quarta-feira, 23 de setembro de 2015

TINA GOMES: DIANTE DA PRÓPRIA DOR...


“Eu não gosto muito quando me chamam de fotógrafa, sou contadora de histórias, o que eu vivo eu passo para as fotos, cada dor eu tranco dentro da fotografia, acho que é por isso que vocês acham que tem tanto sentimento. Ali está acorrentado tudo que me machuca, em cada foto tem uma mensagem subliminar, repare nos olhos...”




A beleza será convulsiva, ou não será... diria André Breton, ao proclamar o ideal estético do surrealismo. Com a banalização das imagens, fica cada vez mais difícil que uma fotografia consiga abalar, despertar sentimentos, coisa que a fotógrafa autodidata Tina Gomes vem fazendo ao utilizar a fotografia como um meio catártico de sua subjetividade. Este também o motivo pelo qual já foi comparada à pintora mexicana Frida Kahlo que pensava que colocar o sofrimento dentro de muralhas era arriscar que o mesmo a devorasse a partir do interior, e por isso pintou intensamente a sua dor, a sua própria vida.




Tina tem 39 anos, nasceu em Guarujá, cidade litorânea de São Paulo, onde viveu até vir para a capital. Ela trabalhou durante muitos anos em uma empresa de ônibus da zona leste, lavando as rodas dos veículos, trocou óleo por um ano e meio até tornar-se cobradora. O trabalho duro e o excesso de tempo agachada e depois sentada no ônibus, fizeram com que ela desenvolvesse fibromialgia - uma doença caracterizada por fortes dores musculares. Tina Gomes anda e senta-se com dificuldades, tem problemas na coluna e hiper flexibilidade no braço direito.




Quando a empresa de ônibus em que trabalhava faliu, ele viveu um dos momentos mais difíceis de sua vida. Estava grávida de nove meses de seu sexto filho, teve problemas durante a gestação e perdeu a criança. "Eu simplesmente enlouqueci. Via estrelas, ia para a janela e queria pular para pegar a estrela", lembra. "Passei seis anos jogando Second Life. Foi navegando pela internet que comecei a me interessar pela fotografia". 




Começou a fotografar graças a um celular usado que comprou no ponto final do seu bairro. Aos poucos, a artista foi criando um estilo próprio, e não precisou de técnicas de fotometria para conseguir bons retratos. "Eu defendo uma fotografia rústica e simples. Que qualquer um possa aprender, até uma criança". Em seu apartamento, ela espera a luz ideal para o que está querendo criar. Depois, utiliza softwares de edição de imagem para criar os efeitos desejados, e com as ferramentas digitais a favor de suas emoções, de certa maneira democratiza a fotografia.




"Todo o meu trabalho é realizado com materiais que encontrei na rua. É voltado para quem é pobre mesmo".




O trabalho fotográfico de Tina é extremamente pessoal. Ela traduz o que sente em cada uma de suas fotos, utilizando somente uma EOS Rebel T3i, que apelidou carinhosamente de “Jurema”. Seu estúdio fotográfico é improvisado dentro da própria casa, e todos os elementos das fotos são itens encontrados nas ruas ou doados por amigos. Isopor, barro, folhas secas, tinta guache, farinha de trigo são alguns dos materiais utilizados na produção das fotos. É ela quem produz, dirige e fotografa os modelos, na maioria das vezes seus filhos ou vizinhos.





A ex-cobradora de ônibus começou a ganhar notoriedade quando foi descoberta por Coninck Junior, do Portal Photos, analisando trabalhos em grupos de fotografia no Facebook. “Comecei a fotografar na minha primeira crise de depressão. Nessa época, eu trabalhava como cobradora de ônibus, às vezes de 12 a 16 horas, rodando pela capital paulista. Um dia, muito agoniada, vi as minhas sombras refletidas na parede, gostei muito e comecei a me fotografar.”




Mas ao que parece essa recente notoriedade ainda não resolveu sua sobrevivência: “Estou desempregada, meu convênio foi cortado pela prefeitura e a minha família depende de doações de alimentos para sobreviver. É triste, mas é a realidade. Não faço fotos para os outros se sentirem felizes, muito menos pra agradar a alguém, muito pelo contrário, faço estas imagens para me libertar de cada dor, cada sofrimento, cada noite de fome… Me liberto a cada dia e em cada retrato.”




Apesar do seu inegável talento, de seu trabalho autoral e único, Tina não se vê trabalhando diretamente com fotografia. Seu maior desejo é dar aulas na periferia e ajudar as crianças de sua comunidade. “Meu sonho é ajudar as pessoas que estão no mesmo lugar que eu. Há muitas Tinas Gomes por aí”.






Mas as imagens de Tina, as que aparecem aqui e as que ela ainda certamente vai fazer, vão constituir imaginários e podem até fazer escola, já que “as intenções do fotógrafo não determinam o significado da foto, que seguirá seu próprio curso, ao sabor dos caprichos e das lealdades das diversas comunidades que dela fizerem uso”.




Referências:
Sontag, Susan – Diante da dor dos outros, Editora Schwarcz, S.Paulo: 2003.



Izabel Liviski é profesora e fotógrafa, doutora em Sociologia pela UFPR. Escreve a coluna INCONTROS desde 2009, e é também co-editora da Revista ContemporArtes.

3 comentários:

Francisco Cezar de Luca Pucci disse...

Raríssimas vezes me senti tão tocado pela arte quanto por essas fotos. É inexprimível. A cada imagem eu pensava o mistério: como pode uma alma com tal talento desenvolve-lo contra todas as circunstâncias sócio-psicológicas? "Há mais mistério entre o céu e a Terra...". O texto magnífico seu, Izabel, estabelecendo o contraste entre uma produção artística tão sofisticada e uma situação social tão carente, nos remete à consciência (terrível) de que a vida social só se valoriza quando o ser e sua obra viram mercadoria. Triste como essas fotos. Parabéns!

23 de setembro de 2015 às 16:48
THELMO OLISAR disse...

É impressionante como o Brasil está cheio de talentos desconhecidos como a Tina Gomes, gente do povo que tem poucas oportunidades ou nenhuma. Quantos artistas fantásticos se perdem nessa nossa sociedade podre e insensível. A história da Tina me trouxe à memória o destino trágico de Van Gogh que, assim como ela, sonhava em ajudar as pessoas com sua arte. Izabel, Você captou bem a alma dessa moça e descreveu magistralmente seu drama e seus sonhos. Texto irretocável. Parabéns!

23 de setembro de 2015 às 18:40
Anônimo disse...

Izabel, que impressionante essas fotos e o relato de vida dessa mulher!
Vou acompanhar.
Abs
Célio Pinheiro

24 de setembro de 2015 às 19:10

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