Abertura - Especial Enearte XIV






No início dessa semana, aconteceu em Ouro Preto o décimo quarto Encontro Nacional dos Estudantes de Arte (Enearte) e a Revista ContemporArtes estava lá!
Para que você fique por dentro do que foi esse encontro e do que rolou em Ouro Preto, a equipe ContemporArtes decidiu falar tudinho, tudinho com textos saídos do forno mineiro para você se deliciar e ficar com gostinho de quero mais!

Durante toda a semana, os ContemporArtes que estiveram em Ouro Preto contarão um pouco mais do que foi essa aventura e nós convidamos você leitor com muito carinho para compartilhar nossos momentos!
É com prazer que faço a abertura do Especial Enearte XIV nessa manhã de sábado.

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Uma experiência quase perfeita!
Escolhi a cor roxa para falar de Ouro Preto porque acho sinceramente que o roxo combina com Ouro Preto: roxo, marrom, ouro, preto, são cores que combinam com a cidade mineira. Aliás, várias cores combinam com essa cidadezinha mineira. Acho até que todas as cores combinam com ela, afinal, essa cidade é linda, muito mais do que linda, "very very beautiful... você me deixa d..." ops! Desculpa aí gente, "me empolguei"!.

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.Eu particularmente, como historiadora formada, tinha uma ansiedade muito grande em conhecer Ouro Preto. Lembro da época da graduação que houve várias excursões para conhecer esse marco da história da arte no Brasil, mas devido ao muito trabalho não pude ir e aquilo gerou uma expectativa enorme dentro de mim. Essa expectativa foi cumprida nesse ano e não se frustrou, muito ao contrário: além de ter sido superada, fiquei com vontade de nunca mais sair de lá.

Não é só a arquitetura, as esculturas e os grandes nomes, como Ataíde e Aleijadinho que fazem a cidade magnífica, a diferença cultural que ali se instalou foi o que mais me chamou a atenção. Nunca fui a uma cidade onde pudesse ver pessoas discutindo o naturalismo na calçada, os camelôs falassem espanhol e inglês vendendo pedras preciosas e tanta gente interessante e inteligente dos mais diversos campos de estudo pudesse confraternizar tão livremente cultura.


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Devido à Universidade Federal de Ouro Preto, a cidade contém um altíssimo nível de estudantes, muitas repúblicas (uma parte da nossa galera ficou numa república feminina chamada "Beijinho Doce"), muita bagunça e muita igreja para pagar o pecado! É muito interessante ver uma cidade consideravelmente pequena, que não tem trânsito, mas também não tem ritmo de interior: é super badalada.
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Diferente de São Paulo, lá as pessoas têm grande facilidade de abrir as portas para o outro e de se relacionar. Se você quer sair na night em São Paulo, você liga para os amigos, combina um lugar de encontro e vai. Lá você conhece pessoas que você nunca mais verá, troca telefone falso para não ser encontrado e talvez mantenha uma conversa no orkut e msn. Se você sair na rua sozinho, corre risco de ficar na solidão, ou no máximo, encontrar mais uma relação "fast-food" como na balada.

Já em Ouro Preto, caiu na rede é peixe! Se você pôr o pé na rua e sair andando sozinho, você encontra pessoas, conversas inteligentes e quando vê, fez um amigo. No dia seguinte, se você sair na rua, você provavelmente vai esbarrar com ele, ele vai lembrar de você, vai te chamar para alguma balada cultural e ainda vai te apresentar para outros amigo. Ouro Preto não descansa e tem bagunça para tudo que é gosto: jazz, teatro, dança, capoeira, cinema, música, animação, tudo de bom! E o melhor, é que você não precisa combinar nada com antecedência, como disse: caiu na rede é? Ouro-pretense! .


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O Enearte fez uma escolha que se encaixou perfeitamente na proposta e quando chegamos lá, havia gente de todos os Estados brasileiros: 10, 12, 20 horas e até dias de viagem a galera encarou para ir a esse encontro. Verdadeiros arteiros! Ops, artistas! Lá, a Revista ContemporArtes arrasou: vestimos uma camisa com a imagem da Liz Taylor, pintada por Andy Warhol, fizemos uma imensa bagunça e até uma pequena entrevista demos para a TV de Ouro Preto! Foi demais!
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Para mim, essa foi uma experiência quase perfeita e só não foi perfeita, porque em um determinado momento "o sonho acabou"... Não para Ouro Preto claro! Só para mim que precisei voltar à realidade. Mas o bom de acordar, é que a gente sempre volta a sonhar!


Bem vindos ao Especial Enearte XIV - Ouro Preto!!!





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Yone Ramos é historiadora, teóloga e parte de uma maravilhosa equipe chamada ContemporArtes!



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A REPRISE (Resposta ao Pós-Dramático)


Essa semana compartilho com os leitores dessa coluna, texto importante sobre “O teatro pós-dramático”, de Lehmann, que esteve aqui em salvador na última semana. Boa leitura e próxima coluna faço meus comentários.

A reprise (resposta ao pós-dramático)
Tradução de Humberto Giancristofaro do artigo La reprise
Autor: Jean-Pierre Sarrazac

O artigo aqui traduzido foi publicado como introdução ao livro Études Théâtrales 38-39/2007 – La Réinvention du drame (sous l’influence de la scène).
“Reprise: I. [...] 2º Ação de fazer de novo depois de uma interrupção [...]. 4º (1611, “reparação”) Técnico. Reparação de uma parede, de um pilar [...]. 5º Remendar um tecido para reconstituir sua tecelagem [...] II. 1º O fato de voltar a vida, vigor (planta). O fato de dar um novo impulso após um momento de parada, de crise [...] 2º O fato de recomeçar, de voltar.” (Petit Robert)

A obra de Hans-Thies Lehmann recentemente publicada na França (1) e, mais largamente, a moda do nome “teatro pós-dramático” têm ao menos a vantagem de lembrar-nos da dissociação entre teatro e drama: o drama – entendamos a forma dramática – não está mais necessariamente no fundamento do teatro; há todo um teatro que não consiste mais na encenação de um drama anteriormente escrito, um teatro que às vezes vira as costas para o drama. No século XX, notadamente com Craig e Artaud, o teatro se liberta da literatura dramática; já não se coloca em segundo plano de uma operação na qual a peça escrita será o primeiro plano. Chegou ao fim a relação de subordinação do opsis* com as outras partes constitutivas do poema dramático: nós entramos na era da “representação emancipada” e desta “nova aliança” entre o texto e a cena que Bernard Dort teorizou:

“Definitivamente, o que nós assistimos hoje é a uma emancipação de diferentes fatores da representação teatral. Uma concepção unitária do teatro, seja ela baseada no texto ou na cena, está em vias de apagar-se. Ela deixa progressivamente espaço para a ideia de uma polifonia, e mesmo para uma competição entre as artes irmãs que contribuem para o fazer teatral. [...] É a representação teatral como jogo entre as práticas irredutíveis de um ao outro e, todavia, conjugadas como momento onde eles se confrontam e questionam, como combate mútuo no qual o espectador é, no final das contas, o juiz e o que está em jogo, que a partir de agora deve-se tentar pensar.” (DORT: 1995)

