sábado, 26 de março de 2011

A poética do cotidiano em Cesário Verde





Quando iniciei a pensar sobre o que eu escreveria nesta matéria, percebi que ainda não havia, de alguma forma, homenageado os poemas de Cesário Verde, que é um cânone na literatura. Vale ressaltar que o poeta em questão é considerado como um precursor da poesia produzida em Portugal no século XX. Fernando Pessoa foi um grande Leitor da poesia cesariana, uma vez que Cesário é considerado o predecessor do heterônimo pessoano Álvaro de Campos, além de ser citado várias vezes por outro heterônimo de Pessoa, Alberto Caeiro.



Todas as vezes que eu havia ouvido algo sobre a poesia de Cesário Verde, me diziam que ela é extremamente realista, principalmente, pelas observações que o poeta fez acerca do quotidiano. Como a poesia em geral me é muito cara e gosto muito de conhecer bons poetas, adquiri a obra deste artista da palavra e, como eu esperava, encontrei retratado o mundo rotineiro que o poeta analisa e torna elemento essencial para suas composições líricas.

Tendo em vista a importância da poesia cesariana, hoje, apresentarei a vocês um excerto de um poema do qual gosto muito “O sentimento dum Ocidental”.

O Sentimento dum Ocidental


I

Avé-Maria

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

Neste poema, podemos observar as percepções do poeta sobre o cotidiano. Ele que “Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,/ Ou erro pelos cais a que se atracam botes.”, consegue observar e, a partir de suas percepções, descrever a realidade que lhe afigura, com ruas melancólicas, carros de aluguel a levar passageiros para a via férrea, os edifícios que se assemelham a gaiolas com viveiros. Enquanto isso, o eu lírico percebe também o interior dos hotéis, nos quais “num tinir de louças e talheres/ Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda”.


As mulheres que voltam à casa ao anoitecer, “Vêm sacudindo as ancas opulentas!”, algumas carregam na cabeça os filhos que estão fadados a naufragar nas tormentas. Elas, “descalças”, o dia todo a bordo das fragatas, retornam ao bairro onde “[...] miam gatas,/ E o peixe podre gera os focos de infecção”.

Nesta breve e, um tanto quanto, superficial visão a respeito do poema, pudemos notar que a visão do poeta, sobre o mundo que desenrola a sua frente, não detém-se somente em impressões ingênuas e destituídas de crítica. Ao contrário, muito do reconhecimento que Cesário Verde possui provém do fato de ele observar e analisar o mundo de acordo com suas impressões e imaginação. O quadro que emerge do poema acima é tão realista que podemos, em nossa mente, recriá-lo e observarmos o tom irônico que ele imprime à descrição.

O poema acima e outras composições líricas cesarianas podem ser encontrados neste sítio ou neste outro. Através deles, o leitor poderá conhecer melhor a lírica de Cesário Verde.




Rodrigo C. M. Machado é Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa.

4 comentários:

Unknown disse...

Rodrigo, eu adoro ler suas apresentações poéticas!

27 de março de 2011 às 19:32
Rodrigo Machado disse...

Que bom, Simone. Fico muito feliz que meus leitores apreciam minhas matérias. Espero continuar agradando a você e aos demais que lêem as apresentações que faço. Obrigado.

29 de março de 2011 às 22:06
Anônimo disse...

Muito bom :D

23 de maio de 2012 às 11:16
Unknown disse...

Adorei a sua interpretação, mesmo tendo sido feita de forma geral dessa primeira parte, trouxe elementos importantíssimos da poesia do Cesário. Eu gostaria de saber qual o nome dessa pintura que retrata as descrições do poema.

11 de novembro de 2015 às 16:08

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