A cidade a a infância - repressão, mutilação ou consequência do real?





Há inegavelmente, como aponta José Pires Laranjeira (2001), uma tendência nas literaturas africanas de Língua Portuguesa de se debruçar sobre o real. Tal realismo espreita através dos indícios de guerra, da miséria, da perturbação moral e mental, da segregação, da fome, enfim, retrata dados presentes no cotidiano de grande parte da população das ex-colônias portuguesas localizadas na África.

Em Angola, a situação não difere da realidade dos demais países africanos que adotaram o português como Língua Oficial. Em meio a essa situação desoladora, a literatura age criticamente, revelando situações e vivências silenciadas até então. Dessa forma, surgiram e surgem escritores cuja escrita possui um forte engajamento social, eles são preocupados com o Outro, com um olhar que não se desvia de quaisquer problemas, ao contrário, os revela.

Em meio aos escritores angolanos, há, inegavelmente, um grande destaque para José Luandino Vieira. Este autor de variadas obras, reconhecido tanto em seu país quanto no exterior, comparado a autores consagrados internacionalmente, como James Joyce e João Guimarães Rosa, empreendeu em terras angolanas uma verdadeira revolução literária em relação aos temas tratados, denunciados, como também em relação à renovação linguística, com utilização de neologismos, com o não seguir as normas da gramática da Língua Portuguesa de Portugal, aproximando a escrita da realidade e das línguas africanas, com a inserção de termos provenientes das línguas africanas na escrita do português, entre outras inovações.

Devemos considerar ainda que a escrita de Luandino Vieira contesta claramente a História dita “Oficial” ao trazer para suas narrativas “estórias” nas quais elementos socialmente vituperados, como as mulheres, os negros, os pobres, têm destaque. Ele constrói narrativas em que os marginalizados revelam suas vidas, suas histórias, seus problemas.

Na obra de Luandino Vieira chamada A cidade e a infância notamos de maneira clara o revelar da vida na cidade enquanto lugar extremamente cruel, repressor inclusive dos sonhos inerentes à infância. A partir da leitura dos contos “Encontro de acaso”, “A fronteira de asfalto”, “A cidade e a infância” e “Bebiana” podemos perceber uma sociedade na qual os homens e a própria vida árdua reprimem sonhos, ilusões, desejos, amizades, na qual muitas vezes a criança é obrigada a fazer-se homem antes da hora, a abandonar a ingenuidade, a inocência.


Os pontos ressaltados anteriormente podem ser observados no conto sobre o qual nos debruçaremos, “Encontro de acaso”. Esta “estória” se inicia por uma fala “- Olá, pá, não pagas nada?!” (VIEIRA, 2007, p. 49) e pela descrição de um encontro inesperado entre dois homens que foram amigos durante a infância. Pela descrição do conto, o leitor percebe rapidamente que estes dois homens, nesta nova fase de vida de cada um, são como verdadeiros estranhos. Este mesmo leitor pode se perguntar de início: O que os separa? O que fez com que duas crianças que mantinham uma amizade pura, verdadeira se afastassem?

Parece-nos que a distância entre eles é causa não de um desentendimento qualquer, mas da realidade, da vida, dos caminhos que os levaram a destinos diferentes. Enquanto crianças que possuem um sentimento mais ingênuo, não havia nenhuma barreira real que os apartasse. Pelo contrário, a vida de sonhos e travessuras de ambos caminhava junta. De forma que, o narrador-personagem do conto descreve as aventuras que tiveram juntos na infância:

"Sempre fui amigo dele. Desde pequeno que era o chefe do bando. As pernas tortas, as feições duras, impusera-se pela força. Da sua pontaria com a fisga nasceu o respeito. Nós gostávamos dele porque tinha imaginação. Inventava as aventuras na água suja que se acumulava na floresta. Foi inventor das jangadas que nos levariam à conquista do reduto dos Bandidos do Kinaxixi." (VEIRA, 2007, p. 49)

Ambos, conquistaram juntos outras terras, criaram refúgios, “A Grande Floresta”, onde reinava a cumplicidade. Entre os dois não existia diferença de cor: “Ele mandou despir a todos e meter na água, em direção ao clube e matar os bandidos. E os nossos corpos escuros, de brancos que brincavam todo o dia nas areias vermelhas, (...), metiam-se na água vermelha e avançavam para o Kinaxixi” (VIEIRA, 2007, p. 50).