Incompletude do Drama
Para nós que trabalhamos no destino da forma dramática após os anos 1880, quer dizer depois do início do que Peter Szondi identificou como a “crise da forma dramática”: esta autonomia do teatro em relação ao drama e esta exaltação concomitante da teatralidade – no senso barthesiano do “teatro, menos o texto” e do “dado de criação, não de realização” – não significa em caso algum uma perda para o drama, ou ainda mais, a perda do drama. Ao contrário, nós temos razão para acreditar que a forma dramática tem tudo a ganhar com essa dissociação e que, se ela pôde evitar a petrificação e se renovar consideravelmente ao longo do século XX e nesse início do século XXI, foi ampla e paradoxalmente tendo em conta alguns avanços, alguma ambição de um teatro liberto do textocentrismo, do logocentrismo, em breve da tutela da literatura dramática.
Tudo começou com Antoine, Stanislavski e a invenção da encenação moderna… Certamente nós ainda lidamos nesta época com artistas que se apresentam como os servos da arte dramática, mas essa posição não os impede de se afirmarem como coautores do espetáculo. A partir do momento que Zola declara que agora o cenário deve ter no teatro a mesma função que as descrições têm no romance, e quando Antoine não só contribui com Zola considerando que é com a encenação tomada globalmente que esse papel retorna, mas também especifica que o primeiro gesto do diretor deve consistir em criar o ambiente da ação dramática, a causa é clara: a forma dramática mostra sua incompletude; a encenação não é mais uma simples “arte do espetáculo”, mas sim “um dado de criação”. Em termos (anti-) hegelianos, a encenação traz para uma obra dramática fundada na “totalidade do movimento”, esta “totalidade de objetos”, esta dimensão épica, que a torna defeituosa.
Certamente, esta “totalidade de objetos” será naturalmente de forte diferença para Antoine e para Lugné-Poe: ela se fixará, no teatro naturalista, na reconstituição do ambiente, mobiliários e acessórios e, no teatro simbolista, na atmosfera, na influência do cosmos, nos objetos invisíveis… É por isso que nós não podemos compartilhar com o ponto de vista de Hans-Thies Lehmann segundo o qual “mesmo com uma intenção naturalista – onde aparece o meio com seu poder particular sobre o homem – o contexto cênico funciona no teatro dramático, por princípio, só como moldura e pano de fundo do drama humano”. Nós não pensamos, como este brilhante teórico, que a encenação “do teatro da época moderna” não é “geralmente mais que declamação e ilustração do drama escrito”.
Mas a divergência não para por aí, ela é mais amplamente sobre o que faz desse livro uma obra com duplo fundo, com duplo discurso: de um lado – no qual é preciso reconhecer que ela é essencial – uma notável exploração destes teatros geralmente exteriores ao drama que são os de Abou Reza, de Jan Fabre, de Robert Wilson, de Maguy Marin, etc.; de outro lado – e aí que nós nos levantamos contra – as considerações sobre a obsolescência e, por assim dizer, sobre a morte do drama.
Compreenderemos que o que nós temos a intenção de contestar na noção de pós-dramático é justamente que ela se defina historicamente como pós… dramático.

Uma Morte Anunciada
A tentação é grande em considerar que a forma dramática viveu e que ela é de agora em diante obsoleta. O drama seria o ramo morto da árvore do teatro. Na melhor das hipóteses, ele continuaria a produzir alguns frutos anêmicos, desprovidos de qualidades essenciais da arte: a novidade, a atualidade, a contemporaneidade… Existe hoje uma tendência em por em pane a dialética de um presente aberto ao passado e ao futuro e, a ele, preferir uma concepção abusiva da contemporaneidade: erigir esta contemporaneidade como um valor em si, que se substitui pela antiga noção de “vanguarda”. “Autenticamente contemporâneo”, “extremamente contemporâneo” são os rótulos cada vez mais correntes. De sua parte, Lehmann invoca a “verdadeira contemporaneidade”: “a questão seria saber se a estética de certa prática teatral testemunha uma verdadeira contemporaneidade, ou se ela não perseguiria apenas antigos modelos com técnicas bem dominadas”.
É preciso dizer que Lehmann não é o primeiro a decretar a não-contemporaneidade do drama. Nessa via, Adorno o precedeu amplamente, quem nos anos sessenta, decretou que o drama não releva mais que um gesto último: sua própria autópsia, tal como Beckett a praticou no Fim de jogo:

“Os componentes do teatro aparecem após sua própria morte. Exposição, nu, peripécia e catástrofe reaparecem, decompostos, por uma autópsia dramatúrgica: a catástrofe, por exemplo, é substituída pelo anúncio de que não há mais calmantes. Esses componentes sucumbem junto ao sentido que o teatro derramava outrora” (ADORNO: 1984)

Para Adorno, a morte do drama é consubstancial à sua incapacidade – salvo sobre o modo de ironia (oposto ao escárnio), da paródia, enfim da autópsia beckettiana – para dar conta do mundo depois de Auschwitz e Hiroshima: “Toda peça que tentou tratar da era atômica foi seu próprio escárnio, até porque sua fábula tranquilizadora minimizou o horror histórico do anonimato fazendo-o passar pelas personagens e ações humanas…”. Adorno não considera em nenhum momento a possibilidade de que os autores de teatro podem elaborar formas de diálogo e tipos de personagens que expressem este anonimato (no entanto, isto eles fizeram em coro – polifonia do anonimato – cada vez mais presente nas peças). Manter o curso do drama – mesmo neste oximoro, o drama épico brechtiano –, seria, portanto, segundo Adorno, dedicar-se ao infantil (as parábolas brechtianas) ou a “pueril ficção científica”.
Para Adorno, para Lehmann, para certo número de teóricos do teatro, a crise da forma dramática, que se manifesta a partir dos anos 1880 e da qual Peter Szondi se fez teórico, seria – Denis Guénoun a afirma – uma crise terminal:

“Tentemos formular três questões que se põem, entre outras, à escritura dramática hoje. 1. A primeira: escrever depois do fim da crise do drama [...] Ela balançou a forma dramática da escritura teatral com uma brutalidade crescente. Esse processo crítico chegou a seu ponto extremo nos anos cinquenta ou sessenta, com sua maior radicalidade em Beckett [...] Nossa questão seria então: como escrever após Beckett? [...] Após pressupõe que alguma coisa aconteceu e parou. Quais são os campos abertos por essa travessia? Eles são diversos, cada um reconhece o seu. Abolição dos gêneros e cruzamento de artes; constituição de um objeto cênico global, onde o texto é como roteiro, como partitura; dobraduras nos escritos de distâncias interpretativas. Em todos os casos trata-se de uma escritura problemática na sua relação com o de fora, de seu envolvimento com o outro, o corpo, o jogo, a cena, a beneficente babelização das línguas.” (GUÉNOUN: 2005)

A via parece livre então para o pós-dramático. Lehmann enfia-se nesse “após Beckett” um tanto mitológico: não somente ele alia ao pós-dramático, em cima de critérios bastante disparatados, certos autores que nós poderíamos considerar como “dramáticos” – numa concepção realmente alargada do dramático – tais como Handke, Duras, Deutsch, Koltès…, mas também ele anexa o próprio Beckett, que ele afirma “ter evitado a forma dramática”. Em seguida, começamos a suspeitar que o pós-dramático é um cavalo de Troia destinado a destruir – ou a demonstrar o que já está destruído (depois dos anos sessenta) – o dramático:

“O novo texto de teatro [...] é frequentemente um texto de teatro que deixou de ser dramático. A aposentadoria da representação dramática na consciência da nossa sociedade e na dos artistas é, em todo caso, inegável e demonstra que com esse modelo nada mais toca a experiência. Nós constatamos o desaparecimento da impulsão do drama – pouco importa se a razão reside na sua usura, na medida em que ele afeta um modo de agir que nós não reconhecemos em parte alguma ou que ele retrata uma imagem obsoleta dos conflitos sociais e pessoais.”

