sábado, 16 de julho de 2011

Aço e Censura na URSS.




A estrutura de coerção erigida durante o stalinismo foi uma prova da importância que o cinema tinha para os líderes do Partido.

Tais elementos possuem sua gênese nos primeiros anos da URSS. A partir de 1923, todos os filmes realizados na URSS tinham que ser aprovados pelo “Comissariado Estatal para o Repertório”, porém este órgão não censurava, nem modificava, o conteúdo dos filmes. A partir de 1929, esta situação foi se deteriorando: “No curso dos anos de 1930, a extensão do controle e intervenção tornou-se mais e mais extraordinária”. (KENEZ, 2003, p.126).

Ao mesmo tempo em que houve a planificação das atividades cinematográficas, órgãos específicos de censura foram criados, e os censores participavam de todos os estágios da produção cinematográfica. Em determinado momento, eles verificavam cada palavra do roteiro e participavam até da edição final. Neste mesmo ano, os roteiristas foram obrigados a submeter as sinopses ao departamento político criado, na maioria dos estúdios soviéticos. Estes departamentos continham membros do “Comissariado Regional do Partido” e do Komsomol, que representavam a juventude comunista. Uma vez aprovado, o script final era submetido a outra bateria de avaliações de censores que, ironicamente, eram chamados de editores e consultores.

Um dos aspectos cruciais da censura no cinema foi o controle dos scripts dos filmes. Isto resultou numa discussão pública em torno do papel autoral e hierárquico do diretor. Para os puristas do realismo socialista, o diretor não poderia modificar uma palavra sequer do roteiro pré-estabelecido. Abaixo, segue um editorial favorável a este ponto de vista e que foi publicado pelo jornal especializado em cinema, Iskusstvo Kinó, em 1937.

A própria compreensão do papel do roteiro (ou sinopse) final é diferente em diferentes fases do desenvolvimento da cinematografia. O desenvolvimento do roteiro, a serviço do diretor no momento da filmagem, é como um bloco de notas preparado para ele, pelo seu co-autor literário, seu ajudante. Mas no estagio final do desenvolvimento da cinematografia, o roteiro é independente, um produto completamente literário, indicando o que deve ser expresso no filme, suas idéias frame por frame, características e seu desenvolvimento... Esta luta (para o reconhecimento da importância do roteiro), é, apesar de belas palavras de ambos os lados, bem longa. As lutas continuam, acima de tudo, contra todas as sobrevivências do formalismo, que afirma a prioridade incondicional dos diretores contra todos os outros criadores dos filmes, principalmente contra o roteirista e o ator. (ISKUSSTVO KINO,1933 apud KENEZ, 2003, p. 128).


Este editorial ajuda elucidar o contexto em que a censura sobre o cinema foi operacionalizada na União Soviética. Primeiro, foi necessário relativizar a importância dos diretores. Nesta lógica, o papel do diretor resumir-se-ia ao de mero seguidor de uma narrativa pré-estabelecida pelo roteiro, quase que um ilustrador do que estava escrito. Talvez estes ataques violentos contra a possibilidade de intervenção autoral, em eventuais mudanças nos roteiros, por parte dos diretores, tenham sido feito para constranger grandes diretores soviéticos que tinham conquistado reconhecimento, justamente, pela capacidade de improvisação e experimentação nas mais diferentes etapas da produção cinematográfica.

Durante os anos de 1930, houve uma obsessão do Partido em controlar cada palavra dita nos filmes. Isto quase resultou na perda de função do diretor.
Os roteiristas, dentro da hierarquia fílmica, passaram a gozar de status igual ao do diretor, porém suas responsabilidades também aumentaram. Particularmente, para a classe dos diretores, isto foi muito doloroso. A impossibilidade de alocar, nos filmes, quaisquer elementos de subjetividade, tornou a tarefa da direção quase que impossível. Isto gerou, entre outras coisas, perda de dinheiro por parte dos estúdios soviéticos, pois diversos projetos finalizados não foram a público. De certa forma, Kenez (2003) está certo ao se referir a estas limitações do papel do diretor e a primazia do script como um comportamento “profundamente antitético à própria noção de arte cinematográfica.” (KENEZ, 2003, p. 128).

Durante o planejamento relacionado aos filmes produzidos durante os 1930’s, foram os próprios diretores que escreveram os esboços dos roteiros, porém uma analise posterior, feita nos altos círculos da censura, achou que os mesmos eram ideologicamente insuficientes. Para contornar a esta situação, a Sovkinó e a Soiuzkinó estabeleceram diversos contratos com escritores para o fornecimento de roteiros. Isto foi insuficiente para suprir a demanda, porque muito dos autores não entregaram os roteiros, e vários roteiros que foram entregues não obtiveram permissão para serem filmados. Por exemplo, de 1929 até 1933, foram realizados 58 contratos (CHUMIATSKII 1933 apud KENEZ, 2003). Só sete deles se transformaram em filmes completos. Entre estes números foram raros os roteiros que foram escritos por diretores.

