quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Na medida em que me passam os anos




Na medida em que me passam os anos, percebo, com certo espanto, o encolhimento das pessoas de cima, inversamente proporcional ao número dos meus sapatos e ao tamanho dos meus irmãos. Primeiro, eram gigantescas, como torres enormes de braços compridos e pernas maiores que a minha altura. De tão grandes que eram, tinham por obrigação os cintos, apertando-lhes a cintura, para que a queda dos panos não causasse na terra um tremor de menor escala. A parte baixa das camisas tocavam-me os tornozelos quando, aventurando-me, sumia dentro das mantas de algodão, de ombros desaparecidos e com o pescoço afogado nas golas draculinas de uma polo qualquer. Eram coberturas titânicas das mulheres, como as cortinas colossais que cobrem os monumentos antes das inaugurações. Depois, via-lhes já o enchimento dos bolsos, o recheio misterioso e sempre proeminente dos bolsos preenchidos de papel, carteira, chaves e tantas. Descobri que nem sempre havia correia na cintura, que – para ocasiões menos adultas – havia a possibilidade dos elásticos, confortabilíssimos, ou do cordão – que eu tratava por cadarço e sempre me atrapalhava num apertado nó, simulador de correia, sem solução para além da tesoura. A seguir apareceram os estômagos. Que coisa engraçada é uma barriga. Lembro-me de alguns abraços e do contato almofadado dos pançolins. E os tipos são vários, grandes e rijas, largas, flácidas, caídas e dobráveis, ausentes, retas e chapadas e quadriculadas, de umbigos assustados, reservados e humildes. Alcançando o peito, logo acima da espinhela, com vista para o coração, aprendi a diferenciar os crescidos. As minhas avós chegaram primeiro no campo dos olhos. “O coração mais perto da boca” – diz a Vó Maria. E tem a razão, todos ainda estavam na medida dos seios, na metragem dos mamilos, e elas, adiantadas que são, na marca do cardíaco. Por essa altura, as arvores passaram a tratar-me como arbusto, não mais como broto. Acredito que, enquanto encolhiam e o mundo inteiro os seguia, porque é próprio das coisas diminuírem com o tempo, tivessem a ilusão de que eu crescia, mas asseguro que não, que não era isso. Por esses anos, entendi a funcionalidade dos penicos, a habilidade no escalar das portas, o vinho branco do meu avô e o engasgo dos cigarros. Explicou-me a vó – a Maria – sobre os dentes postiços e – a Ione – sobre as folhinhas de santos pregadas no corredor da sala. Já agora podia ver os lábios de uns, os olhos de outros e o topo de alguns. Diziam sempre que eu havia crescido rápido, mas nunca achei o encolhimento deles tão veloz. Além do mais, estavam sempre a mudar de ritmo, ora se desprendiam centímetros e centímetros por mês, ora perdiam, se muito, alguns milímetros. Assustava-me – assusta-me – a indiferença da maioria para algumas coisas da vida: aniversário próprio, coxinha com guaraná depois dos exames de sangue, bombom de coco e cachorro quente. Também não lhes agradava brincar de bonecos, de zorro, de espião – não tinham brinquedos, ainda que meu pai tivesse os tubos de ensaio, por demais interessantes, e minha mãe levasse sempre, ao lado da máquina, aquela almofadinha de alfinetes. Eles não tomavam do achocolatado, nem devoravam os recheados, mas tinha a estranha e dolorosa mania dos banhos, dos pentes e das escovas. Seguiam um ritual – e tenho para mim que esse é um dos motivos do encolhimento – que consistia em falar dos ausentes: falava-se bem, falava-se mal, falava-se pouco e do pouco e do muito que tinham, falava-se das manias, dos filhos, do trabalho e do que haviam feito e dos absurdos e das caridades. E no exercício de lembrar tudo aquilo, uma porção considerável de energia escapava, daí o processo de esvaziamento, eu acho, daí a murchabilidade contínua dos corpos.
