O luto no Sertão
É impossível não notar o caráter social que perpassa os poemas de João Cabral. Eles, de alguma maneira, denunciam as mazelas, o descaso das autoridades com o Sertão, além do sofrimento causado pelas adversidades climáticas que, às vezes mais brandas, outras vezes mais severas, atingem ao povo sertanejo. Talvez por estes motivos, e por outros de escolha pessoal, resolvi apresentar a vocês o poema “O luto no Sertão”:
O luto no Sertão
Pelo Sertão não se tem como
não se viver sempre enlutado;
lá o luto não é de vestir,
é de nascer, com luto nato.
Sobe de dentro, tinge a pele
de um fosco fulo: é quase raça;
luto levado toda a vida
e que a vida empoeira e desgasta.
E mesmo o urubu que ali exerce,
negro tão puro noutras praças,
quando no Sertão usa a batina
negra-fouveiro, pardavasca.
Ao ler este poema, percebemos claramente o retrato da vida árdua dos sertanejos residentes no Nordeste brasileiro, ou de quaisquer pessoas que vivam em lugares nos quais há condições semelhantes, como, pro exemplo, em muitos países africanos e americanos.
O sertanejo em “O luto no Sertão” é retratado como alguém que nasce fadado à morte. Mesmo que esta não lhe atinja prontamente, ela está em seu entorno, vitimando pessoas através da fome, de doenças, da sede. A seca não proporciona água, não permite a vida de animais necessários à sobrevivência, impossibilita a plantação para consumo e, consequentemente, diminui a chance de sobrevivência humana. O luto é como tatuagem, marca inapagável, inextinguível, tristeza constante “é quase raça”, carregado durante toda a vida “e que a vida empoeira e desgasta”. O desgaste se dá, a meu ver, pelo uso em excesso desta “roupa”. A recorrência do encontro com o indesejável o torna quase que banal, de maneira que, nem mesmo o negro do Urubu, ave conhecida por tripudiar, festejar ao deparar-se com a morte que lhe fornece alimentos, é puro, na verdade, este negro é marcado pelo excesso do uso, da recorrência, do encontro com o sofrimento.
Obviamente, nos perguntaremos quais as causas da morte que espreita a vida a todo o momento no Sertão. Algumas causas já foram apontadas. Entretanto, existem aquelas que não são causadas pela natureza, porém, pelo descaso das autoridades ou mesmo do homem pelo homem, pela individualização excessiva, pelo egoísmo. E desde quando João Cabral de Melo Neto publicou este poema, mais especificamente em 1985, o que mudou? O que poderia ser melhor? O que deverá ser diferente? E o que podemos fazer para ajudar na mudança?
Questionamentos estes que ficarão em aberto, para que possamos avaliar tudo e todos ao nosso redor e, ainda melhor, possamos nos reavaliar. É bastante recorrente, quase clichê, propor estas reflexões para o final de um ano e início de outro, que pode e deve ser melhor. No entanto, não é este clichê necessário?
A poesia cabralina é rica em sentimentos, ritmo, reflexões. Além disso, ela nos proporciona o encontro com o real, que muitas vezes choca, porém é necessário que ele nos seja apresentado, para que saiamos da individualidade cruel imposta pela vida contemporânea e que é, de alguma forma, compartilhada e aceita por todos.
Rodrigo C. M. Machado é Graduado em Letras pela Universidade Federal de Viçosa.
3 comentários:
Bem coeso e sua escrita retrata realmente uma realidade que verificamos na obra desse grande escritor brasileiro. Parabéns!
3 de janeiro de 2011 às 22:06Texto excelente!!!!!!
4 de janeiro de 2011 às 21:25Que tal identificar as obras ali colocadas?
É sempre bom deixar referência para pessoas de outras áreas...
Este poema faz parte da obra Agrestes do João Cabral de Melo Neto. Desculpe-me pela falta de referências. A partir de agora, as colocarei, prometo.
5 de janeiro de 2011 às 13:04Postar um comentário
Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.