domingo, 10 de abril de 2016

ÁGUA LIMPA



Era o centro – num fim de semana – para comprarmos presentes e réguas azuis de fazer letras e números. A feira do Compadre Grilo, a bolsa marrom de couro para o transporte das garrafas adultíferas, a ladeira do cemitério e o abismo onde enterramos o porquinho da índia. O peixe de brinquedo nadando entre os matinhos do passeio, o fusca verde - minha lembrança mais distante - o corrimão branco para a rua, o morrito de grama clara até a calçada, a varanda com porta para a sala. Era a minha mãe chorando ainda o meu tio – de quem me lembro com espantosa proximidade, meu pai a levar-me até o hotel, no fim da Queiroz, para comprarmos canelone tantos queijos e chocolates recheados de coco. Era o teto distante dos ecos no corredor. Morangos no jardim, cenoura crua. Era os meninos da rua e aquela moça que quase me arrancava as bochechas. Que fofo que ele é, meu Deus. E tenho ainda as bochechas bem postas. A tartaruga que estava sempre ao pé do muro, entre as folhas de baixo. A fuga pelos biscoitos da vizinha, o orelhão na esquina dos quebra-pedras - a garagem pouco depois. Eram os pininhos e o medo que me faziam de engasgar com aquelas coisas. O medo que me faziam contando – para que eu ouvisse - o caso de um menino que, brincando de se enrolar no fio do telefone, morreu enforcado. Eram os peixes do aquário na sala. Os móveis antigos, o barzinho – excelente para escalas de miniatura – o armário das compras, o telefone de giro. A primeira ligação – no aniversário talvez – para mim, era como convidar-me a tomar cerveja, como chamar-me ao trabalho pela manhã ou assistir a chatice infinita dos jornais televisivos. Ligações eram coisas de gente crescida. A mãe loira de cabelos encaracolados, a outra de cabelos lisos e menos loiros, a outra de fios negros e a outra que se parecia muito com a minha, mas tinha cara de outra. Naquela época, todos os homens eram pais e todas as mulheres eram mães e não me parecia mal brincar de bonecas com a vizinha, já que o inevitável era tornar-se pai. Lembro-me também de principiar nos achocolatados e dos pós com gosto de banana e maçã para facilitar o leite. E tinha a piscina – que devia de ser pequena, mas parecia enorme. Da Poliana Bola e da Isa e do quão amigos nós éramos. E das ruas depois da escola e do sépia natural daquelas tardes. Do ônibus que trazia, de quando em vez, o pai dos meninos todos e não o meu. Do meu pai que brincava comigo já tarde da noite ou em momentos intervalares do fazer constante dos adultos. Da minha mãe que era sempre estar comigo – do encanto iluminado das lojas que me iria perseguir vida a fora. Das amoras na rua de baixo, na casa da Isa. Da rua por onde – indo até o Geraldo – meu pai me contava sobre os dinossauros, ou sobre as estrelas, ou sobre os reis, ou sobre qualquer outra coisa que eu perguntasse ou que ele disparasse a falar e que eu ouvia com toda a atenção. Da princesinha Margô, futura rainha das formigas – que hoje deve já ter netos e governar um império entre os túneis abandonados da mineradora. O refeitório no topo da colina. Eram os discos de vinil com música italiana, Kiss, Lobão, Beatles e outros que não me lembro. Eram as fitas com as canções de rolinho. Era o som cinza e preto e o sofá de couro que tinha por hábito, no calor, pregar tudo e todos, transformando suor em grude. Eram as almofadas, o pufe, o cavalinho de pano recheado de isopor. Era a minha máscara do Chengerman. Era a engenhoca de bolas coloridas, palhaço e cordas, de música para ninar e tempo. Era o meu quarto e a minha cama – que ainda existe, mas mudou de cor. Era a notícia pirulitante do irmão – que seria Eduardo, mas, por interferência divina, foi Gabriel. Era a Doce Neia e a Códia. Eram todos os meus galos na testa e os ralados e esfolados e roxos e esbarrões. Era o meu nervoso de andar com a sola nua do pé e o meu terror de galinhas. Era minha prima pequena e o meu primo maior. Era a bicicleta azul de rodinhas e o tênis que, covardemente, piscava a parte dos calcanhares quando se corria, obrigando-nos a torcer até a última hora. Era a linha do trem e a ponte antes da rodoviária. Era o lego e o jogo antigo no velho computador. Era o jogo de cartas em noites de tempestade. Era o vídeo cassete. Depois, mudamos para outro lugar. Depois, foi uma vida inteira. Depois, foi outra coisa. E, antes de acabar, é preciso dizer que esse texto se chama O nome do meu bairro.

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