quinta-feira, 16 de junho de 2016

Não existe amor em São Paulo? “Ai, que preguiça!”




Macunaíma, o herói de nossa gente, vivia com sua mãe e seus irmãos, Maanape e Jiguê, na margem do rio Uraricoera, até partir para a cidade de São Paulo, juntamente com seus irmãos, em busca da Muiraquitã – o “amuleto da sorte”. Viver em uma mata virgem e em uma cidade em processo de urbanização seria uma experiência, a princípio, ambivalente.
Não há, mesmo, muitos que afirmam não existir amor em São Paulo?
“Ai, que preguiça”.
Ao saber que a muiraquitã se encontrava “na cidade macota lambida pelo igarapé Tietê” (ANDRADE, 2004, p.23), com o peruano Venceslau Pietro Pietra, o herói decide deixar a mata virgem e partir para São Paulo com seus irmãos, Maanape e Jiguê, para recuperar a pedra.
A partir desse momento inicia-se a possibilidade da interferência direta, pelo espaço industrializado, na identidade de Macunaíma. Ao deixar o Mato-Virgem, onde sua cultura ainda não era ameaçada pela civilização, e partir para a cidade de São Paulo, os personagens sofrem um certo estranhamento devido à diferença cultural existente entre os índios Tapanhumas e os paulistanos.
Ao chegar na cidade, Macunaíma “brincou” com três cunhãs e gastou, com tal fato, a quantia de quatrocentos bagarotes. O herói não imaginava a possibilidade de “comprar brincadeiras”, algo impensável no mato-virgem. O sexo representa um dos primeiros contatos de Macunaíma com o “homem branco/paulistano”.
Depois desse episódio, Macunaíma estava com a “inteligência perturbada”, confuso no meio da vida agitada da cidade grande:
“Que mundo de bichos! [...] As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagüi-açu não saguim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiados sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjeta postes chaminés... Eram máquinas aparecem e tudo na cidade era só máquina! (ANDRADE, 2004, p.23).

Esse excerto faz alusão à modernização pela qual passava a cidade de São Paulo no início do século XX, além da sociabilidade do sujeito habitante da metrópole que sofre influência direta dessa transformação, evidenciando o poder da máquina sobre os homens, como observado por Macunaíma.
Os elementos do mundo moderno, como os automóveis, as luzes, as fábricas, os arranha-céus; ao mesmo tempo em que surgem como inovadores, deslumbrantes, originam a pressa, o cansaço, a agitação, a luta pelo dinheiro, a competição, a divisão de trabalho, etc., que são imposições, muitas vezes, cruéis e inexistentes no mato-virgem. Todavia, agora vivenciando uma sociedade urbana moderna, Macunaíma se vê obrigado a aceitar e viver em consonância com tal realidade. Permeando esse contexto, surge o questionamento da possibilidade da existência do amor nesse espaço urbano.
Existe ou não amor em São Paulo?
“Ai, que preguiça”.
(http://www.sproad.com.br/index/wp-content/uploads/2012/10/existe-amor-em-sp.jpg)

Os novos costumes da vida moderna estavam sendo aceitos sem contestação pelos moradores da urbe, pois como ressaltou Georg Simmel (1979, p.15), os elementos do mundo moderno “são introduzidos à força na vida pela complexidade e extensão da existência metropolitana”, e possuem relação direta com a economia monetária, sistema sem o qual o sujeito moderno não poderia viver.
Corroborando com essa premissa, no capítulo IX, Carta para Icamiabas, Macunaíma escreve uma correspondência, destinada às senhoras Amazonas, registrando suas sensações. Dentre as descrições feitas, como o comportamento diferente das moças da cidade e das cunhas, as várias formas existentes de linguagem, costumes alimentares, a imigração; destacamos as considerações feitas por Macunaíma sobre o valor do dinheiro no espaço urbano:
O que vos interessará mais, por sem dúvida, é saberes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalâmico; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por pequeninas e voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro – o “curriculum vitae” da Civilização, a que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos. (ANDRADE, 2004, p.72).

Denominado, também, pelo herói, como “vil metal”, Macunaíma refere-se ao dinheiro como objeto essencial para sobrevivência dos sujeitos no espaço urbano capitalista. Por esse motivo, o herói, no fim da correspondência, solicita, às senhoras Amazonas, o envio de frutos, que seriam convertidos em dinheiro, para concluir seu objetivo na cidade de São Paulo: “si não puderdes enviar duzentas igarias cheias de bagos de cacau, mandai, cem, ou mesmo cinquenta” (ANDRADE, 2004, p.81).
De acordo com Georg Simmel, o dinheiro é um dos principais símbolos da modernidade. É um meio de troca universal capaz de acentuar a individualidade do sujeito e das relações humanas e pode, ao mesmo tempo, oferecer autonomia e/ou independência, ou seja, seu surgimento proliferou malefícios e benefícios na vida moderna, como explicou Simmel (1998) em O dinheiro na cultura moderna. Assim, o dinheiro é o motivador do homem moderno, pois, além de ser indispensável para sua sobrevivência, possibilita realizar seus mais variados desejos, proporcionando-lhe uma gama de sentimentos como satisfação pessoal e felicidade. Por outro lado, o dinheiro é o causador das inúmeras intrigas sociais, citadas diversas vezes nas epistolas mariondradianas, pelo fato de ser “o mais assustador dos niveladores” (SIMMEL, 1979, p.16).
Nesse sentido, é possível refletir acerca do questionamento inicial tecendo considerações a respeito da modernização das cidades. Isso nos permite, portanto, fazer a pergunta sobre a existência do amor em demais cidades além de São Paulo, afinal o contexto capitalista – precursor dessa indagação – se faz presente em todo o Brasil, até mesmo no mundo rural, ainda que posteriormente.
As percepções transmitidas por Macunaíma a respeito da cidade de São Paulo oscilam entre apontamentos bons e ruins. Esses, além de nos fazer refletir acerca da vida no espaço urbano, nos possibilitam refletir ainda sobre o modo de vida nos diferentes espaços, ou seja, na cidade e na mata virgem.
Sendo assim, campo e cidade são espaços sociais que possuem qualidades e defeitos, apesar de estarem associados às significações opostas pré-estabelecidas, tal como o campo enquanto local da natureza e tranquilidade e a cidade como local de desenvolvimento e agitação, como podemos inferir da pergunta: “existe amor em São Paulo?”.
            Sobre ela, ressoa apenas a voz de Macunaíma: “Ai, que preguiça!”.

Referências Bibliográficas:
ANDRADE, Mario de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2004.

SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. In: Velho, Otávio Guilherme (org.), O Fenômeno Urbano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.11-25.

____. O dinheiro na cultura moderna. In: SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold (orgs.) Simmel e a Modernidade. Brasília: Unb, 1998. p. 109-117.

Bruna Araujo Cunha é doutoranda em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em Letras/Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, graduada em Letras pela mesma instituição. Professora no Instituto Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura e Sociedade, Literatura e espaço urbano e poesia brasileira.




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