quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Manual para caçar vagalumes


Acontece que Paris não deixou e Mariana também não. Esse texto deveria contar sobre a arte de caçar vagalumes, mas – quando lá pelas tantas – descobri que na bagunça das minhas anotações havia rascunhado “Enxurrada de alma” em lugar de lama, tinha já pela metade o manual, tinha o meio na cabeça e o fim na esperança. Acontece que veio o rompimento da barragem e saiu arrastando tudo desde o Fundão. Pensei que havia certa inocência naquilo de vagalumes, pensei que estaria descansado naquele pouco-a-pouco, e estou agora sacudindo as mãos com os dedos dormentes de pressa, com as unhas brancas de força, e não volto para corrigir nada, nem um acento que se perdeu, nem uma sílaba que se omitiu, nem uma vírgula ou ponto ou tique. Vou passar por esse texto de uma só vez, de uma única vez, sem reler – deixo que escorra na violência. Deixo sair correndo tudo em avalanche e entulho para fora de mim 
         eu que estou constantemente reformando, reformulando, reagrupando palavras e letras e sons.
     Porque é insuportável sentir que a lama superou os vagalumes, destruiu os manuais e impossibilitou a caça. Agradava-me escrever o Manual para caçar vagalumes. Agora, não quero serenidade, não quero inteligência, não me importa a sutileza, não me interessa o humor ou a ternura ou a ironia. A lama chegou. É impossível imaginar o inimaginável, é impossível descrever o indescritível. Acontece que me lembro do menino morto, dos atentados de Paris e do pai em Beirute. Acontece que tudo parece pertencer ao mesmo tipo de mala no guarda volumes da minha história. O tipo que se abre por vontade própria e que tranco quando é preciso, o tipo que esconde o pássaro azul de Bukowski e que visito em momentos de espaço. Aquele pai, que estava com a filha no mercado. Um sujeito – talvez jovem, talvez velho, talvez humano, casado ou não confuso ou não talentoso ou não. Um colete de explosivos. Sem pensar duas vezes, o pai, que tinha um filho menor, que tinha uma esposa e trinta e dois anos, lançou-se sobre o sujeito. 

      E as cores do Líbano não cobrem construções emblemáticas ao redor do mundo.

     E morrem parisienses e morem mineiros e morrem libaneses. Pouco antes de onde está a morte, a tristeza é que morrem. A tristeza é como eles morrem. A tristeza é por medirmos a tristeza imensurável. Eram todos filhos irmãos mães maridos pais.
     E aos poucos que lerão esse texto, peço desculpas. Cabia na intenção aquela outra crônica sobre caçadas e luzes, achei que seria bom mostrar isso, que seria agradável. Mas não posso. Tanta lama se alojou e tanta bomba e tanto tiro e morteiro e discurso. Prometo que faço o melhor de mim da próxima vez. Prometo que não volto com isso. É que os desabrigados e Bento Rodrigues e Águas Claras e Ponte do Gama e Paracatu e Pedras e Barra Longa e Paris e a França inteira e o Líbano inteiro e Beirute inundaram tudo. Vieram com o rompimento da barragem. Daquela muralha escondida na mala - no almaxarifado das minhas coisas íntimas entre um aglomerado e outro. Peço desculpas se não sou capaz - não hoje, não para logo. Tinha me ocorrido alguma coisa bem pé-de-moleque chamada Manual para caçar vagalumes. No mais, o texto deve estar uma maçaroca de pouco trato, porque nunca fiz nada de forma tão correntemente movediça. E já não sei se era possível de outra forma, se era possível gritar sendo manso e cuidadoso, gentil e zeloso com as palavras. Já não sei se tenho fôlego para outro bombardeio em marcha lenta. Esse texto deveria contar sobre a arte de caçar vagalumes, acontece que Paris não deixou e Mariana também não.

1 comentários:

Anônimo disse...

-_-

8 de maio de 2016 às 22:02

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