Asilo
Menino de onze anos é morto durante operação policial em comunidade do subúrbio carioca. Em protesto, moradores do lugar fecham uma das principais avenidas da cidade na hora do rush. Logo surgem as primeiras manifestações de comoção: bando de vagabundos, desocupados, só sabem tumultuar, tinha que meter bala nessa cambada, fechar via pública é uma afronta, e o meu direito de ir e vir?
Eu só queria entender em que mundo uma rua interrompida pode causar mais indignação do que uma vida interrompida.
No mesmo mundo que só se incomoda com assaltos quando eles acontecem naquela praia famosa; que só se preocupa com o apartheid quando ele ocorre do outro lado do Atlântico; que só se escandaliza com o drama dos refugiados quando eles não atravessam a fronteira do seu país; que só se comove com a pobreza quando ela não mendiga na calçada da sua casa.
É a síndrome da empatia seletiva.
Um distúrbio capaz de fazer o sujeito que mora na periferia – a mil beerretês de copas e ipanemas, mas a um valão da última chacina – se colocar no lugar da páti que teve o smart furtado ou do play que teve o cordão roubado, e não na mira do vizinho que estava no beco errado na hora errada.
Curioso o sintoma que leva alguém a se angustiar toda vez que o telejornal mostra uma cerca sendo erguida pelo país que não quer receber mais imigrantes – e, ao mesmo tempo, a se preocupar com a possibilidade de perder o emprego para os haitianos que continuam chegando à sua cidade.
Mais curioso ainda o sintoma da solidariedade a distância: a senhorinha liga religiosamente para o Criança Esperança, mas desliga imediatamente – o coração? – ao ver aquela criança dormindo no cimento, a poucos metros de sua portaria. Pior: ainda resmunga que paga um ipeteú de Leblon para receber uma paisagem de Pavuna.
Chagas de uma época em que a desumanização está com a cotação nas alturas: em que aulas de história e geografia (na Austrália) são substituídas por lições de programação; em que cursos de ciências sociais (no Japão) são cancelados para se dar mais espaço às exatas; em que cadernos de literatura de grandes jornais (no Brasil) são extintos – afinal, de que nos serve a poesia numa hora dessas?
Que diferença faz um verso de colírio quando a capacidade de enxergar o outro varia de acordo com o tamanho do engarrafamento a ser enfrentado após um dia de trabalho?
Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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