REFLEXÕES SOBRE A SABEDORIA AFRICANA: ROMPER, REVER E REPENSAR EM SANKOFA
Por inúmeras vezes nas
últimas duas décadas, estive à testa de cursos de capacitação em
afro-educação. De igual modo, em múltiplos momentos fiz uso da
palavra, quando assim exigia o andamento das interações em sala de
aula, para explanar sobre o símbolo africano relativo ao pássaro
Sankofa, ou “o patinho”, tal como simpaticamente meus
alunos a ele se referiam.
A imagem de Sankofa,
que figura na abertura deste artigo e adotado, a partir de conversa
com minha amiga Izabel Liviski, para ser o logo
da Coluna
Antropo-Lógicas, traduz
muitos ensinamentos que se enraízam na longa e memorável trajetória
dos povos e culturas da África, fonte de inspiração para
afro-descendentes e todos que estão atentos aos sentidos últimos da
vida. Antes, porém, de traduzirmos
o que o pássaro Sankofa tem a nos dizer, seguem algumas reflexões
sobre a
Africanidade.
Neste sentido,
questionando o regime de estereotipias imposto ao continente, a
África foi inegavelmente o berço da Humanidade, das primeiras
criações técnicas e culturais, assim como origem de vários e
majestosos empreendimentos civilizatórios, a começar pela
civilização egípcia.
Africanidade diz
respeito a uma extensa pauta de realizações, numa seriação que se
estende de notáveis descobertas tecnológicas à arte, relações
sociais à estética, da arquitetura às mais diversas interpretações
do sagrado. E naturalmente, a toda sorte de modos de comunicação,
dos quais os símbolos Adinkra constituem nota particularmente
atrativa.
Justifico a utilização
do termo atrativo em
razão do alto poder de síntese e de representatividade que conotam
as simbologias africanas. O sábio maliano Amadou Hampaté Bâ
referiu-se em diversos textos à capacidade do africano em criar
imagens e modelos que captam a essência dos fatos da vida,
impregnando de pronto a visão e a mente de quem os observa.
Não é por outra razão
que muitos expoentes da arte moderna foram seduzidos pelas
proposições imagéticas oriundas da África, dentre os quais Pablo Picasso, Henri Matisse, Vincent van Gogh, Paul Gauguin e
Amedeo Modigliani.
É também por este motivo que a África mantém-se no status que reconhecidamente desfruta: de configurar um imenso manancial de manifestações artísticas, que encantam todos os povos do mundo.
É também por este motivo que a África mantém-se no status que reconhecidamente desfruta: de configurar um imenso manancial de manifestações artísticas, que encantam todos os povos do mundo.
Nesta derivação é
que podemos comentar o Sankofa e o sistema de símbolos ao qual se
integra. E talqualmente a todas as sistematizações simbólicas do
continente, o código Adinkra mantém relação íntima com a
Africanidade. Ou seja: associa-se a um conjunto de premissas que
localizamos num heterogêneo leque de culturas do continente.
O Adinkra é um
conjunto de símbolos muito prestigiado na África Ocidental para
transmitir mensagens e valores das comunidades. Esta verdadeira jóia
da cultura ancestral africana foi, de acordo com a tradição oral,
disseminado a partir de guerra travada no início do Século XIX pelo
rei Osei Bonsu, dos Ashanti, contra Nana Kofi Adinkra, que reinava em
partes dos atuais Gana e Costa do Marfim.
Vitorioso, Osei Bonsu,
além de decapitar o soberano inimigo, tomou-lhe as técnicas dos
grafismos e das estamparias ornamentadas pelos símbolos que se
tornaram conhecidas como Adinkra.
Este sistema simbólico
é particularmente difuso na República do Gana, país onde podem ser
vistos nas estampas das roupas utilizadas no cotidiano, nas
cerâmicas, adereços arquitetônicos, em festividades e outros
eventos.
Muitos ganenses também
fazem uso do conjunto ideográfico Adinkra em pequenos pingentes e
enfeites. A indústria do turismo popularizou o sistema visual
Adinkra na forma de souvenirs
e camisetas, contribuindo para difundi-lo junto a povos de cultura
europeia.
Vendedor ganense. |
Por sinal, Adinkra
significa “despedida” ou “gesto de adeus” na língua Twi,
possuindo sentido mais profundo com “soltura” ou “emanação”
do Kra, termo
dicionarizado cujo sentido aproximado para a mentalidade ocidental é
alma. Assim sendo, um
Adinkra é bem mais do que um símbolo gráfico.
