quinta-feira, 4 de março de 2010

Além de nós, mas ainda nós



Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?
Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno (1ª elegia)




A fotografia acima é um fotograma do filme Asas do Desejo [Der Himmel über Berlin] (35 mm, 128 min, P/B e cor, 1987), de Wim Wenders, filme que revi há pouco tempo em pesquisa para a empresa em que atualmente trabalho. Muito comentado à época de seu lançamento, e elogiado pela crítica especializada, Asas do Desejo tem fotografia peculiar, um monocromo tingido de sépia que imediatamente garante a poesia já fluida. A fotografia, de Henri Alekan, que trabalhou para Jean Cocteau em A Bela e a Fera, contrasta o ponto de vista monocromático dos anjos com a visão em cor da realidade pelos humanos.

Os elegantes e sóbrios anjos de Wenders pairam sobre Berlim e circulam à vontade por todos os lugares da cidade; entram em qualquer ambiente, sala, escritório (a sequência na biblioteca é linda), onde observam atenta e afetuosamente as pessoas, cujos pensamentos eles podem ler. Assim, somente por causa da presença dos anjos, ouvimos os monólogos dessas pessoas, em suas aflições cotidianas; os diálogos acontecem somente entre Damiel e Cassiel - os dois anjos que mediam os encontros entre os personagens do filme e nós, os espectadores.

Além do tempo e da morte, os anjos-personagens do filme estiveram presentes no local da trama desde antes da história da humanidade. E tendo observado cuidadosamente os seres humanos desde o início, eles de algum modo nos compreendem melhor do que nós mesmos nos compreendemos. Sabem que nós buscamos o que é espiritual, entendem como nós sentimos mas não podemos de fato entrar no reino espiritual que se encontra além de nós. Buscamos afinal “o que está além de nós, mas que seja nós”, como escreve o poeta norte-americano Wallace Stevens - superação constante em nosso trabalho cotidiano, e no amor, a ser aqui vivenciado entre o anjo Damiel e a trapezista Marion.

Tendo como cenário a Berlim às vésperas da queda do muro, Asas do Desejo celebra a humanidade, a percepção, a sensibilidade - o esfregar nossas mãos durante um inverno frio, ou o bebericar café quente enquanto se lê jornal, conforme explica o ator/ex-anjo vivido por Peter Falk. Trata-se de celebração da vida humana, sua mortalidade, sua vulnerabilidade, da possível conquista da espiritualidade através do amor - que não implica perda da individualidade, mas sua plenitude.

A polaridade entre o terreno e o transcendente está na base do pensamento ocidental. É o que levou Platão a formular o primeiro grande sistema filosófico do Ocidente, o que dá ímpeto à disputa entre religião e secularismo científico. Questão normalmente trabalhada em registros acadêmicos ou sócio-políticos, elas são tratadas por Wenders num filme tão “constrangedoramente realista, como um documentário da vida na Berlim moderna, e convincentemente metafísico, como uma fábula dos anjos encarregados de vigiar Berlim” (Eric Mader-Lin). Wenders consegue transmitir a imediaticidade dessa polaridade sensível/espiritual às vidas e ânsias dos personagens, através de seus pensamentos sobre trabalho, amor, morte. “Asas do desejo é totalmente bizarro, de um modo evasivo e quase sempre com humor, mas ao mesmo tempo absolutamente sério” (Eric Mader-Lin).

Um Damiel cansado da vida espiritual anseia pelo tempo, pelo peso do mundo humano. E conversa com Cassiel:

É ótimo viver somente pelo espírito, testemunhar dia-a-dia, para a eternidade, o lado espiritual das pessoas. Mas às vezes eu fico cansado de minha existência espiritual. Ao invés de pairar para sempre eu gostaria de sentir que há algum peso em mim. Para acabar com minha eternidade e me ligar à terra. A cada passo, a cada brisa, eu gostaria de ser capaz de dizer: 'Agora! Agora! E agora! E não mais dizer: “desde sempre' e 'sempre'.

No jogo entre o anjo que aspira à materialidade e o homem que aspira à espiritualidade, Asas do Desejo afirma a tensão necessária e permanente entre os dois. Uma tensão desenvolvida no filme através do (bíblico) motivo da queda, anunciado na bonita foto que se torna espécie de símbolo do filme. Nós sempre imaginamos que transcender os limites de nossas vidas terrenas significa ascender; o que é banal ou meramente mortal poderia ser deixado para trás se nós pudéssemos voar . Tal sonho de voar e seu concomitante medo de cair é encarnado na figura de Marion, a trapezista por quem Damiel se apaixona.

