ÁGUA LIMPA
Era o centro – num fim de semana – para comprarmos presentes e réguas azuis de fazer
letras e números. A feira do Compadre Grilo, a bolsa marrom de couro para o transporte
das garrafas adultíferas, a ladeira do cemitério e o abismo onde enterramos o porquinho da índia. O
peixe de brinquedo nadando entre os matinhos do passeio, o fusca verde - minha
lembrança mais distante - o corrimão branco para a rua, o morrito de grama clara até a
calçada, a varanda com porta para a sala. Era a minha mãe chorando ainda o meu tio –
de quem me lembro com espantosa proximidade, meu pai a levar-me até o hotel, no fim
da Queiroz, para comprarmos canelone tantos queijos e chocolates recheados de coco.
Era o teto distante dos ecos no corredor. Morangos no jardim, cenoura crua. Era os
meninos da rua e aquela moça que quase me arrancava as bochechas. Que fofo que ele
é, meu Deus. E tenho ainda as bochechas bem postas. A tartaruga que estava sempre ao
pé do muro, entre as folhas de baixo. A fuga pelos biscoitos da vizinha, o orelhão na
esquina dos quebra-pedras - a garagem pouco depois. Eram os pininhos e o
medo que me faziam de engasgar com aquelas coisas. O medo que me faziam contando
– para que eu ouvisse - o caso de um menino que, brincando de se enrolar no fio do
telefone, morreu enforcado. Eram os peixes do aquário na sala. Os móveis antigos, o
barzinho – excelente para escalas de miniatura – o armário das compras, o telefone de
giro. A primeira ligação – no aniversário talvez – para mim, era como convidar-me a
tomar cerveja, como chamar-me ao trabalho pela manhã ou assistir a chatice infinita dos
jornais televisivos. Ligações eram coisas de gente crescida. A mãe loira de cabelos
encaracolados, a outra de cabelos lisos e menos loiros, a outra de fios negros e a outra
que se parecia muito com a minha, mas tinha cara de outra. Naquela época, todos os
homens eram pais e todas as mulheres eram mães e não me parecia
mal brincar de bonecas com a vizinha, já que o inevitável era tornar-se pai. Lembro-me
também de principiar nos achocolatados e dos pós com gosto de banana e maçã para
facilitar o leite. E tinha a piscina – que devia de ser pequena, mas parecia enorme. Da
Poliana Bola e da Isa e do quão amigos nós éramos. E das ruas depois da escola e do sépia
natural daquelas tardes. Do ônibus que trazia, de quando em vez, o pai dos meninos
todos e não o meu. Do meu pai que brincava comigo já tarde da noite ou em momentos
intervalares do fazer constante dos adultos. Da minha mãe que era sempre estar comigo
– do encanto iluminado das lojas que me iria perseguir vida a fora. Das amoras na rua
de baixo, na casa da Isa. Da rua por onde – indo até o Geraldo – meu pai me contava
sobre os dinossauros, ou sobre as estrelas, ou sobre os reis, ou sobre qualquer outra coisa
que eu perguntasse ou que ele disparasse a falar e que eu ouvia com toda a atenção. Da
princesinha Margô, futura rainha das formigas – que hoje deve já ter netos e governar
um império entre os túneis abandonados da mineradora. O refeitório no topo da colina.
Eram os discos de vinil com música italiana, Kiss, Lobão, Beatles e outros que não
me lembro. Eram as fitas com as canções de rolinho. Era o som cinza e preto e o sofá de
couro que tinha por hábito, no calor, pregar tudo e todos, transformando suor em grude.
Eram as almofadas, o pufe, o cavalinho de pano recheado de isopor. Era a minha
máscara do Chengerman. Era a engenhoca de bolas coloridas, palhaço e cordas, de
música para ninar e tempo. Era o meu quarto e a minha cama – que ainda existe, mas
mudou de cor. Era a notícia pirulitante do irmão – que seria Eduardo, mas, por
interferência divina, foi Gabriel. Era a Doce Neia e a Códia. Eram todos os meus galos
na testa e os ralados e esfolados e roxos e esbarrões. Era o meu nervoso de andar com a
sola nua do pé e o meu terror de galinhas. Era minha prima pequena e o meu primo
maior. Era a bicicleta azul de rodinhas e o tênis que, covardemente, piscava a parte dos
calcanhares quando se corria, obrigando-nos a torcer até a última
hora. Era a linha do trem e a ponte antes da rodoviária. Era o lego e o jogo antigo no
velho computador. Era o jogo de cartas em noites de tempestade. Era o vídeo cassete. Depois, mudamos para outro lugar. Depois, foi uma vida inteira. Depois, foi outra coisa.
E, antes de acabar, é preciso dizer que esse texto se chama O nome do meu bairro.
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