quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Sobre aquele que capta os instantes que nos libertam


“É preciso estar disponível e saltar em cima, sem pena”, afirma em depoimento um dos maiores fotógrafos modernos, Henri Cartier-Bresson. Prosseguindo com o tom dado pelo salto de Yves Klein, gostaria de postar hoje algumas fotografias de Cartier-Bresson que estão expostas no SESC-Pinheiros, em São Paulo, e no livro recém-publicado pela editora Cosac & Naify com imagens selecionadas pelo próprio autor, originalmente publicado em 1979 e republicado em 1992, com introdução do poeta Yves Bonnefoy.

Tanto o radical gesto de Klein quanto o prosaico pulo do homem anônimo nos fundos de uma das mais movimentadas estações ferroviárias parisienses - a Estação de Saint-Lazare, retratada acima - incorporam a conduta por excelência moderna, a de estar sempre pronto para a eterna novidade do mundo, sendo assim capaz de captar o que Cartier-Bresson chamou de “momento decisivo”. É nessa fração de segundo que o fotógrafo é criativo, quando “seu olho deve ver uma composição ou uma expressão que a vida em si lhe oferece, e você deve saber com intuição quando clicar a câmera (...) "Oop! O Momento! Uma vez que você o perde, ele se foi pra sempre", afirma em 1957 Cartier-Bresson para o jornal Washington Post.

Um homem qualquer que salta aquela poça d’água está na mira daquele capaz de registrar o momento, exato e único, e que passa numa fração de segundo, em que o pé do sujeito está prestes a tocar a poça. Cartier-Bresson enquadra a cena - identifica o salto junto à organização rigorosa das formas percebidas visualmente -, e clica - decide por um momento efêmero capaz de dar sentido às estruturas geométricas de construções e objetos em tons de cinza que ele tem diante de si. A silhueta do homem em movimento, com pernas em ângulo reto, nitidamente definida no espelho d’água, parece encaixar-se espontaneamente no lugar, ecoando o movimento em sentido contrário da figura impressa no cartaz afixado na parede da construção mais próxima de nós.

Atrás da Gare Saint-Lazare (Paris, 1932): o título revela a localização da cena, a estação ferroviária pintada há mais de cinqüenta anos antes pelo pintor impressionista Claude Monet, que registra a constante movimentação de trens e passageiros nas plataformas através de rápidas e imprecisas pinceladas de tons variados. Se o pincel de Monet busca traduzir a sensação visual do ritmo temporal da modernidade que nasce com o desenvolvimento tecnológico e o aumento do deslocamento das pessoas, a câmera de Cartier-Bresson questiona essa experiência de aceleração temporal - como se ela parasse na fotografia aquela realidade que se apresenta cada vez mais fugidia.

O salto é movimento raro no cotidiano urbano, feito de passos rápidos dados por pés rentes ao chão. Daí o encanto da imagem, que faz lembrar as crianças que pulam poças de água de chuva - e cuja maior diversão talvez seja justamente pular na poça, e então se molhar... O gesto capturado por Cartier-Bresson sugere uma sutil subversão do comportamento tradicional do homem adulto na cidade, que, marcado pela crescente valorização da tecnologia e da produtividade, experimenta aceleração do ritmo de vida e aumento da sensação de transitoriedade. O tempo parece passar cada vez mais rápido. E ao acompanhar essa rapidez, nós acabamos por perder de vista instantes “preciosos” como o que vemos bem nítido nessa foto. Quantas cenas comuns e mágicas como essa nós vemos em nosso dia-a-dia atribulado sem por elas nos darmos conta?


Downtown
(Nova York, 1947)

Istambul
(Turquia, 1964)

Bolsa de Valores
(Londres, 1955)















“A câmera fotográfica é para mim um caderno de esboços, o instrumento da intuição e da espontaneidade, o mestre do instante que, em termos visuais, ao mesmo tempo questiona e decide. Para “significar” o mundo é preciso sentir-se implicado naquilo que se recorta através do visor. Essa atitude exige concentração, sensibilidade, um senso de geometria. É por uma economia de meios e, principalmente, um esquecimento de si que se chega à simplicidade de expressão.
Fotografar: é prender o fôlego quando todas as nossas faculdades convergem para captar a realidade fugidia; é
Atenas, 1953.

Aí então que a apreensão de uma imagem é uma grande alegria física e intelectual.
Fotografar: é num mesmo instante e numa fração de segundo reconhecer um fato e uma organização rigorosa das formas percebidas visualmente que exprimem e significam esse fato. É pôr na mesma linha de ira a cabeça, o olho e o coração. É um modo de viver.”
Cartier-Bresson




Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.

fernandalopestorres@uol.com.br

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