quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Prolegomenon, de H. Fritzer


(Tradução de Carlos Ambrósio e Lucca Tartaglia)


"Ouça. Você consegue entender agora? Consegue entender como as coisas se movem entre os olhos desaparecidos dessa cidade-aluguel? O deserto a nossa frente. Não o deserto. Veja. Tudo agora parece um emaranhado crespo de volúpia, suor e medo. Aquela canção alucinada e os passos em volta. Os passos em volta. É o fim. E as garotas ainda sobre os rapazes e os carros ainda sobre a serpente e as gargalhadas no bosque. Eu nunca mais olharei para os cães que rezam virgens no amanhecer confuso da virada. Consegue imaginar como será? Dois estranhos caminhando em uma terra desesperada sobre um sol de alaúdes? Olhe para mim. Beba. Sorva o primitivo e as canções todas que percorrem a minha vontade abandonada. Não deixe a roda parar – não deixe os pés suspensos. Como crianças no parque, sejamos imensos. Insanos como crianças em uma brincadeira eterna de morte. Vamos caminhar. Veja a cabeça do rei, como é discrepante com o seu tamanho. Dome a serpente. A serpente ancestral que aturdiu os nossos ancestrais. O oeste é o melhor lugar. Não corra, não ainda. Você consegue entender? Os corredores confusos daquela semente. Os lábios de pedra. O caule da sua potência confeccionando a minha destreza, atrasando a palavra – um pilão que amassa a matéria contra o fundo da boca, transformando qualquer sílaba em soluço, prostrando a substância amorfa – suspendendo a passagem do ar, quando meu crânio guarda o que agora é ventre. E o buço torna-se a flor dentada e serena. E o pendão é língua e a saliva banha o opressor. Engolir. Alimentar. Contra a superfície dura do animal. E os polos se invertem num movimento brusco de expansão. E os poros se divertem vulcânicos. As muralhas desabam e a fenda e as pétalas de carne e humanidade se abrem. É a oração de todos os santos. Palmas unidas em botão e a carne menos hábil da sua língua tentando romper a novena, buscando feroz o âmago da terra – onde Gaia resguarda os filhos da fome de Urano. Sim, vamos com isso. Senta-te ao meu lado, à esquerda de mim. Sento-me. A população dos dedos - pontas sobre hastes invadem a turbamulta de uma valsa lenta e são aristocratas em campos de batalha. Posso contar os pês da sua cadência e o ritmo consternado da minha involução. E erguemos os braços colhendo do pomo alto. Lacremos as janelas e que nada entre por onde os deuses permitiram. Não seremos um conjunto. Encontramos uma grande baga de casca lenhosa e impermeável e ao lado dela um almofariz. E a lágrima densa se tornou quatro rios inteiros e a nogueira devastou sua sede, o cheiro do reino sobre a coroa e a passagem silente do abismo. No fruto daquela árvore de antes, cravamos o destino da polpa inocente e constrangida. Conhecer. Estamos nus e tememos a Deus. Ele chama. O corpo descoberto se recolhe no momento absconso da vestimenta. Ele chama. Deixe que as ondas levem uma parte do Céu e que a espuma sagre em forma de vertigem distante o formato vivo da natureza. Ele chama. Estamos expulsos do paraíso e a lâmina guarda os portões. Ele chama".

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