Mutação do Drama: O Novo Paradigma
Reler a Teoria do drama moderno, elaborar uma crítica da teoria szondiana da crise do drama, de seu hegelo-marxismo, de suas perspectivas teleológicas de ultrapassagem do drama pela épica, tais foram até agora meu esforço e também do “Grupo de pesquisa sobre a Poética do drama moderno e contemporâneo” [1]. Uma das questões que nos colocamos hoje consiste precisamente em pôr em dúvida o modelo “crísico” – quer a crise seja ou não terminal – sustentado por Szondi. O pôr em dúvida não no contexto dos anos 1950 onde ele foi aplicado com sagacidade, mas porque ele realmente não permite mais, hoje, nos anos 2000, dar conta das evoluções das escrituras dramáticas em casamento com o seu devir. Em vez de crise – uma crise só pode ser breve e só pode conduzir a uma resolução, a morte do drama sendo efetivamente uma –, eu preferiria falar de mutação, e mesmo de mutação lenta, e de umamudança de paradigma do drama. De fato, nós constatamos que as questões dramatúrgicas novas, que aparecem por volta do séc. XX em Maeterlinck, Strindberg, Tchekhov…, tais que a fragmentação, e mesmo a hiperfragmentação da fábula, a desconstrução do diálogo e da personagem, estão sempre nas obras atuais dos dramaturgos como Kane, Fosse ou Koltès.
Para dar conta desta mutação, eu propus um modelo sensivelmente diferente da dialética elaborada por Peter Szondi. Em Teoria do drama moderno, Szondi chama “drama absoluto” a forma aristotélico-hegeliana que repousa sobre o tripé “acontecimento interpessoal no presente”. Quanto ao drama da crise, que ela seja submetida (por Ibsen, Tchekhov, Srtindberg pré-Inferno e alguns outros) ou em vias de passagem (graças ao Strindberg do pós-Inferno, a Brecht e a alguns dramaturgos de tendência épica), Szondi não dá nome a eles. Eu procedo ao inverso. Eu dou um nome àquilo que me parece ser, em oposição com o critério aristotélico-hegeliano do “belo animal” que supõe ordem, extensão e completude, o novo paradigma do drama a partir dos anos 1880: eu chamo drama-da-vida. Quanto ao antigo paradigma – o “drama absoluto” de Szondi –, eu proponho de nomeá-lo drama-na-vida.
O drama-na-vida remete a uma forma dramática fundada sobre uma grande reversão do destino – passagem da felicidade à tristeza ou ao contrário –, sobre uma grande colisão dramática, provido de “um início, meio e fim”. Enfim, sobre um desenvolvimento por vezes orgânico e lógico da ação. O drama-da-vida não se limita, àquilo que Sófocles chama de “um dia fatal”, ele arruína as unidades de tempo, de lugar, e mesmo de ação e sua extensão cobre toda uma vida. Para abarcar uma existência inteira, o drama-da-vida recorre à retrospecção – até agora privilégio do épico – e a processos de montagem. De fato, o drama-da-vida marca uma mudança profunda na medida do drama, ou seja, na sua extensão, mas também no seu ritmo interno. O drama-na-vida corresponderia intimamente a um momento da existência dos heróis; a extensão o drama-da-vida é inversamente proporcional à intensidade da existência do homem ordinário. À época de Ibsen, Strindberg, Maeterlinck, Tchekhov, Schopenhauer deu um nome ao drama-da-vida: ele o chamava “tragédia universalmente humana”.
Meu sentimento é que Hans-Thies Lehmann, a partir do momento em que ele taxa de pós-dramáticos certas escrituras dramáticas – de Handke, Koltès, etc. –, passa à margem desse novo paradigma do drama.

O Infradramático
Luckás – a quem devem Adorno, Lehmann, e até certo ponto, Szondi, – não tinha palavras suficientemente duras para denunciar a influência nefasta de Schopenhauer sobre os destinos do drama, particularmente em Strindberg. Para ele, a “tragédia universalmente humana” não faz mais que exprimir “a inanição da vida em geral” e “exprime aqui filosoficamente uma tendência que [...] adquire cada vez mais importância na literatura dramática e conduz cada vez mais seguramente à dissolução da forma dramática, à desintegração dos seus elementos realmente dramáticos.” (LUKÁCS: 1965) Sem aderir a essa ideia de uma “dissolução”, é preciso reconhecer que a dramaticidade do drama-da-vida é fortemente diferente daquela do drama-na-vida (ou, pra retomar uma expressão de Szondi, do “drama absoluto”), que ela se situa principalmente naquilo que podemos chamar o infradramático.
Para falar como Tchekhov, o drama-da-vida parece, ao lado de outros mais salientes, todos estes eventos minúsculos, ao final insignificantes, que fazem uma “vida plana”. No drama-da-vida, nós já vimos maiores reversões do destino: felicidade e tristeza não param de se alternar e às vezes de se confundir. No regime do infradramático, mais heróis, mais personagens muito originais; mais mitos, mas tudo além do fait divers, como já visto em Büchner. A divisa do drama-da-vida poderia se sustentar em uma fórmula de Beckett: “tudo segue seu curso”. Mais progresso dramático, mais enlace e desenlace, mais de grandes catástrofes, mais uma série de pequenas. A dramaturgia entrou nesta era – e nesta ária – do cotidiano que faz Tchekhov dizer que “nada acontece” nessas peças e na qual Lukács, que não se resigna à “tenra banalidade da vida” que os dramaturgos se contentam em expor, lamenta o poder dissolvente:

“O drama moderno no período de declínio geral do realismo segue a linha da menor resistência. Ou seja, ele acomoda seus meios artísticos aos aspectos mais insignificantes de sua matéria, aos momentos mais prosaicos de sua vida cotidiana. Assim a tenra banalidade da vida torna artisticamente o tema que é figurado; ela sublinha precisamente os aspectos do sujeito que são desfavoráveis para o drama. Produzimos peças que do ponto de vista dramático se situam a um nível inferior ao da vida da qual elas participam.”