Possuindo um design
extremamente criativo, este sistema de comunicação gráfica, que de
acordo com certo consenso entre os estudiosos é composto por cerca
de oitenta símbolos, carrega, portanto, um conteúdo não apenas
estético, mas insere, resguarda e transmite aspectos da história,
valores, expectativas e normas culturais dos povos desta porção da
África Ocidental. Alguns exemplos:
Símbolos Adinkra |
Cada símbolo remete a
provérbios, ensinamentos e prédicas da sociedade tradicional,
sempre com articulação visual de matriz ideogramática, a expressar
idéias e noções. Nesta perspectiva, os símbolos podem até serem
usados de modo decorativo. Mas nunca estão dissociados da função
transmitir recados da sabedoria tradicional, aspectos da vida ou do
ambiente social.
Note-se que dentre
todos os símbolos Adinkra, o princípio Sankofa possui relevância
especial. Mais conhecido a partir da versão do “patinho”,
Sankofa reporta a um antigo provérbio da África ocidental: “Se
wo were fi na wo sankofa a yenkyi”. Isto é:
“voltar e apanhar de novo aquilo que ficou pra trás”. Dito de
outro modo, nunca é tarde para apanhar o que
ficou para trás ou mais sinteticamente,
aprender com o passado para construir o futuro.
Certo é que a frase
faz pleno sentido, pois em si mesma traduz experiências de vida
comuns na biografia de todos. Com efeito, o passado é uma herança
que não se destaca dos rumos assumidos por pessoas, povos e
comunidades. Todavia, mais certo ainda é que quando pensamos este
lema apreciando o desenho de Sankofa todos os sentidos e implicações são consideravelmente ampliados.
Imagem Adinkra Sankofa |
Observando com mais atenção a imagem do “patinho”, notamos facilmente que o axioma geométrico é o círculo, que somente não é completo em função da lacuna que separa a cabeça do pássaro que olha para trás e o rabo da ave. Ademais, o perímetro da ave apresenta a forma de um ovo, modelado que como veremos não é nada fortuito.
Outra evidência - que
não fica explícita de imediato - é que as patas do “patinho”
não correspondem às de um palmípede. Qualquer um sabe que patos
não possuem garras. Deste modo, a imagem
insere várias interpretações, que resumidamente seriam:
1.
O patinho olha para o próprio rabo, em vista de que devemos primeiro
avaliar no que cada um de nós errou. Não adianta culpabilizar
terceiros, exteriorizar responsabilidades. Apenas quando olhamos os
próprios desvios é que podemos ter força moral para exigir que os
outros também acertem o passo e corrijam seus erros.
2.
As patas da ave são garras porque ninguém pode apreciar o que
aconteceu pensando no amanhã sem estar firmemente agarrado ao chão.
Qual seja: na realidade. Qualquer tentativa de ajuizar o passado e o
futuro “sem manter os pés no chão” estará, pois fadada ao
fracasso.
3.
O círculo tem um lapso por um motivo muito simples: ninguém sai de
um círculo vicioso e inaugura um círculo virtuoso sem interromper,
desatar, sustar, cortar ou romper com o passado. O passado que não
convém é para ser revisto e repensado numa ótica crítica,
transformadora das pessoas e da comunidade no seio da qual vive.
4.
Por fim, foi dito que o corpo da ave configura uma forma ovalada.
Pois bem: nada surge sem rompimento, sem a decisão em vir à luz, de
iniciar algo inédito, “sem sair do ovo”, sem
emanar o kra. Romper, portanto é nascer
novamente e ao mesmo tempo, libertar a essência dantes isolada do
mundo.
Eis então o que nos
ensina a sabedoria ancestral africana. Não existe futuro sem que
rompamos as correntes que nos aprisionam, quando não olhamos para
nós mesmos e ignoramos a realidade como eixo da avaliação. Lógica
concreta e sagaz. Profunda na sua simplicidade. Simplicidade da
sabedoria!
TEXTOS COM TEMÁTICA
CORRELATA À DESTE TEXTO:
A Bandeira dos
Orixás. Artigo postado em 14 de Setembro de 2016 no Blog Foco de
Fato. Acesso:
As Magníficas Bibliotecas do Império do Mali. Artigo postado em 30 de Março de 2016 na Home Page do Instituto Portal Afro. Acesso: http://www.portalafro.com.br/as-magnificas-bibliotecas-do-imperio-do-mali/
TÍTULOS DO MESMO
AUTOR EM ÁFRICA & AFRICANIDADES LANÇADOS EM 2016 PELA EDITORA
KOTEV. TÍTULOS E LINKS COM MAIS INFORMAÇÃO:
A Memória Viva da
Rainha Nzinga: Identidade, Imaginário e Resistência
Águas de Angola:
Debate Estratégico e Multilateral
Guerra da Água À
Vista?
