quinta-feira, 24 de junho de 2010

Modernismos no Brasil dos anos trinta


No intervalo entre o manifesto antropofágico e sua releitura tropicalista, o Brasil dos anos 1930 vive movimento de unificação cultural, quando se experimenta em escala nacional fatos antes ocorridos no âmbito das regiões. Simultaneamente às importantes transformações políticas que vinham ocorrendo, a classe média ganha espaço político e cultural, o que acaba por  resultar num crescimento de contingente e de poder para o Modernismo. Assim, os modernistas conseguem avançar sensivelmente na ocupação das instituições culturais1. Por exemplo, Lúcio Costa é nomeado para diretor da Escola Nacional de Belas-Artes, o que resulta no incentivo à participação de artistas modernos e na retração – e reação - dos acadêmicos – o que irá transformar a luta pelo controle das instituições culturais num fato importante durante a década. 

Nesse período, retoma seu prestígio de centro cultural o Rio de Janeiro, onde se concentravam intelectuais de todo o país, atraídos quer pela possibilidade de divulgação que ali existia, quer pelas ofertas de empregos em órgãos governamentais. Das mansões paulistas uma política cultural segue para os corredores e salas das repartições culturais. Vivencia-se certa  institucionalização da produção cultural, proporcional à etapa de sedimentação à qual se segue a ruptura modernista dos anos 1920. Apesar de todos os problemas que lhe são interpostos, a arte moderna consegue prosseguir seu processo de afirmação. Nas artes visuais e na literatura, a geração dos anos 30 e 40 desenvolve vários caminhos, sempre figurativos, redefinindo a linguagem artística articulada ao interesse pelas questões nacionais com a elaboração de uma arte de temática social.

Por certo, não se pode, é claro, falar em socialização ou coletivização da cultura artística e intelectual, como bem lembra Antônio Cândido. Afinal, “no Brasil as suas manifestações em nível erudito são tão restritas quantitativamente, que vão pouco além da pequena minoria que as pode fruir. Mas levando em conta esta contingência, devida ao desnível de uma sociedade terrivelmente espoliadora, não há dúvida de que depois de 1930 houve um alargamento de participação dentro do âmbito existente, que por sua vez se ampliou”. Alargamento que pode ser verificado nos campos artístico e literário, nos meios de veiculação, como livro e rádio (que teve grande desenvolvimento), e também nos  estudos históricos e sociais. Tudo isso vinculado a uma nova relação entre intelectual e artista e a sociedade e o Estado, que adota política cultural e educacional como parte de um projeto oficial mais amplo de modernização política, econômica e cultural do país, comprometido com sua independência cultural2. Ao mesmo tempo, assiste-se então à tomada de consciência ideológica de intelectuais e artistas, o que faz dos anos 30 período  de engajamento político, religioso e social no campo da cultura. Mesmo aqueles que não se definiam explicitamente manifestaram na sua obra esse tipo de inserção ideológica.

O momento foi de busca de posicionamento crítico face à chamada “realidade brasileira”. Os “estudos brasileiros” de história, política, sociologia, antropologia apresentam radicalização  crítica em que se destaca, para além da “consciência social”, a urgência de reinterpretar o passado nacional e o aumento do interesse pelos grupos até então menos estudados, como o negro, o índio, o trabalhador rural, o operário, o pobre.  Nessa direção, os recém-fundados cursos superiores de filosofia, ciências sociais, história, letras contribuíram para desenvolver o espírito analítico nos estudos sobre o Brasil, sendo decisiva a contribuição de professores e pesquisadores estrangeiros, temporária ou definitivamente radicados no Brasil, como Claude Lévi-Strauss ou Roger Bastide.

Mais do que em qualquer outro campo cultural, nas artes e na literatura se destacam generalização da efervescência renovadora dos anos 20. Na literatura podemos observar atualizações do que se esboçara nos anos 20, resultando no enfraquecimento progressivo da literatura acadêmica, com a busca de simplificação ou coloquialismo, e a amplificação das 'literaturas regionais' à escala nacional. Na arquitetura, uma espécie de sanção oficial do modernismo correspondia à aceitação progressiva pelo gosto médio, a partir das primeiras residências traçadas por Warchavchik e Rino Levi. A Lúcio Costa e a Oscar Niemeyer foi confiado por Gustavo Capanema o projeto do edifício do ministério de Educação e Saúde, em cujas paredes Cândido Portinari pinta seus murais.