      Veja que os meninos de agora, filhos dos primos de antes – que são meus sobrinhos por empréstimo – adotaram a mania nova de crescerem, tentando alcançar aos que, juntos de mim, assistiam ao encolhimento dos mais velhos. E veja que, falando do ritual encolhedor, faço eu também parte dele. E não sei durante qual noite, se de tarde ou pela manhã, contraí a adultice. Não atentei para o estado – perceba: os sinais, no entanto, são aparentes. Alguma coisa entre o café e os sorrisos emoldurados, na despedida dos homenzinhos de plástico, no aniversário que chega sem avisar por dentro, nas coxinhas de frango que contribuem para a macia condição das barrigas. Depois a invenção do colesterol, quando correr tornou-se uma necessidade e não uma condição natural dos passos. Talvez tenha sido por conta dos banhos recorrentes e do estranho gosto por pimenta. Talvez quando todos as criaturas se mudaram para outro escuro e o mistério do quarto tornou-se desabitado. Talvez quando os grilos e borboletas (daquelas grandes e barulhentas) ganharam aspectos menos horripilantes.
        Não sei ainda se cresci ou se começo a encolher. 
        Terminei o colégio, arrisquei a faculdade, passei ao mestrado, sou padrinho de alguns afilhados e penteio o cabelo todos os dias pela manhã. Se pá eu cresci, porque não me oferecem mais refrigerante sem antes perguntar: _Bebi? 
        Mas é claro que bebo.
        E durmo também e saio às vezes à missa e à sorveteria e acordo logo cedo e respiro como outros respiram. Devo ter crescido, porque os pequenos já não me chamam para o futebol de bolas leves e finas e quando me tomam pela mão é para pedir favores adiantados do crescimento, um plástico colorido que ficou no alto, água no filtro ou coisas na geladeira. Não me chamam para o pique – provavelmente pela desvantagem aparente das minhas pernas. Se não posso ser o mais rápido, de que vale ter o comprimento? Posso tantas outras coisas que antes não podia, é verdade, mas nada se compara ao ano contado em aniversários, aos agrados pós exame e aos fragmentos mil de um bombom de coco. Nada se compara a acordar no dia que se acorda – nunca mais, desde a infância, pode acordar no presente, é sempre no passado ou no futuro que levanto. Nada se compara ao achocolatado, à sessão matinal de desenhos animados, aos meus irmãos pequenos. Nada se compara às cigarras presas numa caixinha de fósforos e laçadas pelo pé com um barbante – nunca por mim, porque morria no nervoso – e às tanajuras despencando do céu e enchendo litros vazios enquanto se procura a rainha. Nada como as faxinas para dentro das gavetas e caixas velhas, do aglomerado riquíssimo de bugigangas aproveitáveis e trecos de fazer interesse.
        Cresci, eu acho. Se pá, foi. Porém, o que me dá mesmo vontade é chamar meu irmão e dar-lhe a máscara branca de dois furos para os olhos. Chamar ao Nando para despejarmos os bonecos todos no chão. Cantar com a minha irmã. O Niel para o videogame até de madrugada. A minha vontade mesmo era de ligar para o Nateios, agora na Grécia, e chama-lo para dormir lá em casa, depois, claro, de pedir à tia se dava permissão. Era chamar o Neco para terminar uma jogatina. Era o Mô-nego para comermos na lanchonete. Era o Cigano para o futebol no Jardim – no All Star Futebol Clube. Era corrermos todos do jardineiro. Era pregar carrinhadas no Fofão. Era tocar molho na F. e me arrepender horrivelmente depois. Era rachar a canela no skate. Era a Vila e a roça e o meu espanto ao perceber, na medida em que me passam os anos, o encolhimento das pessoas de cima.

2 comentários:

Monica disse...

Que texto incrível! pConsegui sentir as pessoas diminuindo (ou o autor crescendo?) e me lembrar de que o mesmo se passou comigo: de repente não me chamam mais para brincar de pique e deitar no sofá de pijama assistindo desenhos não é mais uma opção para as manhãs.

8 de janeiro de 2016 às 09:27
Anônimo disse...

Agora me pergunto: Estarei eu crescendo ou diminuindo? Espero que possamos viver isto tudo novamente, mas visto por outro ângulo. ^^

8 de maio de 2016 às 21:51

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