Mas o infradramático não reside somente na pequenez dos personagens, dos eventos e outros microconflitos; ele tem igualmente parte ligada com a subjetivação e, portanto, com arelativização que marca esses eventos e microconflitos. Em outros termos, é a um teatro íntimo e a conflitos muitas vezes intrasubjetivos e intrapsíquicos que nós nos relacionamos. O fato de que o drama seja demasiado voltado ao subjetivo e ao cotidiano não significa evidentemente que os grandes conflitos históricos desapareceram, mas que estes últimos foram absorvidos por este “anonimato” de que fala Adorno.
O infradramático não substitui o dramático: ele alarga seu espectro, ele desloca o centro do dramático da relação interpessoal sobre o homem sozinho, sobre o homem separado. Seu resultado é que a “ação” dramática será muito menos uma ação “ativa”, que uma ação passiva.
O argumento decisivo daqueles que endossam a ideia da morte do drama, é que drama significa “ação”, hoje em dia já não há praticamente ação no teatro. Joseph Danan relativizou esta crise da ação: “é quando a possibilidade se desvela no final do séc. XIX, é a ‘grande ação’, tal como foi imposto pelo modelo dos trágicos gregos durante milênios: uma ação, inicialmente projetada, se engatilha no começo da peça e encontrará sua realização no final”. (DANAN: 2005)
Ao mesmo tempo, Danan propõe, para o drama contemporâneo, noções de substituição tais como “micro-ação”, “princípio ativo”… Contudo, nós poderíamos conservar o termo ação num sentido expandido. Lembremos que é nesse contexto que o conceito da ação não tem, unilateralmente em Aristóteles, o sentido puro ativo que lhe atribuímos. Na sua introdução àPoética, R. Dupont-Roc e Jeans Lallot escrevem acertadamente:

“A tradução, ainda na falta de uma melhor, de práxis por “ação” não é boa: práxis, em grego, cobre um campo mais largo que “ação” e designa também, para um sujeito humano, o que nós qualificamos por “estado” – felicidade ou tristeza por exemplo; a definição da tragédia como ‘representação da ação’ refere a esse sentido estendido de práxis.” (ARISTÓTELES: 1980)

Sempre teremos interesse, quando tivermos que lidar com a questão da ação na dramaturgia moderna e contemporânea, a nos reportar a uma tal concepção estendida da ação. A que Nietzsche nos engaja vigorosamente:

“Concepção do ‘drama’ como ação./ Esta concepção é em sua raiz muito ingênua: o mundo e o hábito do olho decidem aqui./ Mas o que finalmente – se pensarmos de uma forma mais espiritual, não é ação? O sentimento que se declara, a compreensão de si – não são eles ações?” (NIETZSCHE: 1977)

O que, por sua vez, se encontra implicado é aquilo que Szondi faz do critério da ação no seio do drama absoluto, a saber, a decisão. Nas dramaturgias modernas e contemporâneas, não é o homem ativo que está no centro da ação, mas antes de tudo o homem em sofrimento, um homem em Paixão – esta “Paixão do homem” da qual Mallarmé fez a medida do drama novo. Joseph Danan nos dá as razões dessa reversão da ação de ativa para passiva: “Agir é primeiro querer agir. A crise da ação encontra sem dúvida sua origem na crise do sujeito, nas falhas do eu e de sua capacidade de desejar. Certo número de dramaturgos do final do séc. XIX e do séc. XX, de Tchekhov a Beckett, tem essa capacidade de tornar problemático o próprio tema de suas obras.”
Síncope da ação não significa ausência de ação. Tratamos agora de uma ação descontraída, de um drama desdramatizado.

Colapso e Reprise
Incontestavelmente a forma dramática tornou-se, ao decorrer do séc. XX, cada vez mais difícil de identificar, cada vez mais móvel e difusa. Sobretudo, cada vez mais complexa. Entre o novo paradigma e o antigo, a ruptura se fez sobre a rejeição da dialética hegeliana do dramático como ultrapassagem do lírico (objetivado) e do épico (subjetivado). O que dava movimento ao drama agora considerado como um falso movimento. As novas dramaturgias libertam-se desta dialética e procedem por ajuntamento, pelo jugo de elementos refratários uns aos outros – dramáticos, épicos, líricos, argumentativos, etc. Cada elemento se ajusta ao outro – ou melhor, o transborda – e deste transbordamento provêm o movimento próprio da obra.
Na tradição hegeliana, o dramático não existe em si; ele não é nada além do produto conceitual da dialética da épica e do lírico. O que explica que nós não encontramos nenhuma definição do dramático na obra de Hans-Thies Lehman, salvo esta, talvez um pouco limitada:

“Se o drama moderno se baseia sobre um homem que se constitui nas suas relações interpessoais, o teatro pós-dramático ao contrário implica um homem para quem mesmo os conflitos mais graves, parece-me, não tomam mais a forma do drama [...] Certamente, podemos num momento ou noutro reconhecer uma “expressão dramática” no tal combate de dirigentes, mas percebemos de novo, razoavelmente cedo, que no fundo todo conflito se decide em outro lugar – nos blocos de poder.”

Nesta concepção, que parece resumir o dramático às cenas agonísticas, reconhecemos, através da alusão aos “blocos de poder”, a influência de Adorno e, mais geralmente, uma rejeição não somente da forma dramática, mas do dramático por ele mesmo. Na nossa concepção, o dramático, mesmo difuso, primordial, retorna a este acontecimento específico, primordial: o reencontro catastrófico com o outro – ainda que o outro seja ele mesmo.
As duas concepções são inconciliáveis?… Não parece, pelo menos se nos fiarmos a esses incidentes da obra de Lehmann segundo a qual o teatro pós-dramáico “significa antes de tudo o desenvolvimento e a eclosão de uma potência da desintegração, da desmontagem e da desconstrução do drama”. Por uma tal observação, o autor não está longe de dissolver o próprio conceito de pós-dramático no que Volkner Klotz teorizou como a “forma aberta” do drama que ele define como “livre, ‘atectônica’, tend[ente] rumo à dissolução da estrutura” (KLOTZ: 2005). Não muito longe de estar de acordo com a proposta que eu tenho, após O futuro do drama (com os seus desenvolvimentos sobre o coro e sobre o monólogo, categorias julgadas muito “pós-dramáticas” por Lehmann), a forma “rapsódica” do drama – que concluo ser “a forma mais livre, mas não ausente de forma” (SARRAZAC: 1999).
Tal como nós a consideramos, a forma dramática moderna e contemporânea é o terreno extremamente móvel de mutações e experimentações incessantes. Ao longo do tempo, o romance (notadamente na época naturalista) e a poesia (em particular com o movimento simbolista) exerceram sua influência: “romantização” ou “poetização” do drama. Hoje, as artes exteriores tais como o cinema, o vídeo, a performance, a dança contemporânea penetram em torno do drama e tendem a transformá-lo.
Esta intervenção das artes exteriores participa dessa pulsão rapsódica que trabalha a forma dramática. Pulsão permanente de renovação, de emancipação em relação à norma – o drama-na-vida. Pulsão de irregularidade, que se manifesta de forma mais forte, ou imperativa no período do barroco, das luzes, do Sturm und Drang, na virada do séc. XX e, indiscutivelmente, na época atual. Pulsão rumo ao heterogêneo, rumo à assimilação de elementos díspares que também concernem os grandes modos de expressão como o dramático, o épico, o lírico, o argumentativo e, além disso, a combinação do cômico, do trágico, do patético. Ou ainda a inclusão da oralidade na escritura.
Claramente, estando o campo sempre aberto, a multiplicação das experiências fragiliza o drama-da-vida e disfarça os contornos. Victor Hugo já havia constatado que a cada criação dramática ele deveria repensar a forma dramática – cada peça sendo ao mesmo tempo modelo, protótipo e a obra única. Da forma dramática moderna e contemporânea, podemos dizer que ela está sempre à beira da evanescência, do colapso.
Sempre a ponto de esgotar-se sobre si mesma. Quanto mais incerta de sua própria perpetuação, mais as transformações que ela não cessa de conhecer a tornam difícil de identificar e não coincidente com ela mesma. Mas, ao mesmo tempo, não podemos constatar que a renovação, a vitalidade da forma dramática, tem esse preço. O preço de uma permanentedesterritorialização.
Nossa intenção, na presente obra, situada no signo da “reinvenção do drama”, é de seguir umaentre outras linhas de fuga da forma dramática da virada do séc. XX para o séc. XXI. De abarcar um aspecto ou um momento entre outros desta desterritorialização que apontamos mais acima: quando aquilo que penetra a forma dramática, aquilo que a permite destacar-se do colapso, encontrar uma energia, se recolocar em tensão, sobressair-se, não é nada além do teatro em si. Este teatro diferente do drama, destacado do drama, autônomo em relação ao drama, às vezes hostil ao drama.
Chamaremos este momento de reprise – que é o contrário de uma restauração – onde o drama se reconstitui, se regenera sob a influência de um teatro que se tornou seu próprio Estrangeiro.