Entretanto, a cidade, a realidade modificou aqueles que, um dia, foram amigos de infância, “Mas tudo se modificou e só a ferida feita pela memória persiste ainda” (VIEIRA, 2007, p. 50). As duas realidades que se desenrolaram para cada um deles foram muito distintas, o narrador-personagem, homem branco, teve mais oportunidades de crescimento econômico, de estudos, de uma vida com mais conforto. Isso é realçado pelo fato de ele próprio se descrever da seguinte maneira: “Reconhecer-me-ia ele por trás do meu disfarce de fazenda e nylon, de uma barba escanhoada, dos meus sapatos engraxados?” (VIERA, 2007, p. 51).

Em contraposição à auto-descrição de si feita pelo narrador-personagem, há a descrição que ele faz em relação ao homem negro que fora seu amigo:

"A vida fez dele um farrapo. As companhias que a vida lhe trouxe modificaram-no. O seu espírito de aventura compatibilizou-se com a rufiagem. E quando o via nas ruas, ao sal, as pernas cada vez mais arqueadas, a voz rouca, a pronúncia de negro, dirigindo os pretos na colocação de tubos para a conduta da água, ficava a olhar para ele". (VIEIRA, 2007, p. 51).

O termo utilizado pelo narrador para referir-se ao ex-amigo é “farrapo da vida” que traduz minimamente o que ele possa ter se tornado, como um homem que vive em meio à miséria, que se tornou alguém que compatibilizou seu espírito aventureiro com o rufiar, brigar, enfim, com a violência.

Este conto é apenas um dentre aqueles que compõem A cidade e a infância e que revelam a realidade cruel vivida por muitos homens. Todos os contos, de certa forma, chocam o leitor e o levam a refletir sobre a vida, sobre a vivência em meio à Guerra, a conflitos e a maneira que tais acontecimentos podem atingir a infância, que é um período que acreditamos nunca se desvencilhar da fantasia. Porém, as fantasias de muitas crianças foram transformadas em medo e em necessidade de lutar pela sobrevivência.

Aconselho a todos os leitores a buscar conhecimento em relação aos contos de Luandino, pois além das observações que podem ser feitas em relação a uma linguagem nova, os temas revelados tocarão aquele leitor atento e sensível e lhe revelará a vivência humana dotada de privações.







Rodrigo C. M. Machado é Graduando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa e, neste momento, pesquisa a representação dos corpos na poesia de António Botto.
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DRAMATURGIAS E TEXTUALIDADES


Durante a ABRACE em São Paulo, entre os dias 08 e 12 de novembro, pensei um pouco sobre dramaturgia contemporânea, sobre minhas impressões (imprecisões).
A primeira impressão é a percepção da dilatação do entendimento de dramaturgia como a marca indelével da palavra.

A segunda impressão, também comum, desdobramento da primeira é o reconhecimento de que, na contemporaneidade, no fluxo das revoluções e quebras de paradigmas, surgem novas “tecituras dramáticas”. A dramaturgia outrora detentora de um poder absoluto, desloca seu referencial, sua concepção, bem como sua singularidade.

Aqui, dois pilares sustentam meus interesses:
Um deles, a partir da Teoria queer, da Teoria da Performatividade de Judith Butler, pretende-se extrair de um conjunto de textos da dramaturgia nacional e estrangeira aspectos que poderiam ser traduzidos em cena como uma estética queer.
Essa estética aponta para um corpo queer, sugere elementos de superação de um corpo dócil mapeado, cartografado, previsível, saturado, instigado: a criação de um devir corpo, muito mais interessado no transito, na passagem, na instabilidade, na viagem em direção a um corpo sem órgãos, desmapeado, (des)identitário.
Esse primeiro pilar utiliza-se da performatividade da escrita como dispositivo performativo da cena.

