quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Sobre aquele que capta os instantes que nos libertam - parte III



Atenas, 1953
Eis um retrato da civilização ocidental na combinação entre presente que envelhece e passado que permanece, na conjugação entre as linhas retas da arquitetura e a sutil organicidade das duas matronas gregas e das duas enormes cariátides. Bonnefoi chama a atenção para a união entre velhice e maturidade, deformação e beleza, existência comum e sonho, capaz de dar “bruscamente o sentimento da relação orgânica de todas as coisas com todas as outras coisas de que Cartier-Bresson é o poeta.”

Essa relação se manifestaria pela “tensão completamente formal que por um segundo uniu os dois principais significantes, estátuas, e embaixo, mulheres: assim, a forma desempenha o papel da sintaxe que forma uma frase legível”.

A forma aqui é compreender que as duas idosas vão passar sob as cariátides, espreitar, e então clicar no instante exato da conjunção, que é, portanto, também e sobretudo, uma impressão que se acolhe, um assentimento que se dá à súbita plenitude. Afinal, segundo Cartier-Bresson, “Fotografar é, num mesmo instante e numa fração de segundo, reconhecer um fato e organizar com rigor as formas percebidas visualmente, que exprimem esse fato e o significam. É colocar na mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração”.
Compreende-se então porque Cartier-Bresson se diz alegrar com a geometria... E me lembro então da imagem acima, em que o corpo em movimento da menina grega parece feito da mesma substância da arquitetura. O mesmo caráter geométrico das muitas fotos de HCB, com certa fluidez, dada pela combinação entre essa arquitetura tipicamente mediterrânea e provavelmente a luz do lugar – e a silhueta que ali bem se encaixa. De modo abrupto podemos pensar na geo-metria como arte de medir a terra, a partir da ocupação do espaço pelo corpo humano – não será isso mesmo que Cartier-Bresson faz, “calcular” nosso lugar no mundo? Espécie peculiar de composição capaz de encontrar a equivalência de tudo a tudo. Menos construir a partir de diferentes partes, a composição em Cartier-Bresson é “ o reflexo seguro e rápido que lhe permite mais plenamente aquilo que a realidade nos abre às vezes, quando não sempre, mas de que tão poucos entre nós se mostram capazes (...) é a corrente que passa subitamente entre os dois pólos, reconciliando com o universal a consciência exteriorizada”. Segundo Yves Bonnefoi, ele aprendeu a não decompor.

Por que Cartier-Bresson emociona, também hoje?

O tempo parece passar cada vez mais rápido, e nós, ao acompanhar, por assim dizer, essa rapidez, somos abandonados pelos instantes (para falar com o pensador Cioran), e acabamos por perder de vista instantes preciosos como os que vemos bem nítidos nas fotos. Quantas cenas comuns e mágicas como essas nós vemos em nosso dia-a-dia atribulado sem nos darmos conta? Cartier-Bresson assinala o valor insubstituível de cada fração temporal esteticamente vivida. Coração, mente e corpo alinhados, o mestre do instante fotográfico prende sua respiração para clicar. Enquanto nós, por nossa vez, prendemos nossa respiração ao olhar sua foto, para depois, com fôlego renovado, enfrentarmos nossos momentos em nosso dia-a-dia.

E mais uma vez, passo a palavra a Yves Bonnefoy:
“Quando olho uma fotografia de Cartier-Bresson por certo experimento o espanto por terem ocorrido momentos tão ricos de significados, por terem surgido formas tão carregadas de ser. Parece-me a princípio que isso é muito mais do que a realidade que nos é dada. Mas já sei também que essa luz de epifania só brilha para esse poeta horizonte que pertence a todos nós – o artista é aquele que experimenta a realidade como ninguém o faz... e sou estimulado, e conduzido, o que é a única grande contribuição que uma obra humana pode dar ...”

Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.


fernandalopestorres@uol.com

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