domingo, 4 de dezembro de 2016

REFLEXÕES SOBRE A SABEDORIA AFRICANA: ROMPER, REVER E REPENSAR EM SANKOFA


Por inúmeras vezes nas últimas duas décadas, estive à testa de cursos de capacitação em afro-educação. De igual modo, em múltiplos momentos fiz uso da palavra, quando assim exigia o andamento das interações em sala de aula, para explanar sobre o símbolo africano relativo ao pássaro Sankofa, ou “o patinho”, tal como simpaticamente meus alunos a ele se referiam.

A imagem de Sankofa, que figura na abertura deste artigo e adotado, a partir de conversa com minha amiga Izabel Liviski, para ser o logo da Coluna Antropo-Lógicas, traduz muitos ensinamentos que se enraízam na longa e memorável trajetória dos povos e culturas da África, fonte de inspiração para afro-descendentes e todos que estão atentos aos sentidos últimos da vida. Antes, porém, de traduzirmos o que o pássaro Sankofa tem a nos dizer, seguem algumas reflexões sobre a Africanidade.

Neste sentido, questionando o regime de estereotipias imposto ao continente, a África foi inegavelmente o berço da Humanidade, das primeiras criações técnicas e culturais, assim como origem de vários e majestosos empreendimentos civilizatórios, a começar pela civilização egípcia.

Africanidade diz respeito a uma extensa pauta de realizações, numa seriação que se estende de notáveis descobertas tecnológicas à arte, relações sociais à estética, da arquitetura às mais diversas interpretações do sagrado. E naturalmente, a toda sorte de modos de comunicação, dos quais os símbolos Adinkra constituem nota particularmente atrativa.

Justifico a utilização do termo atrativo em razão do alto poder de síntese e de representatividade que conotam as simbologias africanas. O sábio maliano Amadou Hampaté Bâ referiu-se em diversos textos à capacidade do africano em criar imagens e modelos que captam a essência dos fatos da vida, impregnando de pronto a visão e a mente de quem os observa.

Não é por outra razão que muitos expoentes da arte moderna foram seduzidos pelas proposições imagéticas oriundas da África, dentre os quais Pablo Picasso, Henri Matisse, Vincent van Gogh, Paul Gauguin e Amedeo Modigliani. 

É também por este motivo que a África mantém-se no status que reconhecidamente desfruta: de configurar um imenso manancial de manifestações artísticas, que encantam todos os povos do mundo.

Nesta derivação é que podemos comentar o Sankofa e o sistema de símbolos ao qual se integra. E talqualmente a todas as sistematizações simbólicas do continente, o código Adinkra mantém relação íntima com a Africanidade. Ou seja: associa-se a um conjunto de premissas que localizamos num heterogêneo leque de culturas do continente.

O Adinkra é um conjunto de símbolos muito prestigiado na África Ocidental para transmitir mensagens e valores das comunidades. Esta verdadeira jóia da cultura ancestral africana foi, de acordo com a tradição oral, disseminado a partir de guerra travada no início do Século XIX pelo rei Osei Bonsu, dos Ashanti, contra Nana Kofi Adinkra, que reinava em partes dos atuais Gana e Costa do Marfim.

Vitorioso, Osei Bonsu, além de decapitar o soberano inimigo, tomou-lhe as técnicas dos grafismos e das estamparias ornamentadas pelos símbolos que se tornaram conhecidas como Adinkra.

Este sistema simbólico é particularmente difuso na República do Gana, país onde podem ser vistos nas estampas das roupas utilizadas no cotidiano, nas cerâmicas, adereços arquitetônicos, em festividades e outros eventos.

Muitos ganenses também fazem uso do conjunto ideográfico Adinkra em pequenos pingentes e enfeites. A indústria do turismo popularizou o sistema visual Adinkra na forma de souvenirs e camisetas, contribuindo para difundi-lo junto a povos de cultura europeia.

Vendedor ganense.

Por sinal, Adinkra significa “despedida” ou “gesto de adeus” na língua Twi, possuindo sentido mais profundo com “soltura” ou “emanação” do Kra, termo dicionarizado cujo sentido aproximado para a mentalidade ocidental é alma. Assim sendo, um Adinkra é bem mais do que um símbolo gráfico.