Prestes a fazer sua última apresentação - pois o circo em que trabalha vai fechar por falta de dinheiro -, Marion bem sabe que deverá retornar ao trabalho como garçonete. Foi uma desilusão seu sonho de ascender através da arte. Arte perigosa, essa do trapézio, pois, ao mínimo vacilo, Marion pode cair sobre a multidão. Junto com sua queda da vida ideal como uma artista de circo há também a possibilidade de uma queda literal, uma que é assustadoramente material.

Vemos e ouvimos Marion através dos olhos do anjo Damiel, cada vez mais e mais fascinado por ela em seu desejo de descer à humanidade. O anjo continua a conversa com Cassiel: “vou mergulhar de cabeça”, decide, “rumo ao banco de areia do tempo e da morte” / “Vou abraçá-la, ela vai me abraçar”. E Damiel efetivamente cai de seu estado angélico. Aos poucos sua imagem monocromática se colore, e, enfim humano, ele aparece deitado perto da parede pichada do muro – literalmente um anjo caído.



Quando Damiel finalmente cai, um dia ou dois depois, ele chega ao pub onde Marion vai dançar. Ele a vê, mas é ela que se aproxima do bar onde ele está esperando. Os dois se olham, ela o reconhece (havia sonhado com ele), e começa seu monólogo: “ela o diz com uma franqueza e delicadeza que significa que está ali somente para ouvir, para ouvir de sua boca o significado de seu novo amor”.

É tempo de ficar sério”, afirma Marion. “Eu quase sempre estive sozinha, mas eu nunca vivi sozinha. Quando eu estava com alguém eu estava sempre feliz. Mas eu também sentia que tudo era uma questão de sorte. Essas pessoas são meus pais, mas poderiam ter sido outros. Por que aquele menino de olho castanho era meu irmão, e não o menino de olhos verdes na plataforma oposta? (...) Eu estava apaixonada. Mas eu poderia também tê-lo deixado lá, e continuado com o estranho que veio em nossa direção ... Olhe para mim, ou não. Dê-me sua mão, ou não. Não, não me dê sua mão, e olhe para outra direção ... Eu acho que existe uma nova lua essa noite. (...) Eu nunca fui solitária. Nem quando eu estava sozinha, nem com outros. Eu teria gostado de estar sozinha finalmente. A solidão significa finalmente que eu sou um todo. Agora eu posso dizer isso porque hoje eu sou finalmente solitária. Não mais coincidência ... A nova lua da decisão. Eu não sei se o destino existe, mas a decisão existe sim. Decidir. Agora nós somos o tempo. Nós personificamos algo. Nós estamos sentados na praça das Pessoas, e toda a praça está cheia de pessoas, todas elas que desejam o que nós desejamos. Nós estamos decidindo o jogo de todo mundo. Eu estou pronta. Agora é sua vez. Você está segurando o jogo em sua mão. Agora ou nunca. Você precisa de mim. Você precisará de mim. Não há história maior do que a nossa. Aquela do homem e da mulher. Será uma história de gigantes. Invisível, transponível. Uma história de novos ancestrais. Veja. Meus olhos. Eles são a imagem da necessidade, do futuro de todos na plaza. Noite passada eu sonhei com um estranho. Com meu homem, Somente com ele eu poderia ser sozinha. Abrir para ele. Completamente aberta, completamente para ele. Dar boas-vinads a ele completamente em mim. Envolvê-lo com o labirinto de felicidade compartilhada. Eu sei que é você."

Outrora anjo, Damiel fica junto de Marion. E na linda última cena do filme ele segura a corda do trapézio que prende Marion ao chão. Ela não precisa renunciar a sua arte afinal. Um novo equilíbrio entre espiritualidade e materialidade foi estabelecido, agora efetuado através do amor entre o homem ex-anjo ancorado firme no chão a sustentar a mulher que paira no ar. O anjo se apaixona e desce ao mundo material, a mulher se apaixona e se eleva ao mundo espiritual da arte do trapézio. E Damiel parece responder ao monólogo de Marion:

Algo aconteceu. Ainda está acontecendo. Me prende. Foi verdade à noite e é verdade agora, neste momento. Quem foi quem? Estive dentro dela e ela, em volta de mim. Quem nesse mundo pode dizer que já esteve unido a outro ser? Eu estou unido. Nenhuma criança mortal foi concebida ... mas sim um quadro imortal foi compartilhado. Aprendi sobre a estupefação esta noite. Ela me levou para casa, e encontrei o meu lar. Aconteceu uma vez, portanto vai acontecer. A imagem que criamos me acompanhará quando morrer. Terei vivido em seu interior. Somente a estupefação com nós dois ... a estupefação com o homem e a mulher me tornou humano. Eu ... agora ... sei ... o que ... nenhum anjo ... sabe”.


 
Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.

1 comentários:

Patricia Corrêa disse...

Fernanda,
que bom lembrar desse filme, que me marcou tanto, através do teu lindo texto! Parabéns!

7 de março de 2010 às 12:36

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