sexta-feira, 5 de novembro de 2010

I WANT YOUR LOVE


I WANT YOUR LOVE E O
DESMAPEAMENTO DO HOMEM CONTEMPORÂNEO

I want your Love impressiona logo assim que o assistimos. Travis Mathews, o diretor, faz uma excelente contribuição para os queer studies quando tenciona questões caras a esses estudos, como as de sexualidade. Diferentemente dos essencialistas, que creem em uma natureza humana estática, determinada pela estrutura genética, Mathews rasura o conceito de masculino mostrando que a sexualidade não é algo biologicamente definido, mas, culturalmente e socialmente determinado por construções conceituais que tem sofrido enormes mudanças e transformações através da história.

Começamos dizendo, pois, que I want your love ao fazer uma crítica radical da categoria de identidade masculina interroga, ao mesmo tempo, nossa própria experiência contemporânea, mais desviante, desenraizada, mais difusa, mais confusa, mais plural.

Esse texto caminhará nessa direção, tentando localizar esses corpos dentro da grande aventura contemporânea, como contrapartidas ao corpo absoluto, resultado feliz de todas as normas regulatórias reiteradas e mantidas engenhosamente por inúmeras instâncias, por meio de uma multiplicidade de práticas, discursos e estratégias, que resultam em verdadeiros corpos dóceis, pensei como Foucalt.

Nessa sociedade singular destacamos o corpo submisso à racionalidade, o corpo rotineiro e previsível, vigilante e controlado. O homem aqui desde jovem é submetido a constantes provações de virilidade, observando-se uma preocupação que evidencia traços de misoginia e homofobia. A negação tríplice mencionada por Badinter define bem a particularidade da aquisição dessa identidade masculina: “Por três vezes, para afirmar uma identidade masculina, deve convencer-se e convencer os outros de que não é uma mulher, não é um bebê e não é um homossexual”. (Badinter 1993: 34).

Assim, o “macho divinizado” se torna o modelo de supremacia absoluta do masculino que vigorou na sociedade ocidental de maneira inquestionável durante muito tempo, ou seja, todo esse projeto prevê uma sequência, uma viagem, como pensou Guacira Lopes Louro
“precisa e coerente entre sexo, gênero e sexualidade. O sexo (definido como macho ou como fêmea) deverá indicar um gênero (masculino ou feminino) e implicar uma única forma de desejo (dirigida ao sujeito de sexo/gênero oposto). O ato de nomear o corpo acontece, portanto, no interior de uma lógica binária que supõe o sexo como um dado anterior à cultura e pretende lhe atribuir um caráter definitivo e a-histórico” (2010:205).

Considerando, no entanto, as transformações culturais que tão reconhecidamente afetam a vida contemporânea, é importante sustentar que a diversidade de atores é um elemento fundamental para compreender as dinâmicas sociais. Nesse sentido, o lugar da identidade masculina está da mesma maneira implicada nessas transformações. O papel masculino teve seu lugar de autoridade tradicional na história, assumindo certos espaços de autoridade e poder, contudo essa identidade está em disputa de modo mais categórico e o desmapeamento contemporâneo inaugura uma série de questões que ainda não estão resolvidas. Por isso, o curto volume de pesquisas sobre este sujeito deixa um campo de investigação ainda inexplorado.

Nesse mesmo cenário líquido, os meios de comunicação da contemporaneidade exercem um grande papel para a desestabilização das identidades culturais. Seu caráter disseminador de informações é investido de fortes intencionalidades e exerce influência poderosa e permanente na constituição do aparecer público.

Em I want your Love (2009) dois amigos, interpretados por Jessé Metzger e Brenden Gregory, negociam de maneira lúdica e em forma de brincadeira, a maneira própria de fazerem sexo juntos pela primeira vez. Da sutileza de olhares à luta de corpos másculos, passando por grandes crises de riso, aos poucos, vão se entregando entusiasticamente ao sexo. Entre o sexo real e a honestidade da interpretação naturalista dos atores, Mathews vai embaralhando os limites entre o erótico e o pornográfico e desafia os conceitos estratificados de sexo e gênero.

Quando o diretor Travis Mathews propõe romper os espaços fixos e finitos da identidade masculina, partindo do princípio de que a sexualidade não possui significados a priori, mas significados relacionais que se constroem, narrativas que se produzem, questiona o caráter unitário da subjetividade e, principalmente, as idéias liberais referentes à autonomia do indivíduo e o conceito de comunidade com base no princípio da uniformidade. Os corpos livres de I want your love ampliam nossa percepção sobre a experiência humana para além das regras e normas. Quando esses corpos param de se preocupar com a cartografia do desejo, assumem-se como estranhos, esquisitos, arriscam novos mapeamentos e, como navegantes em mares nunca d’antes navegados, descobrem-se maiores, estrangeiros, diferentes. Características assumidas sem receios ou constrangimentos, por quem se considera queer.

Com Guacira Lopes Louro, concordamos que:
“para esses, parece que importa mais vagar, descompromissada e livremente, do que chegar a algum destino; eles/elas desejam experimentar, perder-se no caminho, errar mais do que cumprir um trajeto e fixar-se numa posição. Talvez porque queer seja melhor compreendido se for tomado como uma nova posição, como um jeito de estar e de ser, e, vez de se considerado uma nova posição de sujeito ou um lugar social estabelecido. Queer indica um movimento, uma inclinação na qual parece implícito um tom perturbador. Mais do que uma nova identidade, queer sinaliza um modo de estar no mundo” (LOURO, 2010, P. 210).

Surgida a partir dos Estudos Culturais, fruto de uma inseminação acadêmica que combina teoria social, arte contemporânea, produção artística e ativismo, portanto, longe da seara da Sociologia e Antropologia, a Teoria Queer já tendia a priorizar a análise de obras artísticas e midiáticas como é I want your Love.

A perspectiva queer permite-nos uma análise crítica das questões acerca das relações, representações e discursos relacionados ao sexo, sexualidade e gênero de forma a não reduzirmos a complexidade de tais questões a binarismos simplificadores como macho/fêmea, heterossexualidade/homossexualidade ou masculinidade/feminilidade.

Além disso, os estudos contemporâneos acerca da masculinidade são um campo fértil para o debate sobre a mídia e sua influência na constituição dos estilos de vida. A grande rede, em especial, é um espaço de frescor e reciclagem de referências num momento em que as identidades tornaram-se elementos de extrema fragilidade frente ao líquido mundo moderno das sociedades democráticas. Como sintetiza Hall (2003: 8): “Um tipo de diferente mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais”.

DESMAPEAMENTO PÓS-MODERNO
O advento de teorias pós-modernas, pós-estruturalistas e pós-feministas tornou possível o surgimento de novas interpretações sobre a vida social. A experiência individual, nesta perspectiva, é aberta à experimentação e as identidades se fragmentam, se flexibilizam diante de um universo cultural em constante mutação. A velocidade acelerada do processo de modernização da identidade masculina acabou por resultar na aquisição de novos ideais e identidades que não vieram exatamente alterar os antigos, mas se sobrepuseram a eles.

Assim, em tempos líquidos e incertos o desmapeamento gera desorientação e conflito, além do aparecimento da indagação “quem é o homem de hoje? Ou, como refletir no contemporâneo a masculinidade?

Mais uma vez com Guacira Lopes Louro:
“Entre tantas marcas, ao longo do século, a maioria das sociedades vem estabelecendo a divisão masculino/feminino como uma divisão primordial. Um divisão usualmente compreendida como primeira, originária ou essencial e, quase sempre relacionada com o corpo. É um engano, contudo, supor que o modo como pensamos o corpo e a forma como, a partir de sua materialidade “deduzimos” identidades de gênero e sexuais seja generalizável para qualquer cultura, para qualquer tempo e lugar” (LOURO, 2004, 76).

Para pensar a masculinidade, em I want your love, utilizaremos o conceito de performatividade de gênero, desenvolvido por Butler, em seu “Problemas de Gênero” (2008). Para a autora(1) não há corpos que estejam fora do discurso de representação: não há corpo pré-discursivo. O corpo só se torna inteligível quando inscrito dentro de categorias de gênero bem definidas, o que ocorre mesmo antes do nascimento de uma criança, quando destacamos se o feto será menino ou menina. Butler não vê o sujeito livre para evitar as normatizações, muito ao contrário, o sujeito é constituído a partir dessas normas e mediante sua repetição. Os corpos se tornam textos, falas que se constroem para serem percebidas e reconhecidas. Assim, Butler aplica o sentido amplo de performatividade à produção da identidade, que implica sua concepção como resultado de um processo de repetição.

Se para a autora norte-americana, o gênero constitui-se de um modo performativo, isto quer dizer que não há uma substância essencialmente “feminina” ou “masculina”, ou seja, ela desloca a ênfase na identidade como descrição, como algo pronto, “algo que é” para a idéia de “tornar-se”, dando ao conceito de identidade um sentido de movimento e transformação.

Com isso a noção de performatividade de gênero pode contribuir - e muito - para a desmistificação da heterossexualidade compulsória. À medida que I want your love assume a identidade de gênero enquanto performance, elucida a possibilidade da gradual liquefação da fronteira dualista entre feminino e masculino e esta desmistificação significa a produção de diferentes identidades não categorizáveis.

Ciente disso, Travis Mathews, junto com Butler, buscou desvelar os mecanismos sociais que estabelecem imposições identitárias e colapsou a distinção entre sexo e gênero de modo a argumentar que não há sexo natural, pré-existente à sua inscrição cultural. O gênero não é algo que se é, mas algo que se faz, um ato, ou melhor, uma sequência de atos.

I want your love é uma potencialidade variante que enriquece o discurso contemporâneo sobre identidade e sexualidade e oferece aos agentes a possibilidade de viver novas maneiras de ser homem.

NOTA:
(1) Judith Butler (24 de fevereiro de 1956, Cleveland, Ohio) é uma filósofa pós- estruturalista estadunidense, que contribuiu para os campos do feminismo, Teoria Queer, filosofia política e ética. Ela é professora da cátedra Maxine Elliot no Departamento de Retórica e Literatura Comparada da University of California em Berkeley.

Bibliografia
BADINTER, Elisabeth. XY: sobre a identidade masculina . Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
LOURO, Guacira Lopes. Um Corpo Estranho: Ensaios Sobre Sexualidade e Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
____________________. Viajantes Pós-Modernos II. In: LOPES, Luiz Paulo da Moita & BASTOS, Liliana Cabral (orgs). Para além das identidades – Fluxos, movimentos e trânsitos. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2010.
OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Ed. UFMG/ IUPERJ, 2004.



Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

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