quinta-feira, 1 de abril de 2010

Uma dessas maravilhosas coincidências, ou a clepsidra


Há uma semana atrás aprendi o significado de uma palavra: clepsidra. Sonora, estranhamente bonita, me trazia à mente uma figura mitológica; por certo, algo de encantado.

Clepsidra, talvez vocês saibam, é um relógio de água, um dos primeiros sistemas criados pelo homem para medir o tempo. Funciona por gravidade, a partir do mesmo princípio da ampulheta. Sim, a palavra clepsidra vem do grego - κλεψύδρα (klepsydra) -, e sua formação reúne duas palavras gregas κλέπτειν (kleptein), “ocultar, roubar”, et ὕδωρ, ὕδατος (hydôr, hydatos), “água” – não à toa a imagem corrente de que o tempo escorre... Minha tarefa consistia em pesquisar imagens de relógios de vários tipos, e assim, também selecionar imagens de clepsidras, dispositivos cujos primeiros exemplares datam de 1600 a.C. no Egito antigo.

Se por certo o inesgotável tema do “tempo” ocupa, e ocupará, a partir de motes diversos essa coluna, quero deixar aqui hoje registrada minha descoberta da semana passada, que é a de um breve conto de Jorge Luís Borges, em que (re)encontrei a curiosa palavra aprendida no dia anterior.

Alento de minha quinta-feira passada, “Parábola do Palácio” me surpreendeu com aquela nova palavra “clepsidra” no momento predileto de minha viagem diária pela serra da cidade onde moro, Petrópolis – a breve passagem pelo viaduto do Papagaio, paisagem linda, sempre, todos os dias, capaz de renovar meu fôlego para mais um dia quente e corrido na cidade do Rio de Janeiro.
Inesquecível aquela conjunção mágica, quando se materializaram na curva do túnel o palácio, o Imperador, o poeta, e a clepsidra! de Borges. E até hoje se encontram ali latentes –suspensos afinal no universo.
“Aquele dia, o Imperador Amarelo mostrou seu palácio ao poeta. Foram deixando para trás, em grande desfile, os primeiros terraços ocidentais que, como graus de um quase inabarcável anfiteatro, declinam até um paraíso ou jardim cujos espelhos de metal e cujos intrincados cercas de zimbro prefiguravam já o labirinto. Alegremente se perderam nele, no início como se condescenderam a um jogo e depois não sem inquietude, porque suas avenidas retas adoeciam de uma curvatura muito suave mas contínua e secretamente eram círculos. Até a meia-noite, a observação dos planetas e o oportuno sacrifício de uma tartaruga permitiu a eles desligar-se dessa região que parecia enfeitiçada, mas não do sentimento de estar perdidos, que os acompanhou até o fim. Antecâmaras e pátios e bibliotecas com uma clepsidra, já uma manhã avistaram desde uma torre um homem de pedra, que logo se perdeu deles para sempre. Muitos rios resplandescentes atravessaram em canoas de sândalo, ou um só rio muitas vezes. Passava o séquito imperial e as pessoas se a ele se inclinavam, mas um dia chegaram a uma ilha em que ninguém havia ido, por não haver visto nunca o Filho do Céu, e o capataz teve que decapitá-lo. Negras cabeleiras e danças negras e complicadas máscaras de ouro viram com indiferença  seus olhos; o real se confundia com o sonhado ou, melhor dito, o real era uma das configurações do sonho. Parecia impossível que a terra fosse outra coisa que jardins, águas, arquiteturas e formas de esplendor. Cada cem passos uma torre cortava o ar; para os olhos a cor era idêntica, mas a  primeira de todas era amarela e a última escarlate, tão delicadas eram as gradações e tão grande a série.
    Ao pé da penúltima torre foi que o poeta  (que estava como que alheio aos espetáculos que eram maravilha de todos) recitou a breve composição que hoje vinculamos indissoluvelmente a seu nome e que, segundo repetem os historiadores mais elegantes, lhe proporcionou a imortalidade e a morte. Esse texto se perdeu; há quem entende que constava de um verso; outros, de uma só palavra. O certo, o incrível, é que no poema estava inteiro e minucioso o palácio enorme, com cada ilustre porcelana e cada desenho em cada porcelana e as penumbras e as luzes dos crepúsculos e cada instante desgraçado ou feliz das gloriosas dinastias de mortais, de deuses e de dragões que o habitaram desde o interminável passado. Todos calaram, mas o Imperador exclamou: “Me arrebatou o palácio!”, e a espada de ferro do capataz ceifou a vida do poeta.