O segundo pilar tensiona o deslocamento do conflito central (da ficção dramática) em direção a um conflito estrutural, para os modos de representação, do intra para o extra-ficcional.
Assim, a partir da dramaturgia textual promover-se-á o deslocamento do conflito do centro dramático (a relação com os personagens) para as diferentes camadas semióticas, em outras palavras, os modos de representação teatral colaborariam para aumentar as possibilidades de interação entre atores, espaço e espectadores.

Essas tais textualidades – numa proposital aliteração – problematiza as fronteiras do discurso das dramaturgias, que agora atravessam os territórios, transbordam, cruzam as diversas artes da cena, quais sejam, o teatro, a performance, o circo, a dança contemporânea, a bodyart ou os happenings, provocando operações de afetamentos e contaminações.




Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.
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FOTOGRAFIA E CIÊNCIA: AFINIDADES ELETIVAS



A fotografia e a sociologia surgiram quase ao mesmo tempo, a sociologia com o "Discours sur l'esprit positif" de Augusto Comte em 1844 e a fotografia em 1839 com a exposição pública de Daguerre sobre o modo de fixar uma imgem numa placa metálica. Afora isso, ambas seguiram percursos distintos: a fotografia procurou seu reconhecimento no campo da arte, já que a maioria dos primeiros fotógrafos eram pintores que não conseguiram triunfar nos salões e que viram na fotografia um meio alternativo de consagração artística. A sociologia trilhou caminhos que a levaram à sua institucionalização como ciência positiva, preocupada com a elaboração de grandes teorias, apoiando-se em técnicas e metodologias semelhantes às das ciências naturais, no período em que a obra de Durkheim foi paradigmática.

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Foto: Izabel Liviski

Embora tanto tempo tenha passado e novas tecnologias tenham sido incorporadas, o estatuto artístico da fotografia ainda continua sendo objeto de discussões. Desde o seu início, a fotografia foi negada enquato arte legítima, mesmo pelos pintores realistas. Por um lado ela foi, inicialmente compadarada ao empiriscismo, com a observação racional e com a "reprodução direta do natural". Por outro lado, a partir do momento em que se simplificaram os procedimentos que permitiram a qualquer pessoa fazer fotografias, a "aura" que envolvia a fotografia e que lhe conferia um caráter elitizado, desapareceu.
Inicialmente como meio de auto-representação e substituindo a pintura de retratos, a fotografia foi se tornando uma indústria onipotente e tentacular, em grande parte devido à capacidade de expansão de algumas empresas como a Kodak, que colocaram no mercado todos os produtos necessários à prática fotográfica, a preços acessíveis a uma larga camada da população.

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Foto: Izabel Liviski 


A fotografia converteu-se rapidamente em um instrumento para manipular necessidades, vender mercadorias e modelar pensamentos. Através de seu uso nas campanhas publicitárias, a fotografia constituiu uma ferramenta fundamental de apoio ao processo de expansão das economias modernas. A sua capacidade de reprodutividade permitiu também democratizar a obra de arte, tornando-a acessível a praticamente todas as faixas sociais. A imagem é de fácil compreensão, e tem a particularidade em apelar às emoções e assim na sua imediatez reside sua força mas também o seu perigo.
Contudo, a fotografia serviu de ferramenta de análise social para muitos dos primeiros fotógrafos que construiram sua história. Uma boa parte deles dedicou-se à exploração de temas caros à Sociologia através de fotos. Exemplos disso, são Lee Frielander e Gary Winogrand que fotografaram comportamentos no espaço público, abordando algumas das gandes questões da sociologia tratados nas obras de Georg Simmel e de Erving Goffman.


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Foto: Izabel Liviski 


A foto-reportagem ou foto-ensaio, surgida em 1920, gênero no qual foram precursores Eisenstaedt e Erich Salomon, confirmou a fotografia como instrumento de análise social. A fotografia mostrou imagens de sociedades longínquas, imagens que despertavam desejos e alargavam horizontes, mas trouxe também outras questões menos desejáveis. Robert Capa, conhecido fotógrafo da agência Magnum, foi um dos primeiros a fotografar a guerra, e portanto foi através de suas fotografias que algumas sociedades viram à distância imagens da guerra. Capa percebeu que a guerra é muito mais do que as batalhas; grande parte das suas melhores imagens retrata as periferias dos eventos históricos: as relações e as sociabilidades que se tecem em volta dos cenários de guerra.
Fotógrafos como Dorothea Lange, Margaret Bourke-White, Russel Lee, Walker Evans foram financiados pela FSA (Farm Security Administration), um organismo estatal norte-americano para capturarem imagens dos problemas sociais da sociedade norte-americana, principalmente nas questões rurais.


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Foto: Izabel Liviski 


O fotógrafo suico Robert Frank, com um projeto de conhecimento da sociedade norte-americana através de suas lentes ("The Americans") entre 1955 e 1956, retratou suas mais profundas contradições: as discriminações raciais, as desigualdades sócio-econômicas etc. o que foi muito mal recebido pelos americanos, pois dava a conhecer realidades sociais incômodas. Robert Frank refletiu em seu trabalho as influências das teorias de Tocqueville, Margaret Mead e Ruth Benedict.
Mais recentemente, Henri Cartier-Bresson destaca-se como um dos mais notáveis fotógrafos sociais. Ao "congelar" o instante decisivo em cada foto que fazia, retratou comunidades na Índia, as convulsões políticas comunistas na Rússia e na China, assim como ritos e cerimônias sociais, como as danças de Bali.


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Foto: Izabel Liviski 


No entanto, a Sociologia despertou tardiamente para a imagem, os sociólogos clássicos confiaram demasiado na palavra. A Antropologia usou mais precocemente os meios audiovisuais nas suas pesquisas de campo. Contudo, a fotografia e o cinema etnográfico e documental foram usados como técnicas complementares, para comparar, ordenar o registro cultural, completar as notas de campo e ilustrar o texto verbal. Alguns sociólogos dedicaram-se a investigações que envolviam a fotografia, analisando os seus usos sociais, assim como usando a câmera como ferramenta de análise social.
Pierre Bourdieu foi um dos sociólogos que interessou-se pela análise dos usos sociais da fotografia, notando que esta cumpre "funções sociais específicas", ao "solenizar" e "eternizar" determinados acontecimentos de relevo social: cerimônias e ritos sociais com os nascimentos, os casamentos, primeira comunhão etc., a fotografia como um instrumento para guardar memórias.
Mas este não é um assunto que se esgota tão facilmente, voltaremos a ele em outras ocasiões, mostrando as afinidades, controvérsias, colaboração e polêmicas entre fotografia e ciência, mais especificamente entre fotografia e sociologia.

Fonte: Ferro, Ligia- Ao encontro da sociologia visual



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Izabel Liviski é Fotógrafa e Mestre em Sociologia pela UFPR. Pesquisadora de História da Arte, Sociologia da Imagem e Antropologia Visual.  Escreve quinzenalmente às 5as feiras na Revista ContemporArtes.
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O testemunho como fotográfia - Militão em Paranapiacaba

A fotografia está em todos os lugares e já não é exclusividade da propaganda comercial, nem dos catálogos de produtos, menos dos amantes casuais. Hoje temos fotografias em nossos celulares, em sites de relacionamento, blogs, etc. Postamos viagens, festas, passeios ou qualquer coisa, com ou sem a figuração de pessoas para os enquadramentos.

Sem título #1 - Demócrito Nitão, 2010
Sempre quando estou em Paranapiacaba, pesquisando para o video-documentário Neblina Sobre Trilhos, procuro fazer muitas fotos, em permanente procura de novo enfoque, tanto da paisagem urbana excepcional, quanto da interação humana e animal neste cenário. Inevitável, contudo, não se projetar para os idos de quem viveu no seu momento de intensa atividade, ligada à ferrovia, há pelo menos 100 anos. Tempo em que paranapiacaba fora uma Vila Operária, criada para abrigar os trabalhadores da ferrovia inglesa SPR - San Paulo (Brazilian) Railway, responsáveis pela manutenção do sistema de tração denominado funicular.
Primeiro Acampamento - Militão Augusto de Azevedo, c. 1865
Divagações à parte, esta reflexão certamente remete à construção dos trilhos na Serra, cuja altura é de quase 800m. Para além da imposição do trabalho, é provável que havia um forte espírito de conquista aos que se embrenhavam na densa vegetação da Mata Atlântica, nos idos do século XIX, quando não havia guias turísticos ou antídotos à mão. O incentivo suscitado pela viabilidade econômica, aliada à coragem e determinação daqueles homens, proporcionou uma das maiores obras da arte e engenharia construída no Brasil de então.
Durante esta empreitada, destaca-se um homem cujo legado nos permite conhecer um pouco sobre esta "aventura". Seu nome é Militão Augusto de Azevedo (1837 - 1905), fotógrafo carioca que retratou São Paulo em sua formação urbana e as obras da companhia ferroviária inglesa. Mais do que mera curiosidade, ele foi um "artesão" que aperfeiçoou a sua técnica como profissional da fotografia. Militão foi ator, porém largou este ofício para se dedicar à outra arte, como que vislumbrando um palco melhor para suas grandes atuações.
Realizou muitas fotografias: retratos e vistas, além de ter produzido alguns álbuns, com destaque para o Álbum comparativo de vistas de São Paulo (1862 -1867), comparando as mudanças da cidade registradas em fotografias produzidas em épocas distintas.
Mais do que a justificada contemplação, promovida pelo encantamento provocado pelo colosso da engenharia ferroviária e as novas percepções causadas pela nova velocidade do transporte ferroviário, Militão foi contratado para produzir um relatório fotográfico - dossiê - a pedido dos engenheiros da Companhia inglesa, após um grave acidente ocorrido nos trilhos em 1865.
Viaduto da Grota Funda - Militão Augusto de Azevedo, 1867
Como não é de hoje, a arte sempre presta seus serviços à ciência e a tecnologia. O trabalho de Militão se transformou em referência obrigatória para o estudo iconográfico de São Paulo, a partir da segunda metade do século XIX. O poder transformador desta arte está materializada em rico testemunho da memória urbana de São Paulo. Preservar para reviver. Talvez todo amante da fotografia tenha um quê de agente preservacionista responsável pela perenidade das coisas, bichos e pessoas.


Sem título #2, Demócrito Nitão, 2010


Demócrito Nitão é Historiador, apaixonado por artes visuais, fotografia, música, cinema, futebol, e ainda pedala quando lhe folga agum tempinho. Participam desta coluna as sociólogas Soraia O. Costa e Marina Rosmaninho.












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Confissões, que não de Agostinho!



Confissões: nem de Agostinho, nem de Lúcio! Não, na verdade o título desse artigo não tem a ver com Agostinho, embora de forte impacto na minha formação, as confissões que seguem são confissões inteiramente minhas, sobre mim e sobre "O outro" (literalmente). Colegas acadêmicos e pessoas próximas, já acostumados com meu estilo lingüístico, provavelmente devem reconhecer em meus textos a minha estranheza e entranheza em relação a tudo que me é externo, isso diz respeito a minha visão de mundo e minha visão do outro.


Conviver não é meu forte, aliás, forte é meu gênio, muitas vezes chamado de "indomável". E eu confesso que é! Durante a graduação lembro das minhas profundas discussões com Durkheim, Marx, Nietzsche, Lacan, Freud e também Jung... todos aqueles (lê-se 99,9 % dos filósofos, sociólogos e teólogos que lia) que não podiam responder minhas perguntas sobre o ser humano e o mundo - dúvidas estranhas! - As brigas acadêmicas com professores foram muitas e de muitas não ganhei troféu. O fato é que, essas dúvidas são anteriores à vida acadêmica, na verdade, se há uma relação de causalidade, diria ser exatamente o contrário: porque a força motriz para minha decisão sobre a graduação foi exatamente o desconhecimento do outro e do mundo, marcas constantes de meus pensamentos, textos e poesias.


Estava no último ano, preparando um dos meus textos favoritos: o meu trabalho de conclusão de curso! Nunca em minha vida tinha lido tanto, com tanta sede, tanta lágrima (pela crueldade da guerra, do poder e da tortura), tanta fúria de conhecer. Gostava de Vargas, queria tanto falar dele, mas por obra do destino, escolheram o tema em meu lugar e fui impelida a escrever sobre o Regime Militar. Mas para entender o Regime Militar, a Guerra Fria, divaguei sobre as mais diversas leituras e literaturas que eu nunca imaginei um dia ler. Sobre filosofia, tortura, amor, dinheiro, sociedade, cultura... tantas coisas! E eu li frenéticamente até finalizar o trabalho e isso foi bom. Nesse período conheci um outro como eu: Mário de Sá Carneiro.


Talvez eu tivesse realmente o conhecido durante o colegial, mas ele passou despercebido nas tantas literaturas pré-vestibulares. E enquanto estudava aquele século que tanto menciono ( o de sempre, o XX), ouvi uma música da Adriana Calcanhoto: "Remix do Século XX". Música perfeita para fazer prova de história contemporânea! Eu ouvia e ouvia, e ouvia, porque ela traduzia em grupos de palavras, todo o livro de Hobsbawm - meu 'queridinho' - em pouquíssimas palavras. Mas, foi no fim da música que ela introduziu meu mundo ao mundo de Sá Carneiro, ou vice-versa. Quando ela mencionou o fato de Sá Carneiro ter se suicidado aos 27 anos, fiquei intrigada com sua personalidade e quando ouvi a música baseada em seu poema "O Outro", escrito no ano do início da 1ª Guerra Mundial, não tinha mais como ignorá-lo.

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Naquele dia, pesquisei muito sobre ele, questionando o que pode fazer com que um homem acabe com a própria vida, tão jovem?! E lendo sua poesia eu entendi que a angustia de Sá Carneiro em não entender o outro não era diferente da minha, talvez de Drummond, de Neruda, Lispector, Sartre, Arendt, Dostoievski ou Stendhal. Talvez não como ele, ou como eu, mas de fato, acho que 'todos mundos' têm suas dúvidas, porque é impossível penetrar totalmente o mundo alheio: a psiquê humana, um mundo particular. Yann Tiersen com sua Valsa dos Monstros, e o mais clássico e sombrio como Beethoven, ou talvez a complexa mente de Picasso, sempre resultado do eu, do outro: do outro que somos de nós mesmos, tomando emprestado o profundo significado da poesia de Sá:


"Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio

Que vai de mim para o Outro."


Seguindo a intenção, escrevera seu grande influente, Fernando Pessoa:


"Como é por dentro outra pessoa

Quem é que o saberá sonhar?

A alma de outrem é outro universo

Com que não há comunicação possível,

Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma

Senão da nossa;

As dos outros são olhares,

São gestos, são palavras,

Com a suposição de qualquer semelhança

No fundo."


E de todas as agruras que carrego, a tudo que diz respeito ao outro, e a tudo que me diz respeito como outro, identifico-me ao todo com as palavras mencionadas acima, com a personalidade daquela mente brilhante e inquieta e de tudo que se lhe refere, exceto à vida, que ainda se me apresenta, de todas, a maior dúvida: a qual vivenciarei para poder desvendá-la..

