quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Primeiro encontro com Paulo Bruscky


Há duas semanas comentei “Mr. America”, mostra de Andy Warhol (que chegará em 2010 na Pinacoteca de São Paulo no mês de março: não percam!). Li sobre e vi bastante o trabalho do artista que, em seu vocabulário de poucas palavras, reitera algo como “as pessoas não são capazes de ver”. Uma semana depois da postagem, mais uma vez eu
me lembrei de Warhol quando tive o prazer de conhecer pessoalmente Paulo Bruscky, um artista pernambucano que recentemente começa a ser (devidamente) reconhecido pela Historiografia da Arte no Brasil (historiografia essa que tem um extenso trabalho pela frente!). “Se as pessoas enxergassem, não precisaríamos de artistas”, disse Bruscky em entrevista a mim e a uma colega no Oi Futuro, no Flamengo, Rio.
Afinal, não é função do artista, em todas as épocas, “elevar em um tom” (Gaston Bachelard) o real, de modo a nos fazer ver a realidade como até então não a tínhamos visto? Arte – e estou me referindo à arte de modo geral, artes plásticas, visuais, música, literatura, cinema - é uma forma de ver, ou seja, de compreender, interpretar, e não uma mera forma de fazer, como ressalta o artista pernambucano que começa a atuar nos anos setenta em Recife. Sim, a arte sempre foi cosa mentale, para falar com Leonardo da Vinci, há meio milênio atrás, que reclama a dimensão mental/intelectual da pintura em detrimento da habilidade técnica ou manual.
Mas deixemos afinal a questão nos anos 60/70, início da atuação em arte tanto de Warhol, em Nova York, quanto de Bruscky, em pleno Recife-PE. É quando se fala em “desmaterialização da arte” (segundo a crítica de arte norte-americana Lucy Lippard), ou na anti-arte (segundo nosso Hélio Oiticica), relacionada com a exacerbação do duplo estatuto da produção humana que se encontra na base da noção de arte moderna. Na esteira de um processo que vem desde pelo menos o século XVIII, com a Revolução Industrial, a arte moderna nasce com o que o historiador da arte italiano Giulio Carlo Argan se refere como “crise do objeto”, localizada em meados do século XIX/primeira metade do século XX. O homem encontra-se definitivamente capaz de produzir objetos únicos (Arte) e objetos múltiplos (industriais). O que distingue então arte da não-arte? O que distingue obra de arte de um produto cultural?
O readymade de Duchamp já lida com essa espécie de paradoxo da produção humana. A Roda de Bicicleta (1913), por exemplo, não é alvo de fruição estética nem tampouco pode ser consumida/utilizada. (Sim, o assunto é extenso – e por isso gostaria que vocês colocassem questões, gostaria que me provocassem!)
Assim, já o início do século vinte vivencia uma nova condição da arte, em que a obra não se circunscreve numa lógica do fetiche, mas é sim experimentada por sua potência e tornada registro da obra. Na segunda metade do século, quando da explosão do consumo, essa condição é exacerbada. Num mundo em que objetos e, principalmente, suas imagens, abundam no cotidiano, Bruscky lida com o questionamento da autoria, da originalidade, da obra de arte como objeto único, enfim. Ele se apropria da estrutura existente dos meios de comunicação de massa: o sistema de circulação dos Correios e os novos meios que posteriormente surgem, como o fax, são a melhor maneira de driblar a censura da Ditadura Militar . (Em tempo: Bruscky é um dos nossos mais ativos representantes da arte-correio, capaz de formar uma rede de informação/correspondência que funciona como os emails de hoje). 
Com propriedade o artista realiza Protetor para identidade (1975, 22, 7 X 18, 1 cm; Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo): auto-retrato que encobre a imagem do rosto do artista e que bem pode ser copiado à exaustão (trata-se de off-set), capaz de revelar uma identidade como convergência de identidades (afinada com a polifônica identidade contemporânea), ao mesmo tempo em que sugere a clandestinidade típica dos tempos de exceção. Desnecessário talvez ressaltar a presença da estrutura dessa identidade – esqueleto/estrutura óssea - registrada duplamente em raio-X, que anuncia o caráter imediato e visceral daquele que é um dos pioneiros  na experimentação com fotocópias. Nessa direção, vale destacar as performances envolvendo fotocópias: obra sem original, apenas matriz, em que a cópia é sua origem, a Xeroperformance captura um corpo fragmentado, um rosto distorcido, que viram frames de um filme de instantes sem começo nem fim. Espero que em breve possamos assistir a esses filmes, tão curtos quanto viscerais, em nossos museus. Por enquanto ficamos com um dos registros dessa espécie peculiar de performance realizada junto à máquina fotocopiadora – Xeroperformance, 1994; colagem e carimbos sobre envelope, 26 X 35, 6 cm, Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Recife, PE).



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Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.

fernandalopestorres@uol.com.br 

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