Portinari se apresenta aliás como o artista mais representativo dessa segunda fase do Modernismo. Primeiro artista moderno oriundo da Escola Nacional de Belas-Artes, ele receberá o maior número de encomendas governamentais, sendo o primeiro artista modernista a ser conhecido nacionalmente. Em 1930 o artista volta de viagem a Europa onde entra em contato com a arte moderna, tendendo rapidamente ao Modernismo. Aqui entre nós já existe caracterizado certo espaço moderno, ao qual a pintura de Portinari acrescenta os novos pontos de vista da pintura social. Afinal, “o artista deve educar o povo mostrando-se acessível a esse público que tem medo da arte pela ignorância, pela ausência de uma informação artística”, declara Portinari, para quem “nossos artistas precisam deixar suas torres de marfim, devem exercer uma forte ação social interessando-se pela educação do povo brasileiro”. O Modernismo vive momento de nova síntese, em que os elementos a considerar seriam o espaço pós-cubista, o nacionalismo e a arte social, resultando em pintura mais realista que busca uma comunicação mais imediata. Tal tendência realista não é, porém, exclusiva de nossa produção artística, sendo encontrada na Alemanha e na Rússia,  México e França, como reações diversas à subordinação do movimento Moderno à indústria de artigos de luxo, ao imaginário da máquina, à promessa da Revolução de Outubro.

A historiadora da arte Anna Teresa Fabris considera Portinari figura-símbolo da modernidade possível num país periférico, o que “parece ser uma grave falha para os partidários da modernidade a todo custo, guiados por critérios analíticos de derivação formalista”. Assim a historiadora alude  ao questionamento do caráter efetivamente moderno da pintura de Portinari, feito pelo artista e historiador da arte Carlos Zílio, que reconhece a não-compreensão da espacialidade cubista por parte de nosso pintor.




Sem entrar no mérito dessa discussão formal, gostaria de observar a coexistência de  modernismos entre nós. Por volta de 1938, Portinari realiza murais para o edifício do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Gustavo Capanema. “Pau-Brasil”, “Cacau” e “Borracha” retratam ciclos econômicos através do foco sobre o trabalhador - e não sobre o patrão -, sobre o negro - e não sobre o branco -, como representante da produção. O artista assume assim postura corrente entre artistas e escritores da época, que, aparentemente coaptados pelo Estado, desenvolvem, pela própria natureza de sua atividade, antagonismos objetivos, não meramente subjetivos, com relação à ordem estabelecida. Um ano antes, o pintor Alberto Guignard realiza, por exemplo, “Os noivos”, tela que sugere de modo muito mais sutil uma sociabilidade própria. O firme enquadramento logo anuncia o gênero do retrato junto ao desenho impecável, às cores encantadoras. Enquadramento, no entanto, “montado para ninguém, isto é, para alguém sem nome ou posição, sem sobrenome e – também – sem lugar no panteão dos tipos nacionais”, conforme observa Flávio Rezende de Carvalho em sua dissertação (PUC-Rio, 2007) sobre Guignard. Afinal, um fuzileiro é um fuzileiro, é sua farda. A noiva é a noiva do fuzileiro e pode-se percorrer infinitamente a trilha dessa especulação sem encontrar nada que  incontestavelmente confira um lugar ao casal. Um casal anônimo apresenta a forma característica que o exército (ou marinha) assumem aqui no Brasil: menos um feitio técnico-científico - exigido da organização exército, de uma eficácia diante do inimigo real ou potencial obriga a uma atualização permanente de seu aparato tecnológico -  e mais próximo da função de integrar socialmente os pobres e os negros.

Os noivos, 1937
58 X 48 cm, Museus Castro Maya

Como observa Carvalho, a partir de 1931, o pintor trabalhou como professor de desenho na Fundação Osório que vem a ser, na sua origem, uma instituição de amparo aos órfãos da Guerra do Paraguai. Guerra que vem a ser, aliás, o incidente decisivo na formação de um exército com características específicas, quais sejam, a de “uma força obrigada à modernização em permanente tensão com estruturas oligárquicas estabelecidas. Exército e Marinha – já que se trata de um fuzileiro – são produto dessa guerra e o país inteiro, mais intensamente desde a República, experimentará os efeitos da sua afirmação”. Nessa direção, poderíamos considerar, com Carvalho, o quadro como uma “alegoria ladinamente maldosa da 'conjuntura', uma fina observação de caráter sociológico, antropológico, histórico”. Mas tal constatação não basta para nos aproximarmos da questão de Guignard. Por que um artista como Guignard pintaria essa alegoria travestida de retrato ou vice-versa?

Sigamos então o raciocínio de Carvalho. Antes de qualquer consideração sobre seu significado, a pintura constitui um retrato. Esta sua intenção - problema artístico e filosófico que precede a experiência, e que desde o final do século XVIII passou a ser o problema central da teoria da arte, pois dela nasce a “forma”.  De que conjunto de intenções nasce a forma de Guignard? Por certo não se trata de um projeto nacional como o de Portinari. Afinal, vemos em “Os noivos” “um nacional que necessita de constante reafirmação, como se o Brasil e a cristandade estivessem sempre a um passo de sumir diante de nossos olhos”. Nela vemos um Brasil que necessita de marcas externas da sua identidade, e somente a partir dessa “carência revelada pela abundância”, podemos ligar o projeto de Guignard, sua intenção, a um sentido, ainda assim crítico, de nacionalidade. Definitivamente sua intenção não era a de educar o povo através da pintura, ou exaltar o tipo nacional.

Com perspicácia Carvalho observa algo que sempre senti em relação aos retratos de Guignard:  trata-se de pinturas que parecem sorrir – não são os personagens que sorriem para nós -, como que a compartilhar nossa nova condição de indivíduo. Nessa direção ao autor remete à questão do valor de culto e do valor de exposição de Walter Benjamin, que, por sua vez, remonta à gênese do processo artístico para afirmar que a arte nasceu como valor de culto, quando algumas obras eram então concebidas não para serem vistas, mas para fins mágicos ou religiosos. À medida que o valor de exposição foi-se afirmando, que as obras começaram a ser criadas para serem vistas, o valor de culto recuou, mas não sem luta. A fotografia foi o golpe de misericórdia, mas mesmo ela, ao menos no seu início, manteve um “culto da saudade, consagrado aos amores ausentes ou defuntos. A aura acena pela última vez na expressão fugaz de um rosto, nas antigas fotos” (Benjamin). Isso acontece porque aquela foto pertence a alguém cujo ente querido ou objeto amoroso está ali retratado. Se a foto pertencesse a outra pessoa, o indivíduo retratado não teria nenhum valor de culto para quem a observasse ou, ao menos, o teria bastante diminuído e transformado. Seria, no máximo, um culto ao passado. Essa é a característica dos retratos, que estabelecem essa relação pessoal – ou este valor de culto – entre seu proprietário e o retratado.

“É a esse repertório propriamente fotográfico que 'Os noivos' parece evocar. Todas as citações propriamente pictóricas já destacadas não estão ali de modo a tornar o quadro reativo a um sentido temporal contemporâneo de si mesmo. Quer dizer, o quadro não se aliena da sua condição histórica, antes anota e comenta, através da pintura, sua própria superação técnica. Ele permite entrever uma tentativa que amplia o significado do gênero, seja no anonimato dos personagens, seja na iconografia negativa do fundo. “Os noivos” parece ser o retrato de todos os retratos, isto é, a representação de um mundo em que os significados repousam no sujeito, seja ele quem for.”



Fernanda Lopes Torres é pesquisadora e historiadora da arte. Graduada em Desenho Industrial pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, tem mestrado e doutorado em História Social da Cultura pela PUC-Rio. Atua hoje como pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) e professora do Instituto de Artes da UERJ, tendo publicado artigos em revistas universitárias e na revista Novo Estudos do CEBRAP.

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