Invenção do Teatro, Reinvenção do Drama
Dos anos 1880 aos dias de hoje, o teatro liberto de seu assujeitamento à literatura dramática produziu certo número de invenções que poderíamos qualificar de utopias de teatro. Algumas são famosas, outras são discretas, mas todas tiveram um duplo efeito: por um lado elas permitiram o desenvolvimento de uma arte do teatro e da encenação independentes; por outro lado elas fizeram o objeto de uma reprise através de autores dramáticos ao proveito da sua própria concepção do drama. É sobre este segundo tempo, o tempo da reprise do drama, que decidimos centrar nosso estudo.
Sintoma desse processo de apropriação a posteriori das utopias polidas pelos diretores e teóricos – ou poetas – do teatro, o fato que vários autores dramáticos preferem chamarem-se “autores de teatro” ou “escrivões de teatro”. Como se eles quisessem abordar a escritura pelo viés da cena. Não no objetivo de saturar sua escrita com rubricas e outras prescrições de encenação, mas ao contrário com a ambição de participar da liberação do teatro e de inscrever sua própria escritura neste(s) espaço(s) utópico(s). Isto quer dizer que, em nosso espírito, a reinvenção permanente do drama é profundamente solidária à invenção – ou às invenções – do teatro.
Estabelecer um vai-e-vem entre algumas dessas utopias e as escrituras dramáticas de 1880 e dos dias de hoje, foi esse o objetivo da pesquisa coletiva cujo resultado está aqui presente.
Primeiramente, seguindo um movimento que vai “do teatro ao drama”, uma dezena de sínteses: identificação de uma dessas invenções utópicas, por exemplo, “Supermarionete” craigiana ou o “teatro de andróides” materlinkiano, depois o recenseamento de certo número de peças que, com o passar do tempo foram alimentadas com essa invenção. Serão abordados assim como a utopia – é preciso aqui compreender “utopia concreta”, no sentido de quando o utopista sonha “o castelo na Espanha, ele dá os planos” (Ernest Bloch) –; a utopia da “obra de arte total” de Wagner; a utopia daquele “despejo do vivente” comum, através dos tempos, por Maeterlick e Kantor, como um teatro “fora das palavras” portado por Artaud e revisitado por certo número de autores gestuais e/ou de glossolalias, ou que esta consistindo em Piscator numa “encenação do evento”, reprisado e transformado por Brecht ou, mais tarde, por um Peter Weiss ou um Heinar Kipphardt, ou ainda aquela do “teatro de imagens” de Robert Wilson que vai esbarrar com a escritura de Heiner Muller, etc., etc.
Num segundo momento, nós adotaremos o movimento inverso, “do drama ao teatro” e remontaremos, através de uma dúzia de analises, de uma peça (excepcionalmente de duas) até a utopia (ou utopias) de teatro que puderam fecundá-la (las). Será, por exemplo, a ocasião de identificar em O Caminho de Damasco de Strindberg a presença da utopia de um retorno à teatralidade do mistério, da Paixão medieval cara a Mallarmé e a muitos outros inventores do teatro, de remontar a duas peças de Yeats ao teatro sonhado por Craig, de seguir a evolução de Duras dos Viadutos de Seine-et-Oise a A amante inglesa a fim de daí extrair a influência do teatro segundo Régy, de encontrar em Rodrigo García-dramaturgo o traço de Rodrigo García-performer…
Assim esperamos (ajudar a) melhor compreender, através do processo da reprise – que sucede a “crise” – as (razões de) mutações da forma dramática na virada do séc. XX a este séc. XXI. De resto, temos consciência dos limites de nossa intervenção num domínio complexo e ainda pouco explorado, aquele das relações entre o texto e a cena ou, mais precisamente, entre o teatro e o drama. É aí que estamos contrariamente persuadidos de que não resolveremos o problema invocando uma pretensa morte do drama, ou colando num certo número de obras – que intitulamos muito abertamente de a reprise do drama – uma etiqueta “pós-dramática”, dais quais sabemos todos que ela se descolará em breve. Alguns parecem, a propósito, dedicarem-se a isso, notadamente Thomas Ostermeier, que estima que “a teoria do teatro pós-dramático é hoje em dia ultrapassada, pois os conflitos devêm novamente tão fortes nas sociedades contemporâneas quanto o drama revêm em força na vida, e o teatro deve ser seu eco” (OSTERMEIR: 2006).
Talvez o diretor alemão reenvie aqui o balanço muito longe em direção ao passado – e em direção ao drama-na-vida -; ele tão pouco aponta para a necessidade do drama hoje em dia.

NOTAS:
*[nota do tradutor] Opsis: o que é visível, oferecida para o olhar, portanto, suas conexões com os conceitos de espetáculo e performance. Na Poética de Aristóteles, o espetáculo é um dos seis elementos constitutivos da tragédia, mas está abaixo de outras consideradas mais essenciais… O lugar na história do teatro atribuído posteriormente ao opsis, o que hoje chamaríamos de encenação, determinou o modo de transmissão e do significado global da performance. Opsis é uma característica específica das artes do espetáculo. In PAVIS, Patrice.Dictionnaire du Théâtre. Paris: Editions sociales, 1980.
[1] A revista Études Thèâtrales relatou uma parte dessas pesquisas: Mis-en-crise de la form dramatique 1880-1910 (n. 15-16), L’avenir d’une crise. Écritures dramatiques 1980-2000 (n. 24-25), Dialoguer. Um Nouveau partage des voix, vol. I e II (n. 31-32 e 33).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
- LEHMANN, Hans-Thies, Le Théâtre postdramatique. Paris: L’Arche, 2002. (a edição alemã é de 1999).
- DORT, Bernard, Le Spectateur en dialogue. Paris: P.O.L., 1995.
- ADORNO, Theodor, “Pour comprendre Fin de partie”, in Notes sur la littérature. Paris: Flammarion, 1984.
- GUÉNOUN, Denis, Actions et acteurs: raison dudrame sur scène. Paris: Belin, 2005, coleção “L’extreme contemporain”, pág. 27-31.
- SZONDI, Peter. Théorie du drame moderne. Trad. de Sibylle Muller. Belval: Circe, 2006, coleção “Penser lê théâtre”.
- LUKÁCS, Georges. Le Roman historique. Paris: Payot, 1965. coleção “Bibliotèque historique”.
- DANAN, Joseph, Actions(s), in Jeans-Pierre Sarrazac (dir.), Lexique du drame moderne et contemporain, Beval: Circe/ Poche, 29, 2005 (a edição original foi publicada pelos Éthudes théâtrales em 2001).
- ARISTÓTELES. La Poétique, texto, tradução, notas, de R. Dupont-Roc e J. Lallot. Paris: Seuil, 1980, coleção “Poétique”.
- NIETZSCHE, Friedrich. Fragment posthume [90] in La naissance de la tragédie. Paris: Gallimard, 1977, coleção “Folio essais” 32.
- KLOTZ, Volker, Forme fermée et forma ouvert dans le théâtre européen. Belval: Circe, 2005.
- SARRAZAC, Jean-Pierre. L’Avenir du drama. Balval: Circe/ Poche, 24, 1999 (a edição original é de 1981).
- OSTERMEIR, Thomas. Introduction et entretien par Sylvie Chalaye. Arles: Actes Sud-Papiers, 2006 coleção “Mettre en scène”.


Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.
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Pontos de Vista sobre o Corpo Deserotizado



O presente ensaio fotográfico foi desenvolvido para a conclusão de uma disciplina de fotografia na UFPR sobre o corpo e a fotografia. Para isso, escolhi como tema o trabalho de modelo vivo em uma escola de artes em Curitiba. Para o texto busquei fontes transversais de pesquisa, ou seja, uma bibliografia sobre a imagem, sobre o corpo e sobre a história da profissão de modelo vivo que se entrecruzassem e se complementassem. O texto e as fotos que apresento aqui são um pequeno resumo do trabalho realizado.

A realização desse trabalho era o de instigar a discussão sobre a problemática da representação do corpo humano a partir da interface entre a fotografia e outras formas de representação, que ao fazer isso, adquire um duplo sentido ao pesquisar o uso do corpo como modelo para a criação artística e o ensaio fotográfico propriamente dito.

A prática de posar como modelo vivo para pintores e escultores, iniciou-se ainda na antiga Grécia, sofreu longos períodos de repressão, e retornou à Europa, principalmente na França, país que era o grande difusor da cultura e da arte, a partir de 1648, e se fortaleceu como profissão somente em meados do século XIX.


Independente das explicações históricas, antropológicas e sociais que marcaram a importação de modelos estéticos europeus, percebe-se ainda hoje o predomínio do Academismo e com ele, uma estética fundamentada no idealismo clássico. O europeu nutria pela Grécia, sobretudo no século XVIII, uma admiração similar que o brasileiro sentia pela Europa no século XIX e início do XX, apesar das diferenças históricas e culturais. No Brasil, a importação do Academismo e do idealismo clássico insere-se num fenômeno mais amplo relacionado àquele complexo colonial que convergia para uma necessidade de auto-afirmação.

Ao longo de sua trajetória no século XIX, o curso de modelo vivo adquiriu valores elevados e diferenciados nas principais academias européias. Na academia francesa, o estudo do nu a partir do modelo inteiramente baseado nos princípios da Antiguidade Clássica, mantém uma consolidada doutrina desde a sua implantação até a primeira metade do século XIX. Estes princípios da academia francesa, entre os quais a imitação e estudo das anatomias perfeitas, o aperfeiçoamento do desenho e a recuperação das poses anteriormente provenientes das estátuas, serão repassados às academias européias e adaptados às academias americanas, que seguem por sua vez, o modelo francês de ensino.

                                                                            
Quanto a questão histórica, há passagens pitorescas na literatura, como por exemplo no romance de 1867 publicado pelos irmãos Goncourt (Jules e Edmond), chamado “Manette Salomon”, que relata a vida dos artistas na École des Beaux-arts, dando ênfase à questão do modelo vivo, onde revelam que a vida desses era repleta de maus tratos, humilhações, julgamentos físicos e raciais. Essa profissão, foi tema constante da literatura do século XIX, inclusive de Émile Zola em “L’Oeuvre”. Há passagens em que o modelo vivo sente ciúmes da própria imagem representada na tela, amada pelo artista, “que vê o modelo com indiferença ao lado do resultado final.”

                                                              
Busquei pesquisar os ângulos e olhares que coexistiam na cena fotografada: os olhares dos alunos, que segundo o seu posicionamento na sala determinava o ângulo da modelo a ser copiado: frontal, lateral e posterior, o não- olhar do professor, o olhar neutro da modelo, e o olhar da fotógrafa, privilegiado porque era um olhar atento a tudo que se passava e ainda tinha a vantagem da mobilidade pela sala de aula.


A profissão de modelo vivo permanece até hoje em escolas e academias de arte pelo mundo afora, onde se aprende desenho e pintura. Embora comum e até rotineira, a atividade da (ou do) modelo que se despe a fim de ser desenhado pela turma de alunos, permanece com uma aura de mistério e de pudor, ou seja, o corpo humano desnudo ainda é um dogma que necessita de regras, de convenções, de encenações para ser aceito como “natural”.

Texto e Fotos: Izabel Liviski





Izabel Liviski é Fotógrafa e Mestre em Sociologia pela UFPR. Pesquisadora de História da Arte, Sociologia da Imagem e Antropologia Visual.  Escreve quinzenalmente às 5as feiras na Revista ContemporArtes.

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Transformação Sensível Neblina sobre trilhos



           O objetivo crucial para a idéia do documentário é o de retratar a capacidade do gênero humano que em função de sua atividade prática transforma a sociedade em que vive. O dinamismo das relações sociais devido à ação humana em conjunto determina as mutações ocorridas em todo contexto histórico, mas se torna necessário mostrar também que infelizmente na sociedade atual esta capacidade estrita do ser humano se encontra submissa ao julgo do capital. Por isso, através do cotidiano nos deparamos com uma sociedade em que os valores e tradições são inseridos como perenes os que nos remete a concluir que definitivamente nos relacionamos num mundo estático, em que as mudanças se encontram na jurisdição de algo maior e, principalmente, externo ao conjunto dos homens.

A base fundamental da forma de organização em questão consiste na separação do trabalhador de seus meios de produção, um fator que é determinante para incompreensão da capacidade humana de buscar e, desta maneira, transformar a natureza para sanar as suas necessidades básicas. Numa sociedade em que os objetivos estão voltados intrinsecamente ao acúmulo do capital a capacidade humana se restringe a produzir e reproduzir esta meta, diferente de todas as formas anteriores de organização em que era possível encontrar os meios de subsistência (matéria-prima e instrumentos de trabalho), de forma livre pelo homem visto que o mesmo e capaz de produzir além do necessário para sua sobrevivência e ao mesmo tempo, incapaz de produzir a totalidade de suas necessidades de forma isolada.
No sistema capitalista a troca que anteriormente era realizada como mero intercambio passa a ser a força motriz de toda a relação social e assim o excedente de toda produção humana se amplia apenas e sobre posse dos detentores dos meios de trabalho. O que anteriormente era produzido para usufruto imediato, entendido como valor de uso, através do capital se torna valor de troca e esta passa a ter como objetivo o acúmulo e a ampliação de riqueza. Portanto, podemos afirmar que o sistema capitalista a relação de troca é a base de toda a relação humana e por isso temos acesso a todas as potencialidades humanas apenas através da mesma.

A capacidade do gênero humano se encontra, desta maneira, submissa a lei da oferta e da procura, as propriedades estão livres para compra e a venda e não para o usufruto coletivo de toda a humanidade. Por isso a ação consciente do homem se torna de forma dissimulada fadada a atender aos interesses de poucos em detrimento ao desenvolvimento da capacidade de produção do restante em todos os âmbitos.

