terça-feira, 1 de setembro de 2015

Sem filtro


Sem efeitos especiais, sem heróis e vilões, sem reviravoltas mirabolantes, apenas a vida como ela é: um almoço em família, uma briga entre irmãos, uma tarde que não passa, uma noite que poderia ter sido, um presente inesperado, uma viagem inesquecível, um dia de muito trabalho, um papo sério, uma partida de boliche, uma aula chata, um gramado macio, uma estrada pela frente.

Assim é Boyhood, a história que Richard Linklater levou doze anos filmando e que segue a infância e juventude do menino Mason (Ellar Coltrane).

Raras vezes assisti a um filme cujo ritmo captasse tão bem o fluxo dos dias, das semanas, dos meses, dos anos. Que fotografasse com tanta precisão o tempo como a sucessão de agoras que ele é. Sem nunca soar episódico, atinge uma fluidez só possível graças ao roteiro que escorre feito areia na ampulheta e à montagem discreta, que em momento algum chama a atenção para si.

O que também ajuda a jamais confundirmos as diferentes fases vividas pelos personagens é o fato de acompanharmos seu envelhecimento real e as notícias que afetam seu cotidiano, como a guerra do Iraque, as eleições para presidente nos Estados Unidos, o lançamento de mais um Harry Potter, o surgimento e o uso do Facebook.

Prova talvez maior da maturidade do roteiro e da direção é que não há flashbacks, não há narrações em off, não há personagens pensando em voz alta. O que tem de ser dito se mostra na tela na medida certa, sem supérfluos que subestimem nossa inteligência – não há necessidade de que se marrete uma ideia na cabeça da plateia ou de que se esfregue um sentimento no coração do espectador.

Ou alguém precisava desenhar que o apego do personagem de Ethan Hawke por determinado carro era símbolo de um sujeito que teimava em não crescer?

Igualmente digno de aplauso – pelo menos para quem sabe o quão difícil é traduzir a vida sem confiná-la em moldes – é o cuidado de Linklater em não resvalar no melodrama. E, convenhamos, não faltava material para isso, já que Olivia (Patricia Arquette) se envolve frequentemente com homens que têm problemas com bebida. Exemplo dessa contenção do roteiro é a cena de violência doméstica que não testemunhamos: vemos apenas a mãe de Mason já caída na garagem, enquanto o marido avisa ao garoto que ela havia sofrido um acidente.

Um último mérito (ainda que não menos importante): os diálogos. Destaque para a conversa sobre a existência ou não de magia no mundo, na qual Mason pergunta ao pai (Hawke) se elfos e afins são invenções. “E se eu lhe contasse a história de um ser gigante que vive nas profundezas do oceano, que canta e é tão grande que seu coração é do tamanho de um carro? Acharia isso mágico, não?”, ele responde entre rugas de dúvida e doçura.

Quem sabe aí esteja uma chave para interpretar a vida e, por que não, o próprio filme: para os desatentos (só para eles), nada realmente mágico acontece.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

2 comentários:

Vanisse Simone disse...

Parabéns pela crítica, texto sensível e honesto.
Um abraço Fábio.

2 de setembro de 2015 às 12:11
Fábio Flora disse...

Brigado pela mensagem, Vanisse. Grande abraço.

14 de setembro de 2015 às 10:09

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