uma praia inteira, e aquele mar como ombro.

Não me venham com conclusões. Já não importa. A única coisa que significa no mundo é o universo resumido na figura titânica do menino morto. Já disse que não quero nada. Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Se têm a verdade, guardem-na! E preguem os olhos sobre aquele cadáver de nós mesmos. Aquela romaria infinitamente soterrada. Parem com a teoria e com as soluções de papel em bares de rotina. Já vi um bebê dormindo daquele mesmíssimo jeito. Você faz ideia do que é um bebê dormindo daquele mesmíssimo jeito? Vão para o diabo sem mim ou deixem-me ir sozinho para o diabo! Não me peguem no braço! Vou me deitar ao lado dele. Vou me deitar ao lado da hipótese de estar ao lado dele e não quero mais ouvir nada que tenha a ver com símbolos.


Faço das minhas as palavras de Leonardo Boff, “Querido Ayslan, que a sua imagem estirada na praia nos suscite o pouco de humanidade que sempre resta em nós, uma réstea de solidariedade, uma lágrima de compaixão que não conseguimos reter em nossos olhos cansados de ver tanto sofrimento inútil, especialmente, de crianças como você”.

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