Às armas, cidadãos?
Não consultei a lista da Billboard, mas aposto que a Marselhesa esteve entre as mais pedidas da semana. O hino francês bombou – sem trocadilho macabro – nos últimos dias. Gente à beça tirou o biquinho do armário para bradar seus famosos versos: “Aux armes, citoyens,/ Formez vos bataillons,/ Marchons, marchons!” (“Às armas, cidadãos,/ Formai vossos batalhões,/ Marchemos, marchemos!”).
Para quem guilhotinou essa aula de História, Rob foi um personagem importante da Revolução Francesa. Líder dos jacobinos – facção política radical que representava a pequena burguesia contra a monarquia absolutista –, ajudou a implantar o regime do terror, responsável por decapitar nobres, clérigos e até militantes moderados, acusados de não defenderem a causa com o devido vigor.
De volta aos dias de hoje – em que o terror também não poupa cabeças –, esse mesmo espírito beligerante parece ter deixado os versos da Marselhesa para baixar em certos corpos e degolar seu bom senso. Os possuídos passaram a disparar por aí a certeza de que, se houvesse acesso irrestrito a armas de fogo na França, os próprios cidadãos poderiam ter se defendido dos atentados daquela trágica sexta-feira e, portanto, preservado algumas dezenas de vidas.
Fazendo de conta que eu estivesse igualmente oco do pescoço para cima, quem sabe não comprasse essa e outras certezas: a certeza de que todas as pessoas que foram ao Bataclan teriam saído de casa para assistir a um show armadas; a certeza de que seus revólveres seriam páreo para os rifles dos terroristas; a certeza, enfim, de que mais tiros sendo disparados num lugar fechado, apertado e escuro salvariam mais vidas.
A certeza – aqui retrucam os descabeçados – de que os extremistas pensariam duas vezes antes de atacar. Porque as armas asseguram a paz; elas dissuadem.
Como assim as armas asseguram a paz? Como assim elas dissuadem? Um Google rápido e a gente descobre o quanto: conforme aponta o Institute for Economics and Peace, ações de grupos como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico cresceram consideravelmente desde o início da chamada guerra ao terror – que se seguiu ao colapso das Torres Gêmeas, em 2001. Hoje há cinco vezes mais mortes por ataques terroristas do que naquela época. Em 14 anos, foram registrados 48 mil atentados em 123 países, com 107 mil vítimas fatais.
Enquanto isso, estimativas do Bureau of Investigative Journalism mostram que, a cada tentativa de executar um líder terrorista, os drones norte-americanos matam pelo menos 28 civis inocentes. Nos últimos dez anos, verificou-se essa proporção no Afeganistão, no Iêmen, no Paquistão e na Somália – países que, infelizmente, não têm uma Torre Eiffel para pintar com as cores da liberdade, da igualdade e da fraternidade, nem um mundo inteiro para chorar seus mortos.
Eu poderia terminar este texto com a lucidez de Noam Chomsky, renomado pensador segundo o qual “um modo fácil de combater o terrorismo é parar de participar dele”. Ou mesmo com os versos surrados de um hit pacifista, contraponto óbvio mas necessário ao hino francês. Só que não. Vou preferir a simplicidade de quatro palavritas com as quais encerrei a discussão real que deu origem a estas linhas.
Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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