domingo, 13 de março de 2016

O Mito de Sísifo e as Carências (Parte I)


O poeta Filipe Marinheiro desencadeia uma homenagem e crítica à obra ensaística do filósofo Albert Camus «O Mito de Sísifo» dedicando-lhe no final um poema extraído da sua última obra: «noutros rostos» para explicar a sua interpretação. Gritarei: absurda, suicida sobre as matérias e substâncias
Albert Camus (1913-1960)
desta obra tão excepcional. Inacabada. Aonde encontro carências e algumas náuseas. De resto uma obra fenomenal. Obra de carácter filosoficamente complexa aonde o paradoxo aparentemente pessimista enquanto entendimento do pensar absoluto é uma outra coisa absurda, ténue ou liquefeita que não aquela que o leitor retirará enquanto estética e ou inutilidade doutro pensamento como um sentido oculto nas palavras entre as palavras submersas nas ideias simples. Como perceber, navegar dentro desta obra sem as traves mestras filosóficas que suportam todos os níveis e desníveis do “Mito”? Sísifo na mitologia grega era considerado o mais astuto de todos os mortais. Mestre da malícia e da felicidade, era considerado como um dos maiores ofensores dos deuses, tendo conseguido enganar a morte por duas vezes, fintando os deuses Tânatos e Hades. Ao morrer, Sísifo foi considerado um grande rebelde e foi condenado pelos deuses a empurrar, por toda a eternidade, uma grande pedra até o cume de uma montanha só para ela rolar montanha abaixo sempre que estava prestes a alcançar o topo, começando o processo maquinal, intelectual de novo. Por este motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada “Trabalho de Sísifo”. Os deuses tinham pensado, com as suas razões, que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança ou devoção pela tortura daquele que fragmenta o pensamento é o alimento total desta obra. Ele próprio é o herói absurdo tanto pelas suas paixões como pelos seus tormentos. O desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a Paixão pela Vida lhe valeram esse suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. Absolutamente: Nada. E o que é o Nada neste contexto? No final desse esforço imenso, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, o objectivo é atingido. Sísifo, então, vê a pedra desmoronar-se em alguns instantes para esse mundo inferior de onde será preciso reerguê-la até os cimos. E desce de novo para a planície. Ei-lo o pretexto sentido, possessivo, primitivo. Pois é concretamente durante esse retorno, nessa preciosa pausa, que Sísifo nos deverá interessar. Um rosto por dentro das inúmeras máscaras evidentes e não tão-só nada evidentes [escondidas das verdades, não da verdade absoluta] a trespassarem de rostos em rostos as camadas que envergam, examinam, planeiam, plagiam os fundamentos de todo aquele esforço. Uma angustiante empreitada levada a cabo por uma figura mitológica desenhada a desenhos de músculos a saltarem da carne suja deste Ser tão límpido. Tão Puro. Condenado a reencontrar sempre o seu fardo. Terrível tal rosto assim tão perto das pedras como um espelho de pedra, é já ele próprio uma pedra. Vê-se esse homem a redescer, com o passo pesado, mas igual, para o tormento sem escapatória imagética ou transcendente, cuja finalidade, jamais conhecerá. Nessa hora é com uma respiração útil que Sísifo ressurge tão certamente quanto a sua infelicidade. É nessa hora portanto que toma a consciência [alguma pelo menos]. A cada um desses momentos, deslizes, movimentos em que ele deixa os cimos e se afunda pouco a pouco no covil dos deuses, se torna um superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo: a sua jura. A Fidelidade. Quem saberá destas coisas? Um fotógrafo da Alma ou um Pensador da Alma ou um próprio Ser? A eterna busca do homem por um sentido para a vida: eis aí um esforço talvez inútil e talvez útil. Peca aqui a filosofia do fundamento desiludindo-me. Parece que a humanidade está até ainda hoje a pagar pela rebeldia de Sísifo. Será isto um facto ou subterfúgio? Todavia o “absurdo” para Albert Camus nasce das nossas infinitas tentativas de dar sentido a um mundo sem sentido, e a sua obra evidencia as angústias e conflitos daquela época em que mergulhou a tinta da caneta sobre o tecido do papel ou viveu heroicamente, mas que nos continuam e continuarão a desafiar na actualidade. Defronte o dilema da futilidade do esforço e da certeza da extinção do homem e do universo, o que nos restaria então? Por que nós humanidade não deveríamos cometer suicídio? Nesta matéria ambivalente o autor acaba por condenar, estrangular o sentido da liberdade individual, blasfemando-a como um massacre. Ou por outro uma leveza da sustentabilidade da vida que se deve viver numa liberdade tangível, orgânica: eis um pecado capital que este ensaio empurra [Camus suicida-se absurdamente – contexto situacional, enquadramento histórico-social e a omissão ou mesmo diria esquecimento da abordagem ao paradigma transcendental da beleza e pior não seduz a lucidez] transpondo-a exclusivamente para as sementes e raízes da lógica “metafórica” até esbater num sentimentalismo carinhoso, amoroso. O que lhe não ocorreu foi que a liberdade também exige os seus tentáculos horríveis, mutantes, disformes, tresloucados. Liberdade terrivelmente fascinante quanto bizarra. Girando-a para uma completa força invisível que a administra desesperada para o inferno da liberdade intangível, inorgânica. Contudo para Albert Camus, o suicido não é a solução finita para o absurdo, é