Gaetaninho e o culto pela velocidade
Em
1927, foi publicado o livro Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara
Machado, composto por onze contos que retratam a adaptação do imigrante
italiano, a urbanização de São Paulo e o comportamento dos personagens modernos
da obra. Nessa narrativa cinematográfica, encontramos o humor dialogando com a
preocupação de focalizar o sujeito que ocupa a capital paulista. Ainda de
acordo com Alfredo Bosi:
Voltado
para a vida da sua cidade, Alcântara Machado soube ver e exprimir as altera-
ções que trouxera à realidade urbana em um novo personagem: o imigrante. O
enxerto que o estrangeiro, sobretudo o italiano, significava para o tronco
luso-tupi da antiga são Paulo produzira mudanças de costumes, de reações
psicológicas e, naturalmente, uma fala nova a espelhar novos conteúdos (BOSI,
1994, p. 374).
Nesse sentido, o imigrante é a figura de
destaque que ressalta o processo de adaptação econômica e cultural desse grupo,
que por sinal foi um processo repleto de esforços e dificuldades. Em poucos
contos, o imigrante italiano apresenta a ascensão econômica, enquanto o
paulista aristocrata simboliza a falência e a vontade de reascender
socialmente, e para melhor exemplificar essa situação o autor utiliza o automóvel
como símbolo dessa ascensão, devido ao fato de o veículo ser um objeto de alto
valor aquisitivo, representado o luxo e o poder na sociedade paulista de 1920.
A elite paulistana se orgulhava de ter
introduzido o automóvel na sociedade, e dada a
sua
forma de introdução súbita e peculiar na cidade, duplamente aureolado pelo
prestígio da mais moderna tecnologia europeia e do mais vistoso objeto de
consumo conspícuo, o automóvel passou a ser usado de forma a acentuar a sua
mística e se impor como uma moldura mecânica sofisticada do poder, mesmo na mão
de choferes e empregados de companhias (SEVCENKO, 2000, p. 74).
Esse
deslumbramento automobilístico é expresso no conto Gaetaninho, uma vez que esse
retrata a história de um menino, representante dos imigrantes de condição
humilde, que ficava perambulando pela Rua do Oriente admirado com os Fords que
ali passavam. O sonho do garoto, de andar de carro pelas ruas, era de difícil
concretiza- ção, pois as pessoas de classe média e baixa só andavam de bonde e,
caso andassem de carro, era por motivo de enterros ou casamentos. Embora
inacessível às pessoas pobres o fascínio pela vontade de andar em um automóvel
era tão intensa que fez Gaetaninho sonhar com essa possibilidade.
Gaetaninho
enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que beleza,
rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filomena para
o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos.
Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o
gorro branco onde se lia: Encouraçado São Paulo. Não. Ficava mais bonito de
roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica.
E ligas pretas segurando as meias. Que beleza rapaz! Dentro do carro o pai os
dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha outro de gravata verde) e o
padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos
palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Caetaninho (MACHADO, 2002, p.
21).
Nesse
sonho, o personagem realizava a vontade de andar de carro, em uma situação
desconfortável, ou seja, por intermédio da morte da sua tia Filomena. Mas o
desejo de Gaetaninho não é concretizado na vida real, seguindo caminhos cômicos
no conto.
Gaetaninho saiu
correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou. No bonde
vinha o pai do Gaetaninho.
A gurizada
assustada espalhou a noticia na noite.
– Sabe o
Gaetaninho?
– Que é que tem?
– Amassou o
bonde!
A vizinhança
limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis
horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na
boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um
caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as
ligas, mas não levava a palhetinha.
Quem na boléia
de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a
vista da gente era o Beppino (MACHADO, 2002, p. 23).
O final do conto é surpreendente, não só
pela rapidez de como se dá a morte de Gaetaninho, mas também pela troca de
valores que o automóvel assume, passando de objeto admirado (representante do
status econômicos) a motivo de dor e tristeza (a morte), que no conto é
abordada com um caráter humorístico por meio de uma construção irônica presente
no diálogo (amassou o bonde). Sendo assim, Antônio de Alcântara Machado
consegue criar uma inversão dos sentimentos para provocar o riso diante de um
acontecimento trágico, isto é, a morte de um garoto que brincava na rua e foi
atropelado por um objeto representante do culto da velocidade, da vida
frenética urbana, da máquina. E o que era tragédia passa a ser motivo de riso.
Esse conto descreve o impacto que o
automóvel causava no século XX, principalmente em uma metrópole como São Paulo,
que era, em meados dos anos 1920, símbolo de progresso e modernização. Para
isso, praticamente todo o conto se passa na rua – espaço público –, cenário de
convivência de todos os segmentos da sociedade urbana, não deixando de ser
também um elemento moderno, pois
com
cada atravessar de rua, como o ritmo e a multiplicidade da vida econômica,
ocupacional e social, a cidade faz um contraste profundo com a vida rural no
que se refere aos fundamentos sensoriais da vida psíquica. A metrópole extrai
do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma quantidade de
consciência diferente do que a vida rural extrai (SIMMEL, 1967, p. 12).
Com
o excerto acima, fica nítido que a rua é o espaço próprio da metrópole, isto é,
da modernidade. E para isso ser concretizado, Alcântara Machado utiliza além do
próprio espaço moderno – a rua – alguns recursos como a linguagem
cinematográfica, frases fragmentárias, discurso direto e sintático, elementos
da metrópole (automóveis, transeuntes, máquinas, motor, tumulto) fazendo com
que a narrativa tenha um caráter breve, rápido, para melhor reproduzir o ritmo
frenético da realidade urbana.
Bruna Araujo Cunha é doutoranda em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em Letras/Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, graduada em Letras pela mesma instituição. Professora no Instituto Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura e Sociedade, Literatura e espaço urbano e poesia brasileira.
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