FUTUM
Outra vez, a gata subiu no sofá, roçou o dorso branco nas almofadas
limpas, carregou de pelos o tecido escuro, parou na altura do braço, examinou a
sala, esfregou de leve a cabeça contra o couro frio e – como se preparasse um
descida cuidadosa – levantou o rabo, mirou intuitivamente um ponto na parede,
focinho para frente, uma leve tremida e um jato riscou de sombra o Oxford azul
marinho. Um futum imenso de mijo novo.
Era assim - todos os dias.
A caixa estava lá, a areia estava lá, mas a gata sempre
marcava o seu território. Não importava o que pensariam dela, não tinha
importância se os humanos, ao chegarem em casa, sentassem no sofá ensopado de
urina ou se comessem da comida que estava sobre o fogão ou as bananas da
fruteira ou os biscoitos da prateleira ou das cebolinhas ou das maças. Não
importava se o tênis havia sido lavado naquela manhã, se a pasta continha
documentos importantes, se a porta enferrujaria, se o computador pifaria, se os
livros mofariam. Não importava.
Pensaram em consumir com a gata, mandar que o vizinho soltasse
a diaba numa beira qualquer de estrada. Na fúria da mijança, pensaram até em
torcer o pescoço da perversa, mas a criança, que – como a gata – mijava
irrestritamente pela casa, morreria no desgosto. “As crianças, como os gatos” –
dizia o Seu Nico – “não se importam com essas miudezas, porque ainda vivem na
realidade das coisas que se lavam sozinhas, da comida que brota das panelas,
dos desenhos que se apagam das paredes”.
Para a gata, era apenas uma questão de marcar território. Não era por
maldade, não era por bondade, era pelo território. Na casa, a responsabilidade
por erradicar a razão da fedentina era sempre apontada para o outro, já que a
gata, por ser gata, mesmo estando em papel de culpada, não era capaz de pagar
por seus crimes hediondos. O fulano não podia limpar, afinal de contas,
trabalhava o dia todo, era o mais cansado de todos os cansados, o mais pobre de
todos os pobres, o mais injustiçado entre os injustiçados. A fulana não podia
limpar, porque sempre fazia tudo e tudo era sempre responsabilidade sua e tinha
de cuidar das finanças e das consultas marcadas e dos remédios e das contas e
dos afazeres que estavam sempre por fazer. A beltrana, no auge da sua meninice,
no ponto mastro da sua trajetória infanto-juvenil, não poderia limpar também,
porque tinha de dormir e tinha de comer e tinha de sair e brincar e se
divertir. No entanto, a gata seguia mijando, os livros seguiam mofando, as
almofadas seguiam desbotando – e o cheiro só aumentava. A fulano reclamava com
a fulana que reclamava com o fulano que não falava nada com a beltrana e a
beltrana, que tinha nariz para essas coisas, reclamava com a fulana que – não
podendo reclamar com a beltrana - reclamava com o fulano.
De tanto fazer coisa nenhuma, a pestilência tomou a casa
inteira, estava entre as prateleiras da dispensa, no lago sucinto da privada,
no lençol no varal, nas flores do jardim, nas telhas do telhado, nas notícias
da TV, nos olhares entrecruzados, nos gestos reprimidos, nas conversas sufocadas,
na mágoa que crescia dentro feito erva daninha, tomando de assalto as colunas,
preenchendo os espaço entre uma base e outra, escondendo da visão o lado de lá,
inaugurando uma cerca viva e áspera.
Até que um dia,
uma vizinha antiga que havia se mudado para outra cidade,
passando por ali, perguntou sobre a gata. E foi com espanto que eles perceberam
a ausência da maldita. Já não a viam fazia um bom tempo. Tanto tempo que já nem
se recordavam da última vez. Apesar disso, o cheiro ainda estava lá. O futum. O
problema não era o mijo, o problema não era a gata, o problema era o cheiro. O
cheiro invisível, o cheiro encruado, indigesto, endurecido, o cheiro na casa
toda, em todos os cômodos, em tudo. Se continuasse assim, muito em breve, a
catinga tomaria a vizinhança, percorreria a rua, cobriria a cidade, invadiria o
país, tragaria o continente, venceria os mares, dominaria o mundo. E a vizinha
estava com a razão, alguma coisa ali cheirava muito mal, mas a culpa é da gata.
A culpa será sempre da gata.
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