Possuindo um design extremamente criativo, este sistema de comunicação gráfica, que de acordo com certo consenso entre os estudiosos é composto por cerca de oitenta símbolos, carrega, portanto, um conteúdo não apenas estético, mas insere, resguarda e transmite aspectos da história, valores, expectativas e normas culturais dos povos desta porção da África Ocidental. Alguns exemplos:


Símbolos Adinkra

Cada símbolo remete a provérbios, ensinamentos e prédicas da sociedade tradicional, sempre com articulação visual de matriz ideogramática, a expressar idéias e noções. Nesta perspectiva, os símbolos podem até serem usados de modo decorativo. Mas nunca estão dissociados da função transmitir recados da sabedoria tradicional, aspectos da vida ou do ambiente social.

Note-se que dentre todos os símbolos Adinkra, o princípio Sankofa possui relevância especial. Mais conhecido a partir da versão do “patinho”, Sankofa reporta a um antigo provérbio da África ocidental: “Se wo were fi na wo sankofa a yenkyi”.  Isto é: “voltar e apanhar de novo aquilo que ficou pra trás”. Dito de outro modo, nunca é tarde para apanhar o que ficou para trás ou mais sinteticamente, aprender com o passado para construir o futuro.

Certo é que a frase faz pleno sentido, pois em si mesma traduz experiências de vida comuns na biografia de todos. Com efeito, o passado é uma herança que não se destaca dos rumos assumidos por pessoas, povos e comunidades. Todavia, mais certo ainda é que quando pensamos este lema apreciando o desenho de Sankofa todos os sentidos e implicações são consideravelmente ampliados.


Imagem Adinkra Sankofa

Observando com mais atenção a imagem do “patinho”, notamos facilmente que o axioma geométrico é o círculo, que somente não é completo em função da lacuna que separa a cabeça do pássaro que olha para trás e o rabo da ave. Ademais, o perímetro da ave apresenta a forma de um ovo, modelado que como veremos não é nada fortuito.

Outra evidência - que não fica explícita de imediato - é que as patas do “patinho” não correspondem às de um palmípede. Qualquer um sabe que patos não possuem garras. Deste modo, a imagem insere várias interpretações, que resumidamente seriam:

1. O patinho olha para o próprio rabo, em vista de que devemos primeiro avaliar no que cada um de nós errou. Não adianta culpabilizar terceiros, exteriorizar responsabilidades. Apenas quando olhamos os próprios desvios é que podemos ter força moral para exigir que os outros também acertem o passo e corrijam seus erros.

2. As patas da ave são garras porque ninguém pode apreciar o que aconteceu pensando no amanhã sem estar firmemente agarrado ao chão. Qual seja: na realidade. Qualquer tentativa de ajuizar o passado e o futuro “sem manter os pés no chão” estará, pois fadada ao fracasso.

3. O círculo tem um lapso por um motivo muito simples: ninguém sai de um círculo vicioso e inaugura um círculo virtuoso sem interromper, desatar, sustar, cortar ou romper com o passado. O passado que não convém é para ser revisto e repensado numa ótica crítica, transformadora das pessoas e da comunidade no seio da qual vive.

4. Por fim, foi dito que o corpo da ave configura uma forma ovalada. Pois bem: nada surge sem rompimento, sem a decisão em vir à luz, de iniciar algo inédito, “sem sair do ovo”, sem emanar o kra. Romper, portanto é nascer novamente e ao mesmo tempo, libertar a essência dantes isolada do mundo.

Eis então o que nos ensina a sabedoria ancestral africana. Não existe futuro sem que rompamos as correntes que nos aprisionam, quando não olhamos para nós mesmos e ignoramos a realidade como eixo da avaliação. Lógica concreta e sagaz. Profunda na sua simplicidade. Simplicidade da sabedoria!


