quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Literatura e História em Um Conto de Duas Cidades


Um Conto de Duas Cidades é uma obra ficcional, mas que apresenta fatos e personagens reais, históricos. Nesse romance, Charles Dickens faz alusão à situação da Inglaterra e, principalmente, da França do século XVIII.
          Com o intuito de descrever não somente a sociedade do período revolucionário, mas também as principais consequências oriundas destes períodos históricos – Revolução Francesa e independência americana – Dickens entrelaça de forma engenhosa Literatura e História, alargando o âmbito e o valor da escrita ficcional.
       Essas áreas possuem vários pontos semelhantes e o principal deles é o uso em comum da narrativa, fazendo com que a História se aproxime mais da Literatura do que da ciência, pois aquela é produzida por um sujeito plural, logo sua escrita é subjetiva. De acordo com Luiz Costa Lima, a diferença entre essas disciplinas é o foco narrativo, enquanto a História busca um discurso baseado na “verdade” a Literatura possui total liberdade para criar.
         Desde o século XIX há registros de obras literárias que entrelaçam realidade e ficção, estas foram denominadas de romances históricos. Dito de outra forma, são textos literários que utilizam informações de fontes históricas, como salienta Marinho,
Trata-se de um gênero híbrido, na medida em que é próprio da sua essência a conjugação da ficcionalidade inerente ao romance e de uma certa verdade, apanágio do discurso da história (MARINHO, 1999, p.12).

            Sabemos que no século XIX o Realismo e o Naturalismo predominavam enquanto gêneros literários, logo surgia um novo estilo de romance que tentava fazer alusões mais fies da sociedade da época, diferentemente do romance romântico. Assim sendo, o romance histórico do século XIX é um gênero literário que faz com que a narrativa ficcional se aproxime ainda mais da realidade, pois além de ser realista, utiliza de fontes verídicas para criar sua narrativa, característica marcante do romance histórico.
            É por esse viés que Charles Dickens escreve Um Conto de Duas Cidades, romance inglês publicado em 1859. Encontramos nesta obra de temática histórica a utilização de acontecimentos, personagens e lugares reais que são entrelaçados com a ficção, por isso é possível considerar a obra como um romance histórico.
         Vale ressaltar neste livro, e nos demais de mesmo gênero literário, a liberdade de criação do narrador ao misturar no romance verdade e imaginação. Além disso, o escritor tem a total liberdade de criticar o fato que está sendo narrado e, ainda, inventar qualquer coisa para modificar a história verídica ou mesmo para preencher as lacunas deixadas por ela; entre tantas outras possibilidades próprias dos escritores.
         Em Um Conto de Duas Cidades está presente, além do diálogo entre literatura e história, uma crítica social feroz à sociedade da época e um realismo bem demarcado na narrativa.
            No romance Um Conto de duas cidades, o autor utiliza a Revolução Francesa como um pano de fundo da narrativa, mencionando as consequências provocadas por ela por meio de muita precisão histórica.
        Dentre os vários pontos problemáticos questionados na narrativa, é marcante a questão da morte e das atrocidades que, por serem triviais, passaram a ser vistas pela população como acontecimentos normais, assim como “um homem bem visto a caminho da prisão era um fato tão corriqueiro quanto um homem comum a caminho do trabalho” (DICKENS, 2002, p. 297).
            As precárias condições de vida também são fortemente representadas no romance, pois a maior parte da população retratada em Um Conto de Duas Cidades sofriam grandes abusos de poder por parte da nobreza.
     Os problemas sociais e políticos do período revolucionário francês aparecem constantemente no romance com o intuito de retratar o quadro social do período. Além de que, por meio da descrição da cidade, Dickens consegue expor com clareza o ambiente nostálgico daquele momento histórico.

Com um solene interesse pelas janelas iluminadas onde as pessoas se preparavam para repousar, esquecidas por algumas poucas e tranquilas horas dos horrores que as circundavam; pelas torres das igrejas, onde nenhuma prece era rezada, pois a revolta popular atingira esse ponto de autodestruição, como consequência dos anos e anos de impostura eclesiástica, de libertinagem e rapina, interessado pelos distantes cemitérios, reservados, conforme escreviam sobre os portões, ao Sono Eterno; pelas abundantes prisões e pelas ruas por onde os grupos de sessenta eram guiados para a morte, a qual se tornara algo tão cotidiano e concreto que não sobrara espaço para as histórias lúgubres de fantasmas e aparições que normalmente surgem entre as pessoas, remanescendo apenas o lúgubre terror da guilhotina; com um solene interesse, enfim, pela vida e pela morte da cidade que se aplacava para a breve pausa noturna de sua fúria... (DICKENS, 2002, p. 366).
           
         Esta descrição evidencia com riqueza de detalhes as consequências do período revolucionário, a privação e modificação da vida da sociedade que passava a viver amedrontada, apesar de já estarem se acostumando com a situação, o medo ainda prevalecia.
            É possível perceber que este romance histórico é marcadamente realçado por seu caráter realista, principalmente, pelo fato da utilização de fontes históricas como a apropriação do lema da Revolução Francesa, “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” que é recriado por Charles Dickens na narrativa.
... em cada portão das cidades e colaterais das aldeias havia bandos de patriotas-cidadãos, com seus mosquetes nacionais no mais explosivos estados de prontidão, que retinham todos os que chegavam e saíam, interrogavam-nos, inspecionavam-lhes os documentos, procuravam-lhes os nomes em listas, mandavam-nos de volta ou em frente ou prendiam-nos, de acordo com que seus caprichosos julgamentos ou fantasias considerassem melhor para a nascente República Una e Indivisível da Liberdade, Igualdade, Fraternidade ou Morte (DICKENS, 2002, p. 289, grifo meu).

            Nesta passagem, além de constatarmos a alusão que Dickens faz ao lema da Revolução Francesa, há também a descrição do perigo da fronteira entre a Inglaterra e a França naquela época que, por sua vez, justifica o acréscimo do vocábulo “morte” à frase revolucionária. Esta mudança, em uma frase emblemática, é muito representativa neste romance, uma vez que este vai além dos registros históricos da Revolução Francesa. Em Um conto de duas cidades a revolução é apenas pano de fundo de uma narrativa que denuncia a miséria, a corrupção, a fome, a vingança e as “mortes” sucedidas na França revolucionária. Essa possibilidade talvez seja uma das “vantagens” da Literatura se comparada com a História, pois somente o escritor possui a liberdade de inserir em um determinado acontecimento seu ponto de vista, como ocorre em Um conto de duas cidades

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DICKENS, Charles. Um conto de duas cidades. São Paulo: Nova Cultura, 2002.

LIMA, Luiz Costa. História. Literatura. Ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

MARINHO, Maria de Fátima. O romance histórico em Portugal. Lisboa: Campo das Letras, 1999.
Bruna Araujo Cunha é doutoranda em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em Letras/Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, graduada em Letras pela mesma instituição. Professora no Instituto Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura e Sociedade, Literatura e espaço urbano e poesia brasileira.

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