Outros se referem de outro modo à historia. No mundo não pode haver duas coisas iguais; bastou (nos dizem) que o poeta pronunciasse o poema para que desaparecesse o palácio, como abolido e fulminado por la última sílaba. Tais lendas, claro está, não passam de ficções literárias. O poeta era escravo do Imperador e morreu como tal; sua composição caiu no esquecimento porque merecia o esquecimento e seus descendentes buscam todavia, e não encontraram, a palavra do universo”.








Fernanda Lopes Torres é pesquisadora e historiadora da arte. Graduada em Desenho Industrial pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, tem mestrado e doutorado em História Social da Cultura pela PUC-Rio. Atua hoje como pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) e professora do Instituto de Artes da UERJ, tendo publicado artigos em revistas universitárias e na revista Novo Estudos do CEBRAP.

Aquel día, el Emperador Amarillo mostró su palacio al poeta. Fueron dejando atrás, en largo desfile, las primeras terrazas occidentales que, como gradas de un casi inabarcable anfiteatro, declinan hacia un paraíso o jardín cuyos espejos de metal y cuyos intrincados cercos de enebro prefiguraban ya el laberinto. Alegremente se perdieron em él, al principio como si condescendieran a un juego y después no sin inquietud, porque sua rectas avenidas adolecían de una curvatura muy suave pero continua y secretamente eran círculos. Hacia la medianoche, la observación de los planetas y el oportuno sacrificio de uma tortuga les permitieron desligarse de esa región que parecía hechizada, pero no del sentimiento de estar perdidos, que los acompañó hasta el fin. Antecámaras y patios y bibliotecas com uma clepsidra, ya una mañana divisaron desde una torre un hombre de piedra, que luego se les perdió para siempre. Muchos resplandecientes ríos atravesaron em canoas de sándalo, o un solo río muchas veces. Pasaba el séquito imperial y la gente se prosternaba, pero un día arribaron a uma isla em que alguno no lo hizo, por no haber visto nunca al Hijo del Cielo, y el verdugo tuvo que decapitarlo. Negras cabelleras y negras danzas y complicadas máscaras de oro vieron com indiferencia  sus ojos; lo real se confundía com lo soñado o, mejor dicho, lo real era una de las configuraciones del sueño. Parecía imposible que la tierra fuera otra cosa que jardines, aguas, arquitecturas y formas de esplendor. Cada cien pasos una torre cortaba el aire; para los ojos el color era idéntico, pero la primera de todas era amarilla y la última escarlate, tan delicadas eran las gradaciones y tan larga la serie.
    Al pie de la penúltima torre fue que el poeta  (que estaba como que ajeno a los espetáculos que eran maravilla de todos) recitó la breve composición que hoy vinculamos indisolublemente a su nombre y que, según repiten los historiadores más elegantes, le deparó la inmortalidad y la muerte. Ese texto se há perdido; hay quien entiende que constaba de un verso; otros, de uma sola palabra. Lo cierto, lo increíble, es que en el poema estaba entero y minucioso el palacio enorme, com cada ilustre porcelana y cada dibujo em cada porcelana y als penumbras y las luces de los crepúsculos y cada instante desdichado o feliz de las gloriosas dinastías de mortales, de dioses y de dragones que habitaron en él desde el interminable pasado. Todos callaron, pero el Emperador exclamó: “Me has arrebatado el palacio!”, y la espada de hierro del verdugo segó da vida del poeta.
    Otros refieren de otro modo la historia. En el mundo no puede haber dos cosas iguales; bastó (nos dicen) que el poeta pronunciara el poema para que desapareciera el palacio, como abolido y fulminado por la última sílaba. Tales leyendas, claro está, no pasan de ser ficciones literarias. El poeta era esclavo del Emperador y murió como tal; su composición cayó en el olvido porque merecía el olvido y sus descendientes buscan aún, y no encontrarán, la palabra del universo.

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