quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Aquele que “respirava pintura e exalava literalmente pintura”


Jorge Guinle
Dispnéia Parafernálica , 1981
óleo sobre tela
152 x 180 cm

Uma arte solar foi a que tivemos oportunidade de ver em outubro de 2009 no MAM-Rio, após ter passado por São Paulo e Porto Alegre. Uma “pintura do sim”, como bem sintetiza o crítico de arte Ronaldo Brito, um dos curadores da mostra e amigo de Jorge Guinle Filho -  um dos maiores pintores brasileiros, que já há tempos merecia uma retrospectiva como aquela.

Guinle nasce em Nova York e passa grande parte de sua vida entre essa cidade e Paris, onde efetivamente convive com as grandes pinturas modernas. Matisse, Picasso e Miró, além da action-painting dos norte-americanos  De Kooning, Pollock, ou a Pop Art de Johns e Warhol são decisivos para sua formação, deixando traços em sua pintura, atividade à qual retorna quando se estabelece no Brasil no fim dos anos 70. Nos anos seguintes o artista participa de várias exposições nacionais, entre elas a mostra Como Vai Você, Geração 80?, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage - EAV/Parque Lage, Rio de Janeiro, em 1984, tornando-se uma espécie de símbolo da chamada Geração 80 – grupo de jovens artistas que se volta para o “prazer de pintar” num país que começa a vivenciar um clima de abertura política.
 Após a produção experimental/conceitual dos anos 60 e 70, o fenômeno do retorno à pintura ganha alcance internacional. Jorge Guinle sempre pintou, mas só no início dos anos 80 ele encontra  ambiente propício para despontar. Vale lembrar que, representante por excelência da Geração 80, o pintor, no entanto, pertence por afinidade intelectual e artística a uma geração de raros pintores, como Waltércio Caldas, Tunga, Barrio, que já tinham se estabelecido na linha de frente da arte contemporânea brasileira.

 Familiarizado com toda a arte moderna, Guinle era um artista que entendia de arte – o que era raro entre nós naqueles anos, quando tínhamos quase nenhum acesso a publicações estrangeiras. Colorista nato, exibe uma pintura na qual se pode detectar o reprocessamento do lirismo de Matisse (reparem na fluidez do desenho de Guinle, não teria imensa afinidade com a desenvoltura dos arabescos de Matisse?) ou da força de Picasso, da força de Pollock ou do ceticismo de Johns.

 
Matisse ilustração

Mas, afinal, em plenos anos 80, imerso em um sistema cultural totalmente codificado, mercantilizado, que poder de transformação ainda teria o gesto de pintar? O que fazer, quando tudo já parece ter sido feito? Num mundo da arte já desencantado, Jorge Guinle nos oferece contudo uma pintura enérgica. Em entrevista, comenta a ambição da pintura então realizada pelo Neo-Expressionismo Alemão, pela Transvanguarda italiana ou pelo norte-americano Phillip Guston:
    “A nova pintura é um movimento 'decadente e 'conservador' se aceitarmos os termos colocados pelos antepassados de tradição moderna. Os antepassados da pintura moderna queriam recriar o mundo, pintavam para recriar o mundo. Os novos pintores já partem do princípio de que não vão poder recriar o mundo, e não querem isso. Os seus trabalhos explicitam a apropriação de todo um banco de ideias e tradições já usados; fazem uma mixagem disso e lançam as obras no espaço cultural”.