antes ao contrário, nessa que é a sua negação, a negação da própria existência humana. Não podemos resolver o problema do absurdo, negando toda a sua existência. Precária ou Odiosa ou Prodigiosa. Perante o absurdo, devemos dalguma maneira alegórica, revoltar-nos - instigando os outros para que se meditem nas mortes às derivas entre as suas mãos contra as forças vertiginosas da cabeça à cabeça, batendo com o sangue na tal pedra que sobe e desce em rotação alquímica. Porquê esta revolta? Talvez seja a consciência da nossa condição, mas sem a resignação que deveria acompanhá-la. Aceitar o absurdo é aceitar a morte, mas recusá-lo é aceitar uma vida no precipício a resvalar escarpas abaixo até rebentar com o corpo todo: destruí-lo. Nenhuma meditação absurda, alienante nesta matéria e enunciada ao longo do ensaio. É nessa derradeira destruição, camada por camada que não se pode encontrar o conforto, somente “viver num vertiginoso cume – isso é integridade, o resto é subterfúgio.” O “cume vertiginoso” para A. Camus é a experiência inteiramente consciente de estar vivo condenado à eterna repetição, consciente dela, descobre que “a lucidez que devia constituir sua tortura ao mesmo tempo coroa sua vitória”. Camus diz que devemos imaginar Sísifo feliz, pois “ser consciente da própria vida num grau máximo, é viver num grau máximo”. O filósofo Albert Camus considera que autores da filosofia existencialista como Kierkegaard e Sartre fracassaram em tentar resolver o conflito para as consequências do encontro entre um ser humano racional e um mundo irracional, porque ele é insolúvel justamente por pertencer a existência humana. Ter por exemplo, a consciência de que liberdade e justiça são relativas, é na verdade a condição para não desistir delas, e não o contrário. Também ele se desintegra, fracassa. Desaponta. Sem embargo, «o Mito de Sísifo» deverá ser para os leitores um mero apoio de vida. Ele não arrasta ilusões porém incentiva a coragem humana. Ressuscita aceitável a crença na existência sem os paradigmas religiosos. Até nesta reflexão torna-se condescendente ao não perscrutar o desconhecido o da ilusão se quisermos. O segredo sagrado que se esconde por sob as camadas do covil referido anteriormente e justifica, autoriza o lugar prioritário deste ensaio filosófico [onde o autor põe-repõe: escuridão e iluminação não revestindo todas essas camadas sobrepostas numa catadupa catártica de contradições – as máscaras dos rostos e os rostos das máscaras] é que do raciocínio absurdo desagua uma criação do tempo e das memórias, e mesmo das criações palpáveis ou não palpáveis, mas que existem, afectam e metamorfoseiam o universo e a constelação da humanidade. Para se perceber e descobrir todo esse grandioso segredo como um oráculo, que o autor propõe, e que sorrateiramente vai navegando a nossa mente para esses lugares nada comuns, disfarçando-os doutras coisas mais superficiais, é possível. Não nos aponta esse trilho, atravessando toda esta obra num estado de aparente profunda morosidade, pensará o leitor. Erro crasso. Embora em nada se trata de aparência, pelo contrário, é de profunda morosidade que o autor não nos apela sem nos dizê-lo directa ou indirectamente. Camus falha, “arruína” no ensaio ao não prever que através dessa profunda morosidade o homem pensante deverá atravessar os flagelos da indiferença irrompendo todo um novo sistema de pensamentos, acções que nos leva à criação divina para quem crê e à criação não divina para quem não crê ou ainda para quem é agnóstico ou busca a criação no desregulamento dos sentidos sem recorrer a paraísos artificiais. Ora se me permitem: um sistema de pensamento fortalecido, reforçado, robusto, rejeitando a transcendência da fé, abandonando a ambivalência do ascetismo deixando-o igualmente a flutuar no vácuo das águas por onde velejamos. Alerta-nos unicamente. Nada mais do que isso. Escorrega-se na lama deste pântano existencial. Flanqueado como Apertado. Não ultrapassa essa barreira sonora, saborosa, emotiva, sensitiva, colorida, ouvida, vista ou mais presentemente a evolução no campo das neurociências com o última grito neuro-holografia do sensível para uma outra dimensão da percepção humana: imprevista. Como poderia ter previsto estas carências? Devia ter prestado mais atenção à psicanálise da época. Albert Camus não calculou: O Eros e Thanatos que significam, entre os gregos, o Amor e a Morte personificados. Identificam-se nestas figuras da mitologia grega dois princípios vitais: Vida e Morte. Freud utilizou-as para identificar duas categorias de pulsões humanas: instinto de vida (eros) e instinto de morte (thanatos). Estas duas pulsões geram entre si um conflito que dinamiza o psiquismo humano. Neste sentido, a estrutura freudiana do psiquismo humano é atravessada por um conflito que dinamiza o aparelho psíquico. Este conflito tem origem nos obstáculos que o indivíduo encontra na realização das pulsões e reflecte a luta entre várias instâncias no psiquismo humano. Não interessa agora. Já passou. O ensaio já foi escrito no ano de graça de 1941.Torna, então, o absurdo enquanto o dogma do suicídio incompleto. 


O MITO DE SÍSIFO E AS CARÊNCIAS (PARTE II): 27 de março de 2016


Filipe Marinheiro nasceu em Coimbra, em 30 de Julho de 1982. É natural e reside em Aveiro. Suas obra Silêncios e Noutros rostos encontram-se disponíveis para venda online na Chiado Editora, Fnac, Bertrand e Wook.

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