Como percebemos a situação dos roteiristas também não se tornou fácil, apesar do ganho na hierarquia fílmica. Logo eles perceberam que havia uma distância enorme entre os roteiros em desenvolvimento e o produto final. A manutenção da idéia inicial era particularmente difícil, devido às várias etapas de censura que existia ao longo do processo de criação. Na filmografia soviética, existem muito exemplos de filmes finalizados, cuja edição final não agradou aos censores e que foram refeitos. Em alguns casos, este processo de refilmagem era feito diversas vezes. Segundo Kenez (2003, p. 129), um destes filmes “The Conveyer Belt of Death”, dirigido por Ivan Pyriev, foi refeito 14 vezes.

Esta situação era muito ruim para a indústria cultural soviética. Ao engavetar filmes que tinham sido finalizados e refazer diversos outros que não seguiram os parâmetros do realismo socialista, as metas de produção dos filmes, estabelecidas durante o plano qüinqüenal, não foram cumpridas. Segundo Ermolaev, em artigo publicado em 1938 no Pravda, durante 1935 e 1936, 37 filmes foram declarados impróprios, ideologicamente, gerando um “prejuízo de 15 milhões de rublos.” (ERMOLAEV, 1938 apud TAYLOR, 1988, p. 387).

Um dos exemplos de censura, que resultou em perda de dinheiro, mais discutidos entre os autores que se debruçaram sobre o cinema soviético, produzido durante os anos 30, foi “O Prado de Biéjin” (1937). Dirigido por Eisenstein, este filme foi inspirado originalmente numa obra literária de Turgiênev. Quem construiu o roteiro foi A. Rzheshievskii que tinha sido designado, para tal tarefa, pelo Komsomol. A indicação partiu deste órgão que representava a juventude comunista, porque o objetivo do filme era realizar uma película sobre a coletivização, destinada a uma subseção do Komsomol, denominada de Pioneiros, que congregava as crianças e adolescentes menores de 14 anos.

Apesar de sofrer forte influência da obra de Turgiênev, “O Prado de Biéjin”, teve sua história principal inspirada na trajetória do jovem herói soviético Pavlik Morózov. Segundo a historiografia soviética, Morózov denunciou o pai por falsificar documentos para favorecer alguns kuláks que eram antigos amigos de sua família. Após esta denúncia, seu pai foi preso. Revoltados com a atitude do garoto, os outros parentes o mataram. No roteiro escrito por Rzheshevskii, a história foi modificada. Agora era o próprio pai que matava o filho.

Eisentein gostou muito do roteiro. Ele achava que este tipo de filme poderia ser realizado sem o incomodo da censura, uma vez que no roteiro ficava explícito o caráter propagandístico da obra, porém ele estava enganado. Outro aspecto que ele achou interessante foi o minimalismo do roteiro, pois assim, ele teria alguma liberdade autoral, ocasionada justamente pela simplicidade do script que possibilitava expansões e modificações. Esta tentativa de Eisenstein de contornar a censura mostrou-se inócua e irônica. A ironia advém do fato de que este filme, quando comparado com toda sua obra, é o que melhor reúne as características do realismo socialista, porém, ao ser exibido para alguns membros do Politburo, o trabalho caiu em desgraça.

Segundo Kenez (2003, p. 136), os membros do Politburo não gostaram da atmosfera anárquica que Eisenstein imprimiu ao filme, cujo enredo se desenrolava no contexto da coletivização. Apesar de um esforço gigantesco do diretor que, entre outras coisas, “entrevistou 2000 crianças” para escolher o ator que interpretou Morozov, em março de 1937, a GUK paralisou o processo. Chumiatskii aproveitou-se desta fragilidade de Eisenstein e escreveu um violento artigo publicado em 1937 pelo Pravda, acusando-o de desperdiçar milhões de rublos com o projeto. Diversos ataques públicos seguiram-se ao de Chumiatskii. Muitos diretores famosos, como: Boris Barnet, Aleksandrov, Dovjenko acusaram Eisenstein de se promover em detrimento da comunidade, além, é claro, de classificar o filme como “formalista”. Abaixo segue um destes ataques:

Formalismo, formalismo e mais uma vez o formalismo. Esta é uma doença terrível com você. Formalismo condena à solidão. É uma visão de mundo pessimista, que está em conflito com a nossa época. Devo dizer que eu odeio o formalismo com todo meu ser, odeio os seus elementos de obras de arte, mesmo quando elas são feitas por mestres como você. Tornei-me seu oponente quando vi “Outubro”. Eu vi a revolução através de seus olhos. Eu não vi “O Prado de Biéjin”, apenas trechos sobre o fogo, mas foi o bastante. Como você poderia fazer uma fogueira, no episódio central na construção dos kolkhoz? Eu não entendo o que o artista quis dizer com isso. Nós sentimos que não podemos expressar em nossos filmes, mesmo uma parte dos grandes pensamentos que queremos expressar. Como você se atreve a dar uma parte do seu filme para mostrar o fogo, isso é o melhor testemunho da sua pobreza. Você disse que o fogo representava a luta dos camponeses dos kolkhoz contra a anarquia. Mas não-fascistas e capitalistas também combatem incêndios? Não há elemento socialista nisso. (MARIAN,1937 apud KENEZ, 2003, p.137).

Este artigo foi escrito em 1937, por Iu. Marian, diretor soviético pouco conhecido no Ocidente.
Nele, percebe-se o grau de virulência dos ataques que Eisenstein sofreu ao ter seu projeto interrompido. