quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Sobre aquele que capta os instantes que nos libertam - parte II


Cartier-Bresson nos oferece aqui outra pausa; agora, da agitação da metrópole novaiorquina (Downtown, Nova York, 1947). Poderosas linhas de força formadas pelos arranha-céus característicos da moderna arquitetura norte-americana conduzem nosso olhar para o homem e o pequeno gato – olhar que imediatamente retorna a seu “ponto de partida”. As grandes linhas (da arquitetura) e os pequenos pontos (homem e gato) estabelecem um jogo, espécie de pulsação constante que suga e expulsa nosso olhar de modo vigoroso, trazendo para o plano frontal toda a composição. A conjugação entre pequenas figuras e imensidão arquitetônica revela uma solidão e uma sintonia entre homem e cidade - tão familiares aos habitantes da cidade grande. Somente um homem “sem imaginação” (como ele se reconhece) consegue captar essa típica orquestração urbana...

Para o amigo e poeta Yves Bonnefoy, desde a primeira fotografia vê-se que Cartier-Bresson se opõe fundamentalmente à prática da fotografia como a reprodução do mundo tal como ele é “refratado” pelo sonho. “Como que por instinto”, afirma Bonnefoi no texto de introdução à edição de 1992, e traduzido na edição brasileira, “todo o seu ser o carrega o mais longe possível de si e dos devaneios, para o contato com o próximo, junto aos mais diversos lugares e coisas, em busca da surpresa que descentra, do deslumbramento que liberta. E quando tira a foto, pois bem, estamos na China, na Índia, na casa de Ezra Pound ou de Matisse”. Assim, ele bem conclui que “o índice de refração do real pelo imaginário é o mais fraco possível”. Nesse sentido, o próprio Cartier-Bresson escreveu acerca do “imaginário a partir da natureza”:

A Cartier-Bresson não interessa a foto já tirada; importa a angústia diante da realidade, a alegria de estar presente, como declara em depoimento (filmado e exibido na mostra do SESC). Assim ele fotografa menos a partir de determinado local no espaço do que do “âmago errante desse consentimento à finitude, que pode fazer um ser o contemporâneo de todas as vidas e o próximo de todas as coisas” (Bonnefoy). A alegria de estar presente significa tornar-se um só com o mundo, atingir os fatos do tempo. E nesse sentido, o instante decisivo aludido pelo fotógrafo não se limita ao valor histórico. Bonnefoi nos lembra que Cartier-Bresson encontrou-se ao longo da vida no coração dos acontecimentos mais marcantes da época - na Alemanha por ocasião da abertura dos campos, na China no fim de Kuomintang e, depois, na ascensão de Mao, ao lado de Gandhi a poucos instantes de sua morte ... Mas seria compreendê-lo muito mal, ressalta o poeta, pensar que ele privilegiou esses momentos por seu valor histórico.

Trafalgar Square no dia da coroação de George VI
(Londres, 1937)

Aqui Cartier-Bresson dirige sua câmera para o pólo oposto ao palco do evento. Ao invés do foco individual no soberano que está sendo coroado, ele nos mostra uma multiplicidade de súditos que assiste (ou se esforça para fazê-lo) à cerimônia de coroação de George VI. Daí a espacialidade da imagem, plano composto por faixas horizontais constituídas pelo povo, pelo monumento em que se alocam e o monte de papéis/panfletos ao chão. Todos esses elementos são “sangrados”, sugerindo sua continuação para além do nosso campo de visão. O elemento que nos é revelado em toda sua individualidade: o sujeito que dorme, alheio àquela festividade (alheamento involuntário, talvez, provocado por entusiasmo capaz de fazê-lo beber até cair), pontuando em diagonal a orientação horizontal da cena – distante de um foco perspectivado no monarca.
Mas não seria injusto reduzir os súditos que dirigem seus olhares para o longe a uma massa homogênea? Como não individualizar o menino de pé, ou, e principalmente, o senhor gorducho de bigode grande no rosto redondo, com olhar tão concentrado? Destacam-se naquela “massa” os olhares – elementos fundamentais das imagens abaixo, que, conjugadas com os movimentos de corpos e/ou a arquitetura, sintetizam a “equivalência de tudo a tudo” (Bonnefoy) tão própria do nosso fotógrafo. Nelas a consonância de todas as coisas é dada por olhares que se desencontram.


Istambul
(Turquia, 1964)


Bolsa de Valores
(Londres, 1955)

















Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.


fernandalopestorres@uol.com

1 comentários:

Ana Dietrich disse...

oi querida, tanta sensibilidade para nos fazer ler esses clics instantâneos... só vc. mesma para nos chamar atenção. Muito gostoso o jeito que vc. analisa o artista/ obra convidando nosso olhar para passear.

bjs, da sua fã

30 de outubro de 2009 às 00:16

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