sexta-feira, 4 de março de 2016

Não me zango


Sei que você nunca mereceu um obstinado todos os dias falando das coisas de sempre, que não merece trabalhar como se não vivesse, que preferia os comprimidos – soluções para todo a gente – no lugar de meter-se para dentro, escarafunchando os cantos e fuçando nas portas, até encontrar a mola que se desprendeu ou a correia que se soltou da polia. Não se preocupe comigo. As coisas duram eternamente enquanto duram. Não se preocupe: entendo que fique, não abro para barracos, não ascendo a voz, não cometo barbaridades, não peço que venha. É verdade que me dói um tanto, sentirei o peso da ausência, nos primeiros meses, nas prestações contadas em carnê. Quando nove ou dez ou onze, ao sentir estremecer o estomago, sairei disparato até a cozinha, o cheiro correndo no ar
      _ Lucca!
     e não será você. A minha avó preparando um leite no caneco, olhando-me estranho por chamar, em voz alta, o meu nome próprio. Será o meu irmão ajeitando qualquer coisa para dormir. Minha Mãe – que há de me indagar preocupada. Que isso, minino? O pai cerando o último cigarro no breu da varanda. São os gatos espantados com o repente, julgando a loucura, e eu despistando: Ué.
      _Não, não é nada.
     Pensarão que tomei proveito das sobras de natal, que assaltei pelo gargalo a meia garrafa de vinho, que é preciso – talvez – tratar-me de alguma impaciência, que estou ansioso ou estressado com as obrigações. Mas, não se preocupe: daqui a fino estou que só, daqui a alguns meses vendo o curso e consigo um bocado de pétala para perfumar a carteira e, garanto, daqui a alguns meses, tratei já de me recompor. É tudo mesmo horrível no início. Depois, quando a gente apanha tino, começa a ter menos gana de fugir, de arrebentar qualquer coisa, e o interesse por livros e música volta e lemos – novamente – as notícias e deixamos de tagarelar sobre o acontecido com todos os próximos, chegados e colegas e numa tarde qualquer 
     (veja só)
    passou. Já nem pensamos no que houve. Estamos lavando o rosto pela manhã, subindo até o espelho com uma cara de sadio, muito corada e bem tratada nos costumes da boa saúde. Já não nos entristecemos com as quantidades e com as contas e se nos perguntam:
      _Aquele Lucca, sabe que fim tomou?
      Torcemos o nariz no esforço de lembrar.
      _Qual Lucca?
      O companheiro, intrigado, apertando os olhos e tombando – com leveza – a cabeça para trás:
      _Uai, o seu inquilino...
      _Ah! Nem sei.
     Dizer o seu nome em voz alta não rompe mais as barragens de antes. O seu rosto-lua quase não tem contorno. Verifica-se que, realmente, foi noutro tempo. Então, não se preocupe comigo. Tudo isso vai embora, a vontade de morrer, a vontade de matar, o desejo estranho de rabiscar suas iniciais enquanto falo ao telefone 
     (Como se aquilo fosse um processo cigano de trazer-em-três-dias)
     E no espelho ofendido de vapor, traçar linhas meditativas. Passa a febre de estar até mais tarde na cama, encarando a parede, lembrando daquele jantar maravilhoso, daquele apetite que não voltaremos a ter, daquele andar de meias e do reclamar constante, da manhã que substituímos o café por cachorro-quente e guaraná, dos seus começos sem nenhum final, das suas ideias sem nenhum passo, das luzes todas ligadas – como fossemos donos da companhia elétrica.
      (Eu sei que não podia ser para sempre)
     Sei que nunca mereceu um obstinado a falar das mesmas coisas todos os dias, que não merece viver só de trabalho, que preferia os comprimidos – soluções para todo a gente – no lugar de meter-se para dentro, escarafunchando os cantos e fuçando nas portas, até encontrar o eixo travado no pó. Não se preocupe comigo: não peço nada, não direi o escarcéu e juro que não me zango. Juro que não me zango pelo café em lugar de água, vento em lugar de almoço ou pelas coisas de última hora. Não me zango: assim que você tirar o resto das malas, levar a bolsa que tanto me traz o passado, trato logo de repartir os presentes antigos e começo a vida outra vez. Não pense que não aguento. Aguento - certeza que sim.
    De qualquer maneira,
   por precaução, mantenho aquela sua embalagem de Propranolol dez miligramas e a do Inderal de quarenta que, a propósito, são a mesma coisa – com exceção da dosagem. Era você que dizia sempre “o remédio não resolve, mas ajuda a resolver”. Também, se me rendo e deixo para lá tudo isso que é tão importante como se fosse bobagem, contraio de novo toda a sua bagagem, esse entulho sem limites, essa montanha vertiginosa de pedaços arruinados, essa melancolia de fazer esquina. Se me rendo, entrego de bandeja o esforço que tive para chegar até aqui e recolho a obrigação de suportar atlanticamente o seus restolhos, suas tralhas de mundo. Tudo isso poderia dar a impressão de que estou nervoso com essa porcaria amontoada dos diabos... 
    perdão 
   com esse monte de coisas que tive de engolir cotidianamente, buscando, no íntimo mais profundo da minha existência, uma cara que não lembrasse “dormi tarde, acordei cedo e chupei limão”. Acontece que não estou, não estou zangado. Não se preocupe comigo. 
   Não me zango.

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