sábado, 5 de março de 2016

Identidade de Gênero e Sexualidade como Resistência Política



Há muito tempo que a sociedade se configura em estruturas e normas sociais pautadas na heteronormatividade e no binarismo de “homem x mulher”, onde a construção social do gênero feminino sempre foi feita de tal forma a ser submissa e oprimida e, também, em uma sociedade altamente punitiva para aqueles que fogem dos conceitos binários e que abraçam a vasta fluidez de gêneros e de sexualidades. Essas estruturas e normas, atuando de forma a privilegiar uma determinada camada social e a manter certa hierarquia de classes, estão presentes desde condutas escancaradas até comportamentos sutis e enraizados que reforçam e favorecem determinadas relações de poder.

Por isso, nessa luta constante contras as imposições do velho modelo heterossexual binário que se pretende como o cerne moral e natural da sociedade, surge a necessidade da utilização de identidades de gêneros diversos e das sexualidades como uma forma de resistência política contra a opressão histórica que sempre acompanhou esses arquétipos, fixados e intransigentes, sustentados por toda uma infraestrutura que mantém os aparelhos do estado, como a escola e a igreja, que permitiram institucionalizar o homem branco heterossexual como o indivíduo que estabelece o que é certo ou errado, o que é moral e imoral na nossa sociedade.

O indivíduo que nasce nesse berço privilegiado não consegue ter uma visão imparcial dessas construções históricas e sociais que sempre existiram de forma a beneficiá-lo e a ver toda uma vasta diversidade de indivíduos que o cercam como o “outro”. O gênero feminino, por exemplo, moldado na construção da visão masculina, de forma a subjugar a mulher como o sexo fraco e como o receptáculo de seus desejos enquanto agente sexual predatório, talvez tenha sido – e continue sendo – a maior prova de que essa pretensão não reside apenas na domesticação, mas também – e de diferentes formas -, se estende a todo esse leque de diversidade que coloca em cheque aquilo que aprendeu como sendo natural e que se contrapõe a esse binarismo de gênero e a sua sexualidade como o pilar da evolução humana.

Mas para além do homem branco, parece que existe um problema coletivo em lidar com essas interseções e com as confluências não binárias, já que nós sempre fomos doutrinados a nos encaixar não somente nas normas, mas especialmente nos gêneros fixos que reforçam esse binarismo e deixam evidentes as relações de poder existentes na sociedade. Dessa forma, as diversas sexualidades não heternormativas também estão intrinsecamente ligadas nessas relações entre oprimidos e opressores, relegando ao “outro” a submissão e a marginalização.

Por isso, quando uma pessoa assume sua identidade fora do conformismo binário (trans*, intersexo, agêneros, não binários, etc.) e quando ela assume a sua sexualidade fora dos preceitos heterossexuais normativos (lésbicas, bissexuais, assexuais, gays, pansexuais, etc.), mesmo que essa heterossexualidade em questão só beneficie o homem e não o gênero feminino já que as mulheres sofrem opressões intrínsecas a seu gênero, surge uma subversão a todas as prerrogativas que ditam determinados privilégios sociais. Então, mais do que assumir essa identidade como algo pessoal, ela passar a ser uma resistência política que vai confrontar diretamente os interesses do Estado nas relações de poder e na hierarquia de classes que sustentam o capitalismo. Mais do que um direito humano, o corpo não binário – e por corpo entenda-se esse conjunto de gênero e sexualidade -, vira um instrumento direto de resistência e poder contra a opressão e a marginalização social.

Portanto, nota-se que o problema não é o gênero em questão, mas, sim, quando ele é representado numa dualidade, onde um se sobrepõe ao outro como o mais forte, que tenta insistentemente refutar e discriminar toda uma vastidão de possíveis gêneros a serem explorados.

A predominância desse pensamento como molde social se dá de muitas formas, diversas vezes imperceptíveis. Por exemplo: há muito tempo que estudos sobre gênero e sexualidade se dão pela visão do homem heterossexual, pois este já está tão naturalizado na história que a sua visão tenta assumir um critério de incontestabilidade. A sexualidade feminina por muito tempo foi explorada através dos olhos do homem hétero que a determinou como sendo uma sexualidade passiva e receptora da agência sexual masculina, o homem como agente e a mulher como objeto. Quando se deram por explorar a sexualidade da mulher negra a índole opressiva apenas se intensificou por ainda levar uma conotação racista. Sobre a homossexualidade, constantemente se vê uma busca de sua natureza, alguma explicação para tal “comportamento”, quase que uma busca pela legitimidade da mesma, mas raramente vemos uma busca desses mesmos significados na heterossexualidade masculina, pois ela já se legitimou como tal, não precisa ser contestada, pois apenas estudam sua natureza e não se esta é real ou não, se é uma escolha ou não.

Remetem pessoas assexuais à frigidez; a bissexualidade à confusão e fetichizam o lesbianismo como que embalado para consumo sexual do homem hétero. O mesmo se dá com gêneros. Surge um leque de tentativas de explicar a pessoa trans e, ao mesmo tempo, de negar sua identidade; surge uma pressão social para que a pessoa intersexo se defina por um dos gêneros com o qual nasceu e se faz chacota daqueles que se consideram agêneros. Isso para citar apenas alguns exemplos.

Estudos e teorias são interessantes e necessários, mas, quando feitos numa tentativa de negar ao outro aquilo que lhe pertence como uma parte importante de si mesmo, assumem um caráter de opressão que alimenta todas as relações de desigualdades e de injustiças sociais. De fato, pessoas são muito mais complexas do que seu gênero e sua sexualidade, mas é inegável que esses aspectos configuram uma importante parte de cada uma, especialmente se inseridos num contexto social que tenta legitimar o poder daqueles mesmos que criaram essa demonização, sobre tudo aquilo que lhes foge da sua própria visão.

Portanto, se noções de gênero e de sexualidade estão intrinsecamente ligadas a uma política que sustenta o status quo, essa vivência identitária do não binário e da não heterossexualidade faz com que nossos corpos passem a assumir um importante papel de oposição a uma sociedade de caráter classista, de onde advêm a misoginia, os conservadores, os racistas, os homofóbicos, a desigualdade e a injustiça. Ironicamente, o que nos enfraquece e o que tenta nos submeter a um contexto de marginalização social é o que nos torna mais fortes para resistir e lutar.




Profissional autônoma. 26 anos. Representante LGBT do Madalena’s Suiça no Brasil, ONG que combate a violência contra as mulheres no exterior e defende os direitos da população vulnerável. Possui um blog pessoal onde trata de questões de justiça social, direitos humanos e questões LGBT. Militante das Mães pela Igualdade, de pautas de gênero e sexualidade e dos direitos humanos em geral. Atualmente trabalha no setor de comunicação da União Brasileira de Escritores.

Email: fernandagroke@gmail.com

0 comentários:

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.