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Yone Ramos é Historiadora, Teóloga, graduanda em Administração e colunista da Revista Contemporartes.

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CASADINHOS, INCLUSIVE COM A LITERATURA



Ela, Tatiana Alves Soares Caldas. Ele, André Luiz Alves Caldas Amóra. Ela, Professora Doutora. Ele, Professor Mestre. Ambos, pesquisadores da área de Letras. Um casamento tão perfeito que também inclui em seu dia a dia o convívio, a aliança visceral com a literatura.

Recentemente, fundaram a EDITORA CELACANTO, no Rio de Janeiro, selando mais um objetivo em comum: disseminar trabalhos de qualidade em prosa ou poesia, além de estudos críticos nas áreas humanas.

Deliciem-se um pouco com o uni.verso criado por essa invejável união de dois grandes e premiados contemporâneos da poesia.


Tatiana Alves Soares Caldas:
Poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido mais de duzentos prêmios. É colaboradora da Coluna Momento Lítero-Cultural, dos sites Cronópios, Anjos de Prata, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ e possui três livros publicados. É Doutora em Literatura e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ, além de atuar como editora-colaboradora na Editora Celacanto.

HARPOESIA

Minha língua viva e sedenta
Saliva
Maldita
E roça em profanas palavras

Minhas mãos suadas e errantes
Tateiam
Malditas
E tocam profanas palavras

Por entre línguas e mãos
Toma forma a poesia
Sádica
Lúdica
Lúbrica

No prazer do trava-língua
No ardor de uma mão-boba
A poesia se toca
Harpoesia
CERTAS NOITES DE ABANDONO

Certas noites de abandono
Daquelas que roubam o sono
Aquelas que têm lua linda
Noites em que a mágoa não finda

Certas noites de abandono
Verões com cara de outono
Serões com cara de ainda
Em que aguardo tua vinda

Certas noites de abandono
Pedem colo, querem dono
Mas tua voz me melindra
E a taça já não brinda

Certas noites de abandono
Convertem-se então em motim
E eu, triste, assisto ao fim
Desse rei que ora destrono



André Luiz Alves Caldas Amóra:
Mestre e Doutorando em Literatura Portuguesa pela PUC-Rio, professor universitário, professor da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro, pesquisador e ator profissional. Poeta filiado à APPERJ, já foi agraciado em diversos concursos literários. Editor-chefe da Editora Celacanto.

SER POETA II

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Florbela Espanca

Sonho que meu parco verso
Transforme a Dor na Alegria...
Que junte o que está disperso,
Que acabe com a Agonia.

Sonho com o grito pleno,
Que ilumine um coração,
Que neutralize o veneno,
Que me eleve à vastidão.

Quero ser o poeta alto!
Ter as asas de condor!
Sei, porém, que sou incauto...
Nem, ao menos, fingidor...

Sonho, Poetisa, contigo!
E vislumbro a plenitude,
Mas vivo com o Castigo
De me perder amiúde.
HYBRIS

A bela sinfonia do poeta heroico
Canta agora a medida já ultrapassada,
Mas cobram a profecia do profeta estoico,
As que fiam e cortam a vida sorteada.

As Parcas desumanas brindam em sua festa
À maldita amargura de um amor imposto.
Comemoram vitória, desprezando a questa
Do solitário herói de pesado desgosto.

O Destino mesquinho a maldição lançou,
Silenciou o mito, arrancou-lhe as entranhas
E aos Vorazes abutres seu corpo entregou.

Ninguém, porém, contava co’as novas façanhas:
E da morte regressa o indigente amante,
Reescrevendo a história co’a amada bacante.




À Tatiana e ao André, muito sucesso na nova empreitada literária. E que a poesia, como o pão nosso de cada dia, esteja sempre presente em suas vidas.