Nosso trabalho procura através da história do impacto que ferrovia trouxe ao implantar os caminhos do trilho São Paulo Railway, mostrar que, apesar de deturpado e controlado, a transformação é sensível, e por isso a sociedade sempre produz e reproduz o resultado da ação dos homens em conjunto, e por meio desta produção audiovisual surtir no espectador a retomada do ser humano como sujeito do processo histórico, comprovar que tudo que é feito, desde as coisas mais plausíveis até as mais repugnantes, são frutos da ação humana consciente submissa ao sistema de organização atual.

Neblina sobre trilhos não é somente pelo charme poético do clima no Alto da Serra, mas também por apesar de existir o conhecimento sobre o processo histórico e o homem como sujeito está nebuloso, perdido na égide da efemeridade do cotidiano imediato, no senso comum. Portanto, em um primeiro momento julgamos ser necessário a descoberta do mundo para que se torne possível o entendimento da ação consciente sob os ditos do capital e desta maneira remeter o espectador a entender o momento atual de sua sociedade.
Foi elaborado um vídeo com fotos de nossa autoria e com material de arquivos, para vossa apreciação:




Soraia O. Costa é graduada em Ciênciais Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André (2009). Pesquisadora e documentarista do projeto Neblina sobre Trilhos sobre a memória ferroviária de Paranapiacaba - apoio institucional Centro Universitário Fundação Santo André (CUFSA), Universidade Federal do ABC (UFABC) e Ministério de Cultura e Educação MEC/SEsu. Funcionária superintendente de operações e pesquisas econômicas do Intituto Brasileiro da Economia, Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (IBRE/FGV-SP). Participam dessa coluna o historiador  Demócrito Mangueira Nitão Junior FSA/UFABC e a socióloga Marina Rosmaninho FSA/UFABC.
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A metamorfose de Luiza





Há pouco tempo, me deparei com um texto crítico sobre os poemas de uma autora da poesia portuguesa contemporânea chamada Luiza Neto Jorge. O que prendeu minha atenção, em um primeiro momento, foi a forma distinta do poetar desta mulher, além disso, a maneira como ela retrata o corpo também é extremamente instigante.

Esses fatos, juntamente com o fato de que a obra desta poeta é leitura obrigatória para o processo seletivo de mestrado que prestarei, me levaram a adquirir um livro dela chamado 19 Recantos e Outros Poemas e mais tarde, por vontade própria, Corpo Insurrecto.



A singularidade da poesia de Luiza em um primeiro momento me chocou, depois me encantou. O choque, provavelmente, se deu devido ao hermetismo da linguagem poética desta autora, da grande utilização de metáforas. Ela pertenceu ao grupo de poesia português nomeado Poesia 61, que buscou renovar a linguagem poética, para isso, explorou novas possibilidades linguísticas no interior do discurso e na passagem deste para a escrita. Na obra de Luiza há o que muitos estudiosos chamam de consciência feminina da escrita com a invenção de uma poesia crua, na qual o corpo da linguagem e o corpo do sujeito poético se confundem.


A meu ver, as obras desta poeta são marcadas pelo feminino que desbrava continentes, que ultrapassa as fronteiras do real em busca de revelar-se. Há o olhar feminino sobre o mundo, sobre a vida, sobre a ditadura, sobre a guerra, sobre o cotidiano. Para exemplificar, hoje, apresentarei a vocês um dos poemas que mais me encantam, “Metamorfose”:




METAMORFOSE

Quando a mulher
se transforma cabra
marés anuíram
ao ciclo recente
das águas
ah
as bombas
desceram em paraquedas
antes dos homens

Esta é a revolta
a metamorfose
onde equinócios mecânicos
abortam os filhos

Cabra só cabra
espeta
nas pernas dos pagens
os cornos alucinantes
como para ergueres dos mortos
a necessidade da vida
antes

A mulher se transformou cabra
ritual de emigração
em resposta à raiz
constante das árvores
ao grande silêncio
empastado nas letras
de imprensa

Foi quando a mulher
se fez cabra
no compasso de fúria
contra a batuta
dos chefes de orquestra
que escorrem notas
dos gritos da música

Fez-se cabra
desatenta de origens
cabra com fardo de cio
no peso das tetas
cabra bem cabra
adoçando a fome
na flor dos cardos

(Quando a cabra
volta mulher –
ressureição)

Tantos sentidos podem ser depreendidos destas palavras. Falarei sobre a minha leitura destes versos, que mostram uma mulher em transformação, talvez, não por vontade própria, mas num “compasso de fúria” de revolta contra os “chefes da orquestra”, aqueles que comandam as vidas e o mundo, que fazem guerras, que lançam bombas e soldados em paraquedas, que através de “equinócios mecânicos/ abortam os filhos”, matam os que viveram e os que estavam por conhecer a vida.

A mulher, perante esses acontecimentos, se torna uma cabra, um animal forte, que vive em lugares mais inóspitos, ela tem necessidade de “espetar nas pernas dos pagens”, de descobrir as verdades acobertadas, de lutar por sua vivência e a dos demais, a ponto de se fazer “desatenta de origens” e de, principalmente, apontar todo aquele “grande silêncio/ empastado nas letras/ de imprensa”. Essa mulher transformada em cabra, quando volta a si, volta como em ressurreição, como espírito limpo, claro, como alguém que sabe da sua importância e do bem que possa ter feito aos demais.


Minha leitura se baseia, principalmente, no contexto pós-61 em Portugal, marcado pela guerra com as ex-colônias africanas, que se estendeu até abril de 1974. Luiza escreveu muitos de seus poemas dentro do contexto de guerra colonial e ditadura portuguesa, talvez este fato contribuiu para o hermetismo linguístico, para o excesso de metáforas em seus poemas.

Quem gostou da poesia de Luiza Neto Jorge pode encontrar aqui mais alguns poemas.












Rodrigo C. M. Machado é Graduando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa e, neste momento, pesquisa a representação dos corpos na poesia de António Botto.
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A Graça e a Glória da Poesia.

A poesia da Graça, a poesia da Glória!
por Altair de Oliveira



A nossa matéria de hoje trata, antes de tudo, do fazer poético e está mais para um simples depoimento de autor que para uma resenha ou um ensaio que objetive buscar esclarecer as verdades escondidas sobre (ou seria sob?) a arte de versejar.

Depois de um certo envolvimento com a poesia, na leitura e escrita de livros de poemas, um aspirante a poeta arguto irá aprender que não há poeta despretensioso: quem torna pública a poesia que escreve quer, por alguma graça, encontrar o caminho da glória.

Uma arte só aparentemente fácil e de difícil conceituação, a poesia permite a um cidadão alfabetizado, munido de um lápis e de um pedaço de papel, que escreva algo e o declare como poema. Uma vez feito isto, será muito difícil para alguém posteriormente dissuadi-lo ou contradizê-lo.

Por isso, costumo dizer que a poesia, a arte das palavras, é a mais precária das artes, mas que ela tem que comover. Composta de palavras, signos consentidos como "com sentido" e que signifiquem algo para um grupo dentro de uma determinada língua, a poesia precisa ser entendida. O poeta Mário Quintana, num poema seu, chegou a dizer que, quando um leitor não entende nada do que o autor do poema escreveu, um dos dois é burro. Eu não chegaria a tanto, mas sei que aos leitores o texto poético tem que que ser entendido como poesia na primeira leitura, caso contrário o autor teria que tentar de novo... Mesmo que um autor instista o contrário, um poema desprovido de poesia perde a graça, não há glória nenhuma nisto!



A Cultura e a Indústria de Poetas.


