quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Sobre o signo de canis



Como quem sonha, espero por ti na estrada de cima. Enquanto os sonâmbulos agridem a manhã, vestidos ainda de sono, cobertos ainda pela placenta noturna. Deixo descer os olhos até onde você esteve – estava – está, na gruta verde ao pé do rio minguado, e penso em todos os cães da minha vida: Pluto, Snoopy e Scooby; Balto, Laika e Hachiko; Churras, Beta e Kachtanka; Atma, Rimbaud e Petrarca; Sírios, de Olaf Stapleton, de Rowling, de Urano; a Rabita, o Rex, o Til e o Totó e o Kiko e Pipoca. Todos integrando um conjunto de coisas estrangeiras – nas casas e nos quintais de outras vizinhanças, mas nunca aqui, onde você residiu – residia – reside com tamanha unidade, onde estão as suas patas de fazer giro e a sua felicidade imensa de comer. Taco as mãos para os bolsos, ajeito de lado o embornal e me ajeito – pesado – sobre a vertebra lateral de uma arvore enorme, prendem nela os cavalos – que não são mais que cachorros grandes. Ponho-me a pensar nos dois borrões que contornavam os seus olhos e o resto inteiro branco. Duas rãs na imensidão láctea da sua pequenez de filhote recente. Você que latia manhã, tarde e noite. Você que existia sem aparecer – que estava na margem de lá das coisas e das águas. Você que me arrastou pela colina íngreme de moscas e lagartos e cobras e mato – só para dizer “oi” na língua divina das verdades inomináveis. Que me deixou culpar alguém por ter chegado até você. Eu na árvore pareço agora um veio torto e rebelde que se depreende do tronco, um braço amadeirado e triste com raízes travadas na brisa leve e pouca, sustentando a vista que te procura. Minha perna adormece. Sinto falta da infância em te ver – do tempo em que uma primavera antiga de futuros grandes como a família parecia um continente cercado por beijos em saliva nas bochechas rechonchudas e avidamente sadias, por gente jovem ainda que mais velha, por banhos de mangueira e de terra vermelha e de picolé mancha-tripa. Sabe o que dizem por ai:
           quem é vivo sempre desaparece.
          Mas espero por ti na estrada de cima – enquanto espero o São José das seis. Tudo lá simula a sonata irmã do seu latido, os galhos rangem como antes, o rio corre como pode, a casa está onde estava, só você, Chester... só você insiste em não repetir-se. Como as coisas misteriosas que estão lá até que se procure. Construo sua imagem lá embaixo, paramentado de aquarela, feliz, lançando rabadas, ensaiando círculos, mordiscando as pulgas. E, por um minuto, a realidade rosna – meu coração se estreita feito uma velha camisa de botão com as costas miúdas apertando os ombros. E você não era um menino, mas parecia-se tanto com um menino. Espero aqui com as mãos metidas nos pacotes da calça para que me reconheça. Espero com os cabelos em ninho e a barba em penugem, assobiando por dentro, fumando por dentro, cantarolando, e a sombra dos ramos se misturam com as sombras de mim e não te vejo ainda. Espero por você como você por mim naqueles primeiros dias e nas noites que vieram depois dos dias. Como um rapaz impaciente e feio espera na chuva, floreado de intenções, esperanças e crisântemos, a menina que se esqueceu dele. Espero de nariz baixo, percebendo o movimento desperto que ganha a rua, ouvindo os sons que alucinam o seu choramingo na distância, que imitam a sua pressa, e nisso o ônibus vem e quase fico, quase digo ao auxiliar que suba novamente e ao motorista que leve todos ao destino e aos passageiros que partam e que me deixem mais com a esperança de esperar-te aqui, na estrada de cima, pois eu jamais contaria – conto – contarei a alguém a imensa dor de perder um cachorro que nunca tive e jamais sobre a solidão de perceber agora os meus olhos cerrados observando os olhos dele enquanto digo adeus e subo as escadas dissimulando: _Bom dia!

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