Geraldo Trombin é publicitário e membro do Espaço Literário Nelly Rocha Galassi, de Americana - SP (desde 2004), lançou em 1981 o seu livro “Transparecer a Escuridão”, produção independente de poesias e crônicas. Com mais de 160 classificações conquistadas em inúmeros concursos realizados em várias partes do país, tem trabalhos editados em mais de 60 publicações.
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GLOBALIZAÇÃO, DEMASIADA GLOBALIZAÇÃO


Por Leonardo Rodrigues de Oliveira.

As aparências não estão nos enganando, nos deparamos todos os dias com uma sociedade que sustenta em seu bojo a desigualdade. Espaços repartidos pela instabilidade política e cultural que se equilibra sobre uma navalha afiada, que não responde ao perigo dessa brincadeira, e cada vez mais se conectam a esse sistema mundo.


O que podemos dizer da globalização, esse termo tão forte, costumeiramente associada ao papel de homogeneizar tudo quanto diferenças culturais através da massificação de informação. Estamos diante de um velho, porém, pós-moderno dilema da relativização das identidades culturais em face desse monstruoso movimento global. Quais são as verdades ou as perspectivas por trás desse movimento, estamos mesmo acabando com as diferenças locais e nos tornando uma sociedade globalmente massificada pela indústria da informação que, ao mesmo tempo em que informa também nos aliena?

Não! Definitivamente não podemos afirmar a unilateralidade desse processo, que tudo é padronização massiva, que tudo é um simples caso de simplificação. É fato, a globalização da informação nos remete ao acesso instantâneo a uma gama infinita de informação e o local sofre a influência desse movimento tanto quanto o global. Trata-se, portanto, de um movimento de mão dupla: as mesmas informações que ditam as identidades culturais ao redor do mundo, também provocam sua diferenciação instantânea no contato do novo com o tradicional.

A sociedade ocidental, impulsionada pela capitalização de seus ritos e costumes, não pede licença pra entrar, ela simplesmente se impõem sobre os espaços que lhe melhor convir. Porém, não quer dizer, sobretudo, que se trata de uma fatalidade do nosso tempo. A narrativa é simples: somos uma sociedade em evolução, e a informação modifica aqueles que estão abertos a ela. Não se trata de uma forma de massificação, mas sim de uma nova relação com a indústria da informação, uma nova relação do local com o global e do global com o local.

A globalização proporciona um fluxo desequilibrado entre as culturas, forma ilhas de desigualdades entre o centro ocidental e o resto do mundo. É exatamente esse movimento de diferenciação que nos permite dizer que essa massificação da informação ao mesmo tempo em que homogeneíza, também proporciona a diferença. Não se trata de um fenômeno visível aos olhos mais distraídos, se trata de um movimento de implosão, se processando no interior da própria sociedade globalizada. Guetos, sociedades tradicionais e espaços marginalizados processam diariamente esse bombardeio cultural e se transformam de forma particular, produzindo e se reproduzindo de forma diferenciada de acordo com sua história, cultura e identidade particular.

Um mundo padronizado? Talvez para aqueles que acreditam que a forma mais simples de regulamentação se concentra apenas ao que é visível e palpável aos sentidos mais simples da sociedade. Há mais do que só consumo e produção material, também somos feitos de memória e de uma consciência cosmopolita que aplica um caráter particular a essas mudanças propostas pela dita globalização. Vítimas ou agentes dessa mudança, ou como proclama Nietzsche, “prego ou martelo?”, seja lá qual dessas roupagens nos vestimos, que cada um de nós escolha seu papel no processo e conseqüência da formação de sua identidade cultural nessa pós-modernidade globalizada.

Contribuição do leitor Leonardo Rodrigues de Oliveira, graduado em Turismo pela Faculdade de Ensino Superior de Itabira (2005). Também é estudante de Geografia da Universidade Federal de Viçosa, tem experiência na área de Geografia, com ênfase na Geografia humana, atuando principalmente nas áreas de organização do espaço. Esta atuação representa um esforço maior de harmonização entre as respectivas áreas e melhor aproveitamento de técnicas para entender o espaço.
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