Não existe amor em São Paulo? “Ai, que preguiça!”
Macunaíma, o herói de nossa gente, vivia com sua mãe e seus irmãos,
Maanape e Jiguê, na margem do rio Uraricoera, até partir para a cidade de São
Paulo, juntamente com seus irmãos, em busca da Muiraquitã – o “amuleto da
sorte”. Viver em uma mata virgem e em uma cidade em processo de urbanização
seria uma experiência, a princípio, ambivalente.
Não há, mesmo, muitos que afirmam não existir amor em São Paulo?
“Ai, que preguiça”.
Ao saber que a muiraquitã se encontrava “na cidade macota lambida pelo
igarapé Tietê” (ANDRADE, 2004, p.23), com o peruano Venceslau Pietro Pietra, o
herói decide deixar a mata virgem e partir para São Paulo com seus irmãos,
Maanape e Jiguê, para recuperar a pedra.
A partir desse momento inicia-se a possibilidade da interferência
direta, pelo espaço industrializado, na identidade de Macunaíma. Ao deixar o
Mato-Virgem, onde sua cultura ainda não era ameaçada pela civilização, e partir
para a cidade de São Paulo, os personagens sofrem um certo estranhamento devido
à diferença cultural existente entre os índios Tapanhumas e os paulistanos.
Ao chegar na cidade, Macunaíma “brincou” com três cunhãs e gastou, com
tal fato, a quantia de quatrocentos bagarotes. O herói não imaginava a possibilidade
de “comprar brincadeiras”, algo impensável no mato-virgem. O sexo representa um
dos primeiros contatos de Macunaíma com o “homem branco/paulistano”.
Depois desse episódio, Macunaíma estava com a “inteligência
perturbada”, confuso no meio da vida agitada da cidade grande:
“Que mundo de bichos! [...] As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele
que o sagüi-açu não saguim não, chamava elevador e era uma máquina.
De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiados sopros roncos
esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e
tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes
hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás
as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios
luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjeta postes
chaminés... Eram máquinas aparecem e tudo na cidade era só máquina! (ANDRADE,
2004, p.23).
Esse excerto faz alusão à modernização pela qual passava a cidade de
São Paulo no início do século XX, além da sociabilidade do sujeito habitante da
metrópole que sofre influência direta dessa transformação, evidenciando o poder
da máquina sobre os homens, como observado por Macunaíma.
Os elementos do mundo moderno, como os automóveis, as luzes, as
fábricas, os arranha-céus; ao mesmo tempo em que surgem como inovadores,
deslumbrantes, originam a pressa, o cansaço, a agitação, a luta pelo dinheiro,
a competição, a divisão de trabalho, etc., que são imposições, muitas vezes,
cruéis e inexistentes no mato-virgem. Todavia, agora vivenciando uma sociedade
urbana moderna, Macunaíma se vê obrigado a aceitar e viver em consonância com
tal realidade. Permeando esse contexto, surge o questionamento da possibilidade
da existência do amor nesse espaço urbano.
Existe ou não amor em São Paulo?
“Ai, que preguiça”.
(http://www.sproad.com.br/index/wp-content/uploads/2012/10/existe-amor-em-sp.jpg)
Os novos costumes da vida moderna estavam sendo aceitos sem
contestação pelos moradores da urbe, pois como ressaltou Georg Simmel (1979,
p.15), os elementos do mundo moderno “são introduzidos à força na vida pela
complexidade e extensão da existência metropolitana”, e possuem relação direta
com a economia monetária, sistema sem o qual o sujeito moderno não poderia
viver.
Corroborando com essa premissa, no capítulo IX, Carta para Icamiabas,
Macunaíma escreve uma correspondência, destinada às senhoras Amazonas, registrando
suas sensações. Dentre as descrições feitas, como o comportamento diferente das
moças da cidade e das cunhas, as várias formas existentes de linguagem,
costumes alimentares, a imigração; destacamos as considerações feitas por
Macunaíma sobre o valor do dinheiro no espaço urbano:
O que vos interessará mais, por sem dúvida, é saberes que os
guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalâmico; mas
antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por pequeninas e voláteis
folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro – o “curriculum vitae” da
Civilização, a que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos. (ANDRADE, 2004,
p.72).
Denominado, também, pelo herói, como “vil metal”, Macunaíma refere-se
ao dinheiro como objeto essencial para sobrevivência dos sujeitos no espaço
urbano capitalista. Por esse motivo, o herói, no fim da correspondência,
solicita, às senhoras Amazonas, o envio de frutos, que seriam convertidos em
dinheiro, para concluir seu objetivo na cidade de São Paulo: “si não puderdes
enviar duzentas igarias cheias de bagos de cacau, mandai, cem, ou mesmo
cinquenta” (ANDRADE, 2004, p.81).
De acordo com Georg Simmel, o dinheiro é um dos principais símbolos da
modernidade. É um meio de troca universal capaz de acentuar a individualidade
do sujeito e das relações humanas e pode, ao mesmo tempo, oferecer autonomia
e/ou independência, ou seja, seu surgimento proliferou malefícios e benefícios
na vida moderna, como explicou Simmel (1998) em O dinheiro na cultura moderna. Assim, o dinheiro é o motivador do
homem moderno, pois, além de ser indispensável para sua sobrevivência,
possibilita realizar seus mais variados desejos, proporcionando-lhe uma gama de
sentimentos como satisfação pessoal e felicidade. Por outro lado, o dinheiro é
o causador das inúmeras intrigas sociais, citadas diversas vezes nas epistolas
mariondradianas, pelo fato de ser “o mais assustador dos niveladores” (SIMMEL,
1979, p.16).
Nesse sentido, é possível refletir acerca do questionamento inicial
tecendo considerações a respeito da modernização das cidades. Isso nos permite,
portanto, fazer a pergunta sobre a existência do amor em demais cidades além de
São Paulo, afinal o contexto capitalista – precursor dessa indagação – se faz
presente em todo o Brasil, até mesmo no mundo rural, ainda que posteriormente.
As percepções transmitidas por Macunaíma a respeito da cidade de São
Paulo oscilam entre apontamentos bons e ruins. Esses, além de nos fazer
refletir acerca da vida no espaço urbano, nos possibilitam refletir ainda sobre
o modo de vida nos diferentes espaços, ou seja, na cidade e na mata virgem.
Sendo assim, campo e cidade são espaços sociais que possuem qualidades
e defeitos, apesar de estarem associados às significações opostas
pré-estabelecidas, tal como o campo enquanto local da natureza e tranquilidade
e a cidade como local de desenvolvimento e agitação, como podemos inferir da
pergunta: “existe amor em São Paulo?”.
Sobre ela, ressoa apenas a voz de
Macunaíma: “Ai, que preguiça!”.
Referências Bibliográficas:
ANDRADE, Mario de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Livraria
Garnier, 2004.
SIMMEL, Georg. A
Metrópole e a Vida Mental. In: Velho, Otávio Guilherme (org.), O Fenômeno Urbano. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.11-25.
____. O dinheiro na
cultura moderna. In: SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold (orgs.) Simmel e a Modernidade. Brasília: Unb, 1998.
p. 109-117.
Bruna Araujo Cunha é doutoranda em
Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em
Letras/Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, graduada em
Letras pela mesma instituição. Professora no Instituto Federal de Minas Gerais.
Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas:
Literatura e Sociedade, Literatura e espaço urbano e poesia brasileira.
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