Guston, Philip
Entrance
1979
Oil on canvas
175.3 x 236.2 cm
Collection of Agnes Gund

Grosso modo podemos resumir. A arte no Renascimento se fundamenta na crença da existência de uma realidade com leis próprias – a natureza –, distinta das realidades divina e humana. E acredita em sua capacidade de representar este mundo empregando alguns princípios racionais, como os artifícios da perspectiva e do claro-escuro. Testemunhamos então uma harmonia entre a base material e o campo simbólico, colocada em xeque no século 19, quando  transformações econômicas e diversos conflitos sociais eclodem pela Europa evidenciando contradições que atingem a arte numa seqüência de movimentos a confrontar o sistema plástico dominante. Uma sucessão destes movimentos culminará com a ruptura proposta pelo sistema pictórico de Cézanne, que determina corte com o espaço renascentista. Cézanne incide sobre o seu alicerce básico, que é o compromisso com a representatividade. Nesse sentido, a chamada crise de representação pode ser entendida na pintura daquele para quem o problema da articulação do campo visual se imbrica com a consciência: perceber não se distingue de ser percebido. Não existe um real fora da consciência/sensibilidade do pintor.
Estamos bem distantes do equilíbrio entre base material e campo simbólico renascentista. A arte há muito não mais serve à Igreja ou ao Poder; perde definitivamente seu lugar social. O artista moderno é aquele que constrói seu lugar no mundo. Se na primeira metade do século 20 as vanguardas construtivas européias vão buscar a integração e a participação da arte no mundo moderno, na segunda metade, os expressionistas abstratos norte-americanos sabem que a arte não pode existir como parte integrante daquele mundo. Mas acreditam na possibilidade de existência individual, “ao menos numa tela”, e assim mantêm uma crença radical na absorção total no Ser da pintura. Já os pintores dos anos 80 sabem dessa impossibilidade. A pincelada traduz um individualismo postiço, na medida em que a lógica da imagem contradiz o falso 'furor' do processo.

 
Jorge Guinle
Summer Interlude , 1986
óleo sobre tela
155 x 275 cm
Coleção Eduardo Guinle

Como no trabalho dos neo-expressionistas alemães e italianos, Guinle opta pelo uso de matérias tradicionais, tela e tinta a óleo, e também escolhe um estilo já dado e digerido, “numa heterogeneidade que negaria a unicidade de pensamento que cria o sublime homogêneo”. Ao contrário deles, porém, não trabalha determinadas imagens – cuja função é reduzida a zero -, apresenta sim uma “iconografia abstrata”.  “Uma iconografia da história da arte, observa Guinle, “e não uma iconografia identificada (...) por motivos emocionais, estéticos, se encontra uma mescla do Abstrato-Expressionismo gestual, de Kooning e do Matisse, até um Surrealismo automatista. Mas cada apropriação de um estilo, de um pensamento inicial, é desviada do propósito inicial da escola escolhida justamente pela inclusão de uma outra escola que seria sua negação. Por exemplo, o lado decorativo, joie-de-vivre matissiano das cores, seria negado pela construção ritmicamente exacerbada do Abstrato-Expressionismo. Por outro lado, a tragédia desta mesma pincelada abstracionista é negada pelo otimismo da cor e pela ambigüidade cômica da operação. A possibilidade e o prazer de sempre alargar e nutrir essas contradições formam a base da minha práxis artística. O sublime poderia justamente surgir nessa crítica do sublime já embalsamado e obsoleto, nesta fronteira exígua, onde ele nasce e desaparece”.
Somente com essas ambigüidades ele pode fazer existir a arte no mundo contemporâneo. Distante de qualquer vago desejo de mudar o mundo, trata-se antes do próprio estar no mundo. Vivenciando o desencanto da recuperação institucional da arte moderna, e consciente do destino trágico reservado às suas utopias, Guinle mantinha “diálogo alegre, furioso e reflexivo, com telas que ele ficava girando e girando, no chão, como se procurasse desenquadrá-las, atravessar os seus limites para torná-las coisas vivas e autônomas” (Ronaldo Brito)). A sua pintura dizia sim, sempre, bem reconhece Brito, para que os “impasses, as angústias, pessoais e históricas, eram repotencializadas pelo próprio ato enérgico e irresistível da pintura”.

 

Jorge Guinle
Take Cinematográfico , 1983
óleo sobre tela
160 x 180 cm
Coleção João Sattamini
tográfico)






 Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.

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