O Conflito Potencial
Entre Angola e África do Sul pelos Recursos Hídricos
O Baobá na Paisagem
Africana:
Singularidades de
uma conjugação entre natural e artificial
O Fabuloso Reino dos
Mansas do Mali
Retratos da Rainha
Nzinga: Ginga de Memórias, Ginga de Lutas
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
HAMPATÉ-BÂ,
Amadou. África: Um Continente
Artístico. In: Revista O Correio da
UNESCO, edição de Abril. Rio de Janeiro (RJ): Fundação Getúlio
Vargas (FGV). 1976;
LEITE,
Fábio. Valores Civilizatórios em
Sociedades Negro-Africanas. In
Introdução aos Estudos da África Contemporânea. Brasília e São
Paulo (DF-SP): Centro de Estudos Africanos da USP (CEA-USP) e
Ministério das Relações Exteriores, texto mimeo. 1984;
MUNANGA,
Kabengele. África Negra e a Formação
da Africanidade. In: Vozes da
África, Biblioteca Entrelivros. São Paulo (SP): Editora
Duetto. 2007;
_________. Povos e
Civilizações Africanos. In Introdução aos Estudos da África
Contemporânea. Texto mimeo. Brasília e São Paulo (DF-SP): Centro
de Estudos Africanos da USP (CEA-USP) e Ministério das Relações
Exteriores. 1984;
Bibliotecas do Mali
NASCIMENTO, Elisa
Larkin et SÁ, Luiz Carlos (organizadores). Adinkra:
Sabedoria em Símbolos Africanos. Rio de Janeiro (RJ): coedição
Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) e Pallas
Editora e Distribuidora Ltda. 2009;
WALDMAN, Maurício. As Magníficas Bibliotecas do Império do Mali. Artigo postado em 30 de Março de 2016 na Home Page do Instituto Portal Afro. Acesso: http://www.portalafro.com.br/as-magnificas-bibliotecas-do-imperio-do-mali/
WALDMAN,
Maurício et alli.
Memória D'África - A Temática
Africana em Sala de Aula. São Paulo
(SP): Cortez Editora. 2007.
Senac, noite de autógrafos, 2016. |
MAURÍCIO
WALDMAN
é jornalista, antropólogo, pesquisador, editor, consultor ambiental e professor universitário. Como ativista, Waldman distinguiu-se em diversas mobilizações, em especial no movimento ambientalista. Waldman atuou como colaborador de Chico Mendes e participou em entidades e organizações como o Comitê de Apoio aos Povos da Floresta, Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo e Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI, São Paulo e Rio de Janeiro).
é jornalista, antropólogo, pesquisador, editor, consultor ambiental e professor universitário. Como ativista, Waldman distinguiu-se em diversas mobilizações, em especial no movimento ambientalista. Waldman atuou como colaborador de Chico Mendes e participou em entidades e organizações como o Comitê de Apoio aos Povos da Floresta, Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo e Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI, São Paulo e Rio de Janeiro).
Também participou do movimento sindical e mobilizações em favor dos catadores, atingidos por barragens, em defesa da reciclagem, por energias alternativas e pela preservação dos recursos hídricos.
Waldman
foi Coordenador de Meio Ambiente em São Bernardo do Campo, Chefe da
Coleta Seletiva de Lixo da capital paulista, Diretor da Escola de
Crianças de Rua de São Paulo, da Escola da Fundação Estadual do
Bem Estar do Menor (FEBEM) e Editor da Associação dos Geógrafos
Brasileiros (AGB).
Em
2010, a partir de avaliação de pesquisadores dos EUA, Waldman
integrou lista de 96 personalidades brasileiras de origem judaica,
publicada em Brazilian Jews (Books LLC, USA: Memphis, Tennessee,
2010).
Maurício
Waldman já colaborou com a mídia impressa em diversas modalidades.
Foi colunista, articulista e/ou colaborador da Agência Ecumênica de
Notícias, do jornal Diário do Grande ABC, Folha de São Paulo
(Seção do Grande ABC), revista Tempo & Presença, site da
Editora Cortez, boletim Linha Direta, revista Teoria & Debate,
revista Ambiente Urbano, site do Prof Assessoria em Educação, site
Cultura Verde, Secretaria de Comunicação de São Bernardo do
Campo, jornal O Imparcial e da revista Brasil-África Magazine.