Poetas nascem poetas, dizem alguns, trazem o talento consigo, têm o dom da poesia e o cultivam, são passíveis de conseguir sua evolução dentro do exercício da arte. Compartilham desta teria grandes poetas como, por exemplo, Ferreira Gullar e Manoel de Barros. Pensando assim eu imagino o poeta vindo ao mundo com a sua sementinha de poesia que, sendo devidamente cultivada e num ambiente adequado, um dia o permitiria tornar-se um poeta grande ou, quem sabe, um grande poeta. Estaria aqui o triunfo do talento sobre a técnica.

Outros acreditam que para se tornar poeta é necessário, antes de tudo, que o aspirante a poeta tenha uma formação educacional que lhe proporcione conhecimentos poéticos suficientes que o permitam a escrever poemas. Partidários desta teoria acreditam que o candidato a poeta teria que ter uma formação universitária nas áreas de linguagem, com especializações voltadas à poesia, para que pudesse devidamente escrever poemas. Hoje em dia é bastante comum o sujeito publicar o seu primeiro livro de poemas, altamente recomendado pelos entendidos que o cercam, só depois de fazer um doutorado em literatura ou similar. Aqui prevaleceria a técnica de fazer versos sobre o talento.

Em minha opinião, o ideal seria a somatória das duas opções listadas acima para a formação de um bom poeta. Como isto nem sempre é possível, os candidatos a poeta procuram sempre fazer o que for possível para afirmar-se ou tornar-se poetas. Muitos passam a vida escrevendo poesias e negando que são poetas, como se alimentassem escondido a esperança de que um dia seus possíveis leitores o contradissessem. Outros buscam atalhos para a formação ou afirmação que os graduem como poetas, fazendo cursos de poesia, oficinas de poesia e até mesmo participando de concursos de poesia que os classifiquem, para, a partir daí, exercerem legalmente o exercício da poesia.

Tristemente eu já pude observar que nos poemas de uma antologia que li, cujo livro fora feito com participantes recém-formados de uma oficina de poesia, que os poemas dos autores (eram mais de 2 dezenas deles), embora tratassem de temas diversos, tinham a mesma forma e a mesma entonação, como se o próprio mecânico da oficina os tivesse regulado. Faltou a voz, de cada um destes poetas, nestes poemas que li.

Também tristemente, tenho observado a proliferação de concursos de poesia por editoras do tipo "pagou-passou", cujos classificados, desde que paguem devidamente pelos custos da edição, terão direito a publicação em uma determinada antologia e receberão alguns exemplares do livro a ser gerado. Alimentarão assim a esperanças que seus poemas poderão ser lidos no livro por seus parentes e talvez também em bibliotecas públicas do país ou até do exterior.



Quem é a Glória? Qual é a Graça?


Tornar-se poeta talvez seja a maneira mais fácil de uma pessoa alcançar a glória de sentir-se um artista ou, como dizem os acadêmicos, conseguir a imortalidade. Mas creio mesmo que o barato da poesia é a possibilidade de sermos realmente compreendido, mesmo depois de nossa morte, por um eventual leitor, nas nossas sensações e das nossas impressões pelo espanto da vida, e conseguirmos aí uma certa irmandade que teoricamente nos faria sentir-nos menos sós.

A glória de fazer dinheiro com poesia é menos provável que a de fazer dinheiro acertando a sena acumulada por uma dezena de semanas! A história tem provado que poucos e, por pouco tempo, foram os poetas que conseguiram isto. Depoimentos de grandes poetas em nosso país nos contam que só conseguiriam viver decentemente com a venda de seus livros após os 70 ou 80 anos, época que possivelmente já estavam aposentados. Declarar que sobrevive de poesia quando se vende junto um "algo mais" não tem graça nenhuma.

Ocorre que um poema escrito é um registro, feito normalmente com as nossas melhores intenções de fazer "poesia", algo que tem sinônimo de beleza. E neste registro ficam expostas as nossas impressões, que poderão até ser o testemunho da nossa tolice, da nossa falta de informação, da nossa ingenuidade ou da nossa pobreza espiritual para quem posteriormente nos lê. Neste caso, o conjugado artista, o poeta, passa a ser lido como pateta, como às vezes aparece no dicionário. Isto pode ser até engraçado para quem lê, mas para o autor torna se aí uma coisa inglória e sem graça.

Mas há um tipo de pessoa que necessita de poesia para viver, que tem a poesia como uma espécie de combustível para levar a vida adiante ou até para torná-la mais suportável ou mais bonitinha. São pessoas comuns, evidentemente. Mortais, como eu você. Pessoas que nem precisam escrever poemas para, de vez em quando, se sentirem realmente poetas. São dessas pessoas que a poesia se alimenta para sobreviver e, quem sabe, tornar-se imortal e não o contrario, penso eu!


*************


DOIS POEMAS



ENCANTAMENTO


(dedicado a Francisco Alves)

Canta,
que tua voz
ardente e moça
faz com que eu sinta a meiguice
das palavras que a vida não me disse.
Para te ouvir melhor
abro as janelas
e fico a sós
com tua voz
sonhando
que a noite está cantando
pelos lábios de fogo das estrelas.


Canta,
boca febril que não conheço,
que nunca me falaste e que me dizes tudo!...


Ave estranha
de garras de veludo,
entoa para mim
uma canção sem fim!


Canta,
que ao teu canto vejo
em tudo
quietude atroz
de insatisfeito desejo
Canta,
— em cada ouvido há um beijo
para tua linda voz.


Poema de Gilka Machado, in "Sublimação": poeta carioca (1893-1980)


***


CELEBRAÇÃO DAS MARÉS


- I -

Um risco de veleiros em fuga
sempre foi o teu nome.
Arquipélagos de incandescentes pássaros
os teus olhos. Os frutos do sal,
a íris do sol na filigrana das águas,
os cardumes do outono, clamam em teus pulsos
a presença de um fogo vivo,
cicatriz de um oceano em fúria.


Sempre foi o teu nome as marés.
Em cada palavra do teu ser,
navegam barcos de pólen,
peixes de constelações ardentes.
Em cada silêncio dos teus gestos,
nasce o azul dos cavalos marinhos,
movimento dos remos singrando o mistério.


O teu nome sempre foi os promontórios,
as ilhas desvairadas pelo verão.
Sobre tua nudez repousam
a brancura das velas infladas,
a plena luminosidade do meio-dia.


Em teu destino os corais tramaram
a encantação das estrelas marinhas,
a memória dos búzios.
Essa é a convocação das marés:
fazer do teu rosto o destino das ondas,
a areia desfeita nas orlas.


No teu nome o sono das crianças
apascentou a cólera dos naufrágios.


Poema do mineiro Alexandre Bonafim, poeta, ensaista e professor de literatura, autor de "Bigrafia do Deserto".


***

Para ler mais poemas de Alexandre Bonafim:
http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet188.htm
http://www.biografiadodeserto.blogspot.com/


***

Ilustrações: 1- trabalho do pintor americano Mark Kostabi; 2- foto da estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade em Copacabana; 3- foto da poeta Gilka Machado; 4- foto do poeta Alexandre Bonafim.


Altair de Oliveira (poesia.comentada@gmail.com), poeta, escreve às segundas-feiras no ContemporARTES. Contará com a colaboração de Marilda Confortin (Sul), Rodolpho Saraiva (RJ / Leste) e Patrícia Amaral (SP/Centro Sul).
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