TEXTOS COM TEMÁTICA CORRELATA À DESTE TEXTO:

A Bandeira dos Orixás. Artigo postado em 14 de Setembro de 2016 no Blog Foco de Fato. Acesso:

As Magníficas Bibliotecas do Império do Mali. Artigo postado em 30 de Março de 2016 na Home Page do Instituto Portal Afro. Acesso: http://www.portalafro.com.br/as-magnificas-bibliotecas-do-imperio-do-mali/



TÍTULOS DO MESMO AUTOR EM ÁFRICA & AFRICANIDADES LANÇADOS EM 2016 PELA EDITORA KOTEV. TÍTULOS E LINKS COM MAIS INFORMAÇÃO:

A Memória Viva da Rainha Nzinga: Identidade, Imaginário e Resistência

Águas de Angola: Debate Estratégico e Multilateral

Guerra da Água À Vista?
O Conflito Potencial Entre Angola e África do Sul pelos Recursos Hídricos

O Baobá na Paisagem Africana:
Singularidades de uma conjugação entre natural e artificial

O Fabuloso Reino dos Mansas do Mali

Retratos da Rainha Nzinga: Ginga de Memórias, Ginga de Lutas


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

HAMPATÉ-BÂ, Amadou. África: Um Continente Artístico. In: Revista O Correio da UNESCO, edição de Abril. Rio de Janeiro (RJ): Fundação Getúlio Vargas (FGV). 1976;

LEITE, Fábio. Valores Civilizatórios em Sociedades Negro-Africanas. In Introdução aos Estudos da África Contemporânea. Brasília e São Paulo (DF-SP): Centro de Estudos Africanos da USP (CEA-USP) e Ministério das Relações Exteriores, texto mimeo. 1984;
MUNANGA, Kabengele. África Negra e a Formação da Africanidade. In: Vozes da África, Biblioteca Entrelivros. São Paulo (SP): Editora Duetto. 2007;
_________. Povos e Civilizações Africanos. In Introdução aos Estudos da África Contemporânea. Texto mimeo. Brasília e São Paulo (DF-SP): Centro de Estudos Africanos da USP (CEA-USP) e Ministério das Relações Exteriores. 1984;
Bibliotecas do Mali

NASCIMENTO, Elisa Larkin et SÁ, Luiz Carlos (organizadores). Adinkra: Sabedoria em Símbolos Africanos. Rio de Janeiro (RJ): coedição Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) e Pallas Editora e Distribuidora Ltda. 2009;

WALDMAN, Maurício. As Magníficas Bibliotecas do Império do Mali. Artigo postado em 30 de Março de 2016 na Home Page do Instituto Portal Afro. Acesso: http://www.portalafro.com.br/as-magnificas-bibliotecas-do-imperio-do-mali/


WALDMAN, Maurício et alli. Memória D'África - A Temática Africana em Sala de Aula. São Paulo (SP): Cortez Editora. 2007.





Senac, noite de autógrafos, 2016.
MAURÍCIO WALDMAN
é jornalista, antropólogo, pesquisador, editor, consultor ambiental e professor universitário.  Como ativista, Waldman distinguiu-se em diversas mobilizações, em especial no movimento ambientalista. Waldman atuou como colaborador de Chico Mendes e participou em entidades e organizações como o Comitê de Apoio aos Povos da Floresta, Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo e Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI, São Paulo e                      Rio de Janeiro).


Também participou do movimento sindical e mobilizações em favor dos catadores, atingidos por barragens, em defesa da reciclagem, por energias alternativas e pela preservação dos recursos hídricos.

Waldman foi Coordenador de Meio Ambiente em São Bernardo do Campo, Chefe da Coleta Seletiva de Lixo da capital paulista, Diretor da Escola de Crianças de Rua de São Paulo, da Escola da Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM) e Editor da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB).

Em 2010, a partir de avaliação de pesquisadores dos EUA, Waldman integrou lista de 96 personalidades brasileiras de origem judaica, publicada em Brazilian Jews (Books LLC, USA: Memphis, Tennessee, 2010).

Maurício Waldman já colaborou com a mídia impressa em diversas modalidades. Foi colunista, articulista e/ou colaborador da Agência Ecumênica de Notícias, do jornal Diário do Grande ABC, Folha de São Paulo (Seção do Grande ABC), revista Tempo & Presença, site da Editora Cortez, boletim Linha Direta, revista Teoria & Debate, revista Ambiente Urbano, site do Prof Assessoria em Educação, site Cultura Verde,  Secretaria de Comunicação de São Bernardo do Campo, jornal O Imparcial e da revista Brasil-África Magazine. 

Autor de 16 livros e de mais de 600 artigos, textos acadêmicos e pareceres de consultoria, Waldman é graduado em Sociologia (USP (1982), Mestre em Antropologia (USP, 1997), Doutor em Geografia (USP, 2006), Pós Doutor em Geociências (UNICAMP, 2011), Pós Doutor em Relações Internacionais (USP, 2013) e Pós Doutor em Meio Ambiente (PNPD-CAPES, 2015).

Waldman colabora atualmente como colunista da Revista ContemporArtes (Santo André, SP) do Instituto Portal Afro (São Paulo, SP) e para a revista Cultura (Luanda, República de Angola).


Mais Informações:

Plataforma Lattes-CNPq: http://lattes.cnpq.br/3749636915642474

Portal do Professor Maurício Waldman: www.mw.pro.br 

Biografia Wikipédia (English): http://en.wikipedia.org/wiki/Mauricio_Waldman


E-Mail: mw@mw.pro.br

9 comentários:

Francisco Cezar de Luca Pucci disse...

Excelente artigo. Iniciativa maravilhosa criar este espaço novo. As imagens são verdadeiras mandalas e o patinho, além das interpretações sugeridas, me remeteu à imagem do oroboro, a cobra que engole o próprio rabo, onde a ideia de eterno recomeço está implícita.

4 de dezembro de 2016 às 09:29
Unknown disse...

Parabéns pelo trabalho desenvolvido. Uma produção acadêmica que apresenta a cultura africana como protagonista de forma intercultural, bem tecida, visando visibilizá-la.
Conteúdos dessa dimensão precisam ser publicizados em todos os espaços, formais e não-formais, principalmente no espaço da sala de aula, como conteúdo formador inter geracional da Educação Básica ao Superior.

4 de dezembro de 2016 às 10:01
Flávio disse...

Professor Waldman, essa maneira de abordar uma cultura milenar colocando-a como protagonista sem empáfia é simplesmente fantástico.A mim gera a satisfação da leitura e creio o mesmo ocorra com muitos.Se me permite preserve-se.

5 de dezembro de 2016 às 11:19
Maurício Waldman disse...

http://redirect.viglink.com/?format=go&jsonp=vglnk_148095103372411&key=034153a8f6f990b64f375d12e1cc4572&libId=iwc7zx7g01000nv1000DAb8baffg752rj&loc=http%3A%2F%2Fwww.revistacontemporartes.com.br%2F2016%2F12%2Freflexoes-sobre-sabedoria-africana.html&v=1&out=https%3A%2F

Prezado Flávio, Boa Tarde.
Muito obrigado pelo seu comentário! As opiniões, todas sem exceção, apoiando ou não o que fazemos, são sempre um sinal de que estamos cumprindo nossa missão. Gostaria de saber, quanto ao seu comentário, o que seria "preserve-se". Fiquei curioso. Uma vez mais grato pela nota ao meu artigo, firmo cordialmente. Prof. M. Waldman



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5 de dezembro de 2016 às 13:19
Anônimo disse...

Creio que ele quiz dizer: continue assim....

5 de dezembro de 2016 às 20:52
Maurício Waldman disse...

Sim anônimo. O Flávio me confirmou. Não tinha captado a mensagem! :)

5 de dezembro de 2016 às 21:25
Veluma13 disse...

Olá Prof., eu fiz algumas reflexões subjetivas lendo o artigo. Símbolos e significados, temática interessante para ser desenvolvida no ensino fundamental. Se eu tivesse alunos certamente tentaria um projeto com eles.

6 de dezembro de 2016 às 07:57
Dan disse...

Texto perfumado e saboroso. Gracias,

7 de fevereiro de 2017 às 21:55
Graza Orosco disse...

Adorei o texto. Já tive o prazer de ouvi-lo falar sobre o assunto e agora, ler sobre me fez relembrar com saudade de suas palestras e das acaloradas discussões. Sinto falta disso. Admiro a simplicidade com que trata de questões tão polêmicas e de como valoriza o que é quase sempre imperceptível. Parabéns e sucesso sempre!

14 de fevereiro de 2017 às 08:13

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