Autor
de 16 livros e de mais de 600 artigos, textos acadêmicos e pareceres
de consultoria, Waldman é graduado em Sociologia (USP (1982), Mestre
em Antropologia (USP, 1997), Doutor em Geografia (USP, 2006), Pós
Doutor em Geociências (UNICAMP, 2011), Pós Doutor em Relações
Internacionais (USP, 2013) e Pós Doutor em Meio Ambiente
(PNPD-CAPES, 2015).
Waldman colabora atualmente como colunista da Revista ContemporArtes (Santo André, SP) do Instituto Portal Afro (São Paulo, SP) e para a revista Cultura (Luanda, República de Angola).
Mais
Informações:
Plataforma
Lattes-CNPq: http://lattes.cnpq.br/3749636915642474
Portal
do Professor Maurício Waldman: www.mw.pro.br
Biografia
Wikipédia
(English): http://en.wikipedia.org/wiki/Mauricio_Waldman
Blog Pessoal:http://mauriciowaldman.blogspot.com.br/
E-Mail: mw@mw.pro.br
9 comentários:
Excelente artigo. Iniciativa maravilhosa criar este espaço novo. As imagens são verdadeiras mandalas e o patinho, além das interpretações sugeridas, me remeteu à imagem do oroboro, a cobra que engole o próprio rabo, onde a ideia de eterno recomeço está implícita.
4 de dezembro de 2016 às 09:29Parabéns pelo trabalho desenvolvido. Uma produção acadêmica que apresenta a cultura africana como protagonista de forma intercultural, bem tecida, visando visibilizá-la.
4 de dezembro de 2016 às 10:01Conteúdos dessa dimensão precisam ser publicizados em todos os espaços, formais e não-formais, principalmente no espaço da sala de aula, como conteúdo formador inter geracional da Educação Básica ao Superior.
Professor Waldman, essa maneira de abordar uma cultura milenar colocando-a como protagonista sem empáfia é simplesmente fantástico.A mim gera a satisfação da leitura e creio o mesmo ocorra com muitos.Se me permite preserve-se.
5 de dezembro de 2016 às 11:19http://redirect.viglink.com/?format=go&jsonp=vglnk_148095103372411&key=034153a8f6f990b64f375d12e1cc4572&libId=iwc7zx7g01000nv1000DAb8baffg752rj&loc=http%3A%2F%2Fwww.revistacontemporartes.com.br%2F2016%2F12%2Freflexoes-sobre-sabedoria-africana.html&v=1&out=https%3A%2F
5 de dezembro de 2016 às 13:19Prezado Flávio, Boa Tarde.
Muito obrigado pelo seu comentário! As opiniões, todas sem exceção, apoiando ou não o que fazemos, são sempre um sinal de que estamos cumprindo nossa missão. Gostaria de saber, quanto ao seu comentário, o que seria "preserve-se". Fiquei curioso. Uma vez mais grato pela nota ao meu artigo, firmo cordialmente. Prof. M. Waldman
%2Fwww.blogger.com%2Fprofile%2F00662903704718113852&title=Contemporartes%20-%20Revista%20de%20Difus%C3%A3o%20Cultural%20-%20LEPCON%3A%20REFLEX%C3%95ES%20SOBRE%20A%20SABEDORIA%20AFRICANA%3A%20ROMPER%2C%20REVER%20E%20REPENSAR%20EM%20SANKOFA&txt=Fl%C3%A1vio
Creio que ele quiz dizer: continue assim....
5 de dezembro de 2016 às 20:52Sim anônimo. O Flávio me confirmou. Não tinha captado a mensagem! :)
5 de dezembro de 2016 às 21:25Olá Prof., eu fiz algumas reflexões subjetivas lendo o artigo. Símbolos e significados, temática interessante para ser desenvolvida no ensino fundamental. Se eu tivesse alunos certamente tentaria um projeto com eles.
6 de dezembro de 2016 às 07:57Texto perfumado e saboroso. Gracias,
7 de fevereiro de 2017 às 21:55Adorei o texto. Já tive o prazer de ouvi-lo falar sobre o assunto e agora, ler sobre me fez relembrar com saudade de suas palestras e das acaloradas discussões. Sinto falta disso. Admiro a simplicidade com que trata de questões tão polêmicas e de como valoriza o que é quase sempre imperceptível. Parabéns e sucesso sempre!
14 de fevereiro de 2017 às 08:13Postar um comentário
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