TINA GOMES: DIANTE DA PRÓPRIA DOR...
“Eu não gosto muito quando
me chamam de fotógrafa, sou contadora de histórias, o que eu vivo eu passo para
as fotos, cada dor eu tranco dentro da fotografia, acho que é por isso que
vocês acham que tem tanto sentimento. Ali está acorrentado tudo que me machuca,
em cada foto tem uma mensagem subliminar, repare nos olhos...”
A beleza será convulsiva,
ou não será... diria André Breton, ao proclamar o ideal estético do
surrealismo. Com a banalização das imagens, fica cada vez mais difícil que uma
fotografia consiga abalar, despertar sentimentos, coisa que a fotógrafa
autodidata Tina Gomes vem fazendo ao utilizar a fotografia como um meio
catártico de sua subjetividade. Este também o motivo pelo qual já foi comparada
à pintora mexicana Frida Kahlo que pensava que colocar o sofrimento dentro de
muralhas era arriscar que o mesmo a devorasse a partir do interior, e por isso
pintou intensamente a sua dor, a sua própria vida.
Tina tem 39 anos, nasceu
em Guarujá, cidade litorânea de São Paulo, onde viveu até vir para a capital. Ela
trabalhou durante muitos anos em uma empresa de ônibus da zona leste, lavando as
rodas dos veículos, trocou óleo por um ano e meio até tornar-se cobradora. O
trabalho duro e o excesso de tempo agachada e depois sentada no ônibus, fizeram
com que ela desenvolvesse fibromialgia - uma doença caracterizada por fortes
dores musculares. Tina Gomes anda e senta-se com dificuldades, tem problemas na
coluna e hiper flexibilidade no braço direito.
Quando a empresa de ônibus
em que trabalhava faliu, ele viveu um dos momentos mais difíceis de sua vida.
Estava grávida de nove meses de seu sexto filho, teve problemas durante a gestação e perdeu a
criança. "Eu simplesmente enlouqueci. Via estrelas, ia para a janela e
queria pular para pegar a estrela", lembra. "Passei seis anos jogando
Second Life. Foi navegando pela
internet que comecei a me interessar pela fotografia".
Começou a fotografar
graças a um celular usado que comprou no ponto final do seu bairro. Aos poucos,
a artista foi criando um estilo próprio, e não precisou de
técnicas de fotometria para conseguir bons retratos. "Eu defendo uma fotografia rústica e simples. Que qualquer um
possa aprender, até uma criança". Em seu apartamento, ela espera a luz
ideal para o que está querendo criar. Depois, utiliza softwares de edição de
imagem para criar os efeitos desejados, e com as ferramentas digitais a favor
de suas emoções, de certa maneira democratiza a fotografia.
"Todo
o meu trabalho é realizado com materiais que encontrei na rua. É voltado para
quem é pobre mesmo".
O trabalho fotográfico de
Tina é extremamente pessoal. Ela traduz o que sente em cada uma de suas fotos,
utilizando somente uma EOS Rebel T3i, que apelidou carinhosamente de “Jurema”.
Seu estúdio fotográfico é improvisado dentro da própria casa, e todos os
elementos das fotos são itens encontrados nas ruas ou doados por amigos.
Isopor, barro, folhas secas, tinta guache, farinha de trigo são alguns dos
materiais utilizados na produção das fotos. É ela quem produz, dirige e
fotografa os modelos, na maioria das vezes seus filhos ou vizinhos.
A ex-cobradora de ônibus
começou a ganhar notoriedade quando foi descoberta por Coninck Junior, do
Portal Photos, analisando trabalhos em grupos de fotografia no Facebook. “Comecei a fotografar na minha primeira
crise de depressão. Nessa época, eu trabalhava como cobradora de ônibus, às
vezes de 12 a 16 horas, rodando pela capital paulista. Um dia, muito agoniada,
vi as minhas sombras refletidas na parede, gostei muito e comecei a me
fotografar.”
Mas ao que parece essa
recente notoriedade ainda não resolveu sua sobrevivência: “Estou desempregada, meu convênio foi cortado pela prefeitura e a
minha família depende de doações de alimentos para sobreviver. É triste, mas é
a realidade. Não faço fotos para os outros se sentirem felizes, muito menos pra
agradar a alguém, muito pelo contrário, faço estas imagens para me libertar de
cada dor, cada sofrimento, cada noite de fome… Me liberto a cada dia e em cada
retrato.”
Apesar do seu inegável
talento, de seu trabalho autoral e único, Tina não se vê trabalhando
diretamente com fotografia. Seu maior desejo é dar aulas na periferia e ajudar as crianças de sua comunidade. “Meu sonho é
ajudar as pessoas que estão no mesmo lugar que eu. Há muitas Tinas Gomes por aí”.
Mas as imagens de Tina, as
que aparecem aqui e as que ela ainda certamente vai fazer, vão constituir
imaginários e podem até fazer escola, já que “as intenções do fotógrafo não
determinam o significado da foto, que seguirá seu próprio curso, ao sabor dos
caprichos e das lealdades das diversas comunidades que dela fizerem uso”.
Referências:
Sontag, Susan – Diante da dor dos outros, Editora
Schwarcz, S.Paulo: 2003.
Izabel Liviski é profesora e
fotógrafa, doutora em Sociologia pela UFPR. Escreve a coluna INCONTROS desde 2009, e é também
co-editora da Revista ContemporArtes.
3 comentários:
Raríssimas vezes me senti tão tocado pela arte quanto por essas fotos. É inexprimível. A cada imagem eu pensava o mistério: como pode uma alma com tal talento desenvolve-lo contra todas as circunstâncias sócio-psicológicas? "Há mais mistério entre o céu e a Terra...". O texto magnífico seu, Izabel, estabelecendo o contraste entre uma produção artística tão sofisticada e uma situação social tão carente, nos remete à consciência (terrível) de que a vida social só se valoriza quando o ser e sua obra viram mercadoria. Triste como essas fotos. Parabéns!
23 de setembro de 2015 às 16:48É impressionante como o Brasil está cheio de talentos desconhecidos como a Tina Gomes, gente do povo que tem poucas oportunidades ou nenhuma. Quantos artistas fantásticos se perdem nessa nossa sociedade podre e insensível. A história da Tina me trouxe à memória o destino trágico de Van Gogh que, assim como ela, sonhava em ajudar as pessoas com sua arte. Izabel, Você captou bem a alma dessa moça e descreveu magistralmente seu drama e seus sonhos. Texto irretocável. Parabéns!
23 de setembro de 2015 às 18:40Izabel, que impressionante essas fotos e o relato de vida dessa mulher!
24 de setembro de 2015 às 19:10Vou acompanhar.
Abs
Célio Pinheiro
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