Só interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. - Oswald de Andrade
Tarsila do Amaral, Abaporu (1928)
85 X 73 cm, colección Constantini, Buenos Aires
O retrato da estranha criatura com enormes pés fincados na terra e pequena cabeça melancolicamente apoiada em uma das mãos é talvez o mais conhecido trabalho da pintora Tarsila Amaral. Intitulada Abaporu (Aba = homem, poru = que come), a pintura teria levado a uma das mais originais formulações teóricas sobre a questão da dependência cultural no Brasil - a Antropofagia.
A experiência da pintura teria sido capaz de catalisar idéias que se encontravam dispersas - idéias relativas ao desejo de criação de uma arte brasileira própria a partir do contato com as diversas linguagens das vanguardas européias. Proposta utópica de processamento de um modelo europeu junto ao nosso primitivismo, a noção de antropofagia pode ser considerada fundamento de nosso modernismo – que tem seu marco simbólico na Semana de 22 e se manifesta na fase da pintura de Tarsila Amaral conhecida como Pau-Brasil, assim como no Manifesto Pau-Brasil , 1924, de Oswald de Andrade. Em 1928 a relação entre a (sofisticada) cultura européia e a (primitiva) cultura brasileira se destaca a partir da ênfase no primitivismo como arma crítica seletiva, com a imagem do selvagem que devora e assimila apenas o que interessa, destruindo todo o resto.
Na pintura de Tarsila, a devoração do pai totêmico – a cultura européia – para incorporar suas virtudes reforçando o próprio organismo – a cultura brasileira - será evidenciada por uma maior subjetividade adquirida com uma incorporação do Surrealismo, o que se fará sentir pela inclusão da mitologia brasileira. De posse do aprendizado moderno de redução formal e planificação do espaço pictórico, a artista mergulha na "materialidade cultural" brasileira ao criar, com formas arredondadas e cores emblemáticas um alegre universo "selvagem", que se liga ao mundo mágico das lendas indígenas e africanas.
A partir da experiência dessa pintura de tons fortes de amarelo, verde, azul, laranja e roxo, profundamente enraizado na cultura popular brasileira, Oswald é mobilizado a organizar o chamado Clube de Antropofagia, e veicular a Revista de Antropofagia, onde publica o Manifesto Antropófago. O texto fragmentado, repleto de frases de impacto, reelabora o conceito eurocêntrico e negativo de antropofagia como metáfora de um processo crítico de formação da cultura brasileira. Na visão positiva e inovadora de Andrade, exatamente nossa índole canibal permitiria, na esfera da cultura, a deglutição/apropriação crítica das idéias e modelos europeus para produzir algo genuinamente nacional, sem cair na antiga relação modelo/cópia, que dominou uma parcela da arte do período colonial e a arte brasileira acadêmica do século XIX e XX.
O pensamento de Karl Marx, a descoberta do inconsciente pela psicanálise e o estudo Totem e Tabu, de Sigmund Freud, a liberação do elemento primitivo no homem proposta por alguns escritores surrealistas como André Breton, o Manifeste Cannibale escrito por Francis Picabia em 1920,as questões em torno do selvagem discutidas pelos filósofos Jean-Jacques Rousseau e Michel de Montaigne. Inúmeras as influências teóricas identificadas no Manifesto, todas elas se aglutinam sob a rubrica do inédito conceito de antropofagia – que possui, porém, raízes na história brasileira, com Hans Staden (Duas viagens ao Brasil, 1557).
Contra todas as "catequeses", todos os importadores de consciência enlatada, o Padre Vieira, a suposta verdade dos povos missionários, Anchieta ou a corte de D. João VI, Oswald proclama a "realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituição e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama". Pois se é inevitável a assimilação das conquistas da civilização moderna, é preciso que o brasileiro se eleve à cultura "desde que conserve suas qualidades próprias. Assim, o pensamento antropofágico não recusa simplesmente a moderna civilização industrial, sendo capaz de distinguir seus aspectos positivos, eliminar o que não interessa e promover a “revolução Caraíba” e seu novo homem “bárbaro tecnicizado”. Oswald reconta de forma metafórica a história do Brasil a partir da oposição entre eventos históricos e símbolos míticos: Padre Vieira, Anchieta, a corte de D. João VI aparecem junto às figuras mitológicas de Jabuti, Guaraci, Jaci e da Cobra Grande - de algum modo, talvez possamos pensar, sugerindo uma visão historiográfica oposta ao histricismo eurocêntrico
A partir dos anos 1930, junto ao agravamento da situação econômica e social, com a crise do Café, o craque da Bolsa de Nova York em 1929, Getúlio no poder, e posteriormente a eclosão da Segunda Grande Guerra, a questão do "moderno" como tensão entre nacional e internacional toma outros rumos. Oswald então renega o "sarampão antropofágico" – espécie de doença infantil que atingira indiscriminadamente aqueles que não tinham recebido a vacina marxista -, voltando a ele somente em 1945, um ano depois de O caminho percorrido, como oposição crítica ao marxismo e interesse crescente pela filosofia.
A idéia de antropofagia, capaz de inverter a questão do colonizador e do colonizado como procedimento estético só é conscientemente retomada, em meados dos anos 1960, com a montagem da peça
O Rei da Vela, pelo Teatro Oficina, e o movimento tropicalista de 1967-1968. Mais conhecido dentro da música popular brasileira – que possui maior penetração social em nosso país, até hoje - o tropicalismo é batizado a partir do
Penetrável Tropicália de Hélio Oiticica, exposto em 1967 no MAM-Rio, na mostra Nova Objetividade Brasileira, onde são reunidas as mais significativas tendências dos nossos artistas plásticos do período. No texto de apresentação da mostra, Oiticica destaca um “novo estado da arte brasileira”, passível de confronto com as tendências mais atualizadas da arte contemporânea internacional. Logo de saída, Oiticica invoca Oswald de Andrade e o sentido de antropofagia como um elemento importante na tentativa de caracterização nacional. Ele reconhece a noção de Antropofagia como representante de uma “vontade construtiva”, característica nossa, que, partir do Movimento de 22, teria levado “Oswald de Andrade à conclusão do que seria nossa cultura antropofágica, ou seja, redução imediata de todas as influências externas a modelos nacionais. Isso não aconteceria não houvesse, latente na nossa maneira de apreender tais influências, algo de especial, característico nosso, que seria essa vontade construtiva geral”.
E enfatiza nossa especificidade: “somos um povo à procura de uma caracterização cultural, no que nos diferencia do europeu com seu peso cultural milenar e do americano do norte com suas solicitações superprodutivas (...) Aqui, subdesenvolvimento social significa culturalmente a procura de uma caracterização nacional,ou seja, nossa vontade construtiva. Não que isso aconteça necessariamente a povos subdesenvolvidos,mas seria um caso nosso, particular. A antropofagia seria a defesa que possuímos contra tal domínio exterior, e a principal arma criativa,essa vontade construtiva, o que não impediu de todo uma espécie de colonialismo cultural, que de modo objetivo queremos hoje abolir, absorvendo-o definitivamente numa superantropofagia. Por isto e para isto, surge a primeira necessidade da
Nova Objetividade: procurar pelas características nossas, latentes e de certo modo em desenvolvimento, objetivar um estado criador geral, a que se chamaria de vanguarda brasileira numa solidificação cultural (...)”.
Nessa mostra Oiticica apresenta
Tropicália, um ambiente em que se pode penetrar, surgido a partir de suas experiências com o samba, e a arquitetura “orgânica” das favelas cariocas, processadas através nos
Parangolés. Cabe destacar: parangolés e penetráveis de Oiticica constituem trabalhos que rompem com as tradicionais categorias das belas-artes, pintura e escultura, estabelecendo nova relação entre espectador, aliás, agora participador, e obra. Os
Parangolés constituíam espécies de capas que, como tais, deveriam ser vestidas, e posteriormente movimentadas por aqueles que as vestem. Os
Penetráveis , por sua vez, formavam ambientes nos quais, como a palavra indica, se podia penetrar. O artista cria uma espécie de cenário tropical com plantas, araras, areia, pedrinhas (em entrevista de 67 ele declara que parecia “caminhar pelo cenário de Tropicália, estar dobrando pelas 'quebradas' do morro, orgânicas tal como a arquitetura fantástica das favelas (...) ou de estar pisando na terra outra vez”. Oiticica descreve: “Ao entrar no
Penetrável principal, após passar por diversas experiências táctil-sensoriais, abertas ao participador, que cria aí o seu sentido imagético através delas, chega-se ao final do labirinto, escuro, onde um receptor de TV está em permanente funcionamento: é a imagem que devora então o participador, pois é ela mais ativa que o seu criar sensorial. Aliás, este Penetrável deu-me permanente sensação de estar sendo devorado... é a meu ver a obra mais antropofágica da arte brasileira”.
Oiticica, artista e pensador de seu próprio trabalho, reconhece
Tropicália como “uma espécie de campo experimental com as imagens”. E que imagens são essas? As imagens típicas de país tropical. Segundo o crítico Carlos Zílio, “o cálculo implícito desse trabalho seria provocar a explosão do óbvio. Isto é, a ruptura com as tentativas de atualização do realismo da ideologia nacional e popular.” No centro da obra, uma TV, elemento importante na formação do olhar contemporâneo, aparelho que acaba por invadir todo o espaço com seu ruído incessante – exatamente como o faz nas cidades. Imagens tipicamente brasileiras das araras e pedrinhas dos jardins-florestas-tropicais se misturam/contaminam e são contaminadas pela TV que zumbe. Há uma regularidade, uma racionalidade estruturando todos esses elementos – o que é, porém, transpassado por um “riso irônico e contra-aculturativo que desconcerta seu transplante” (Zílio).
Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) e professora do Instituto de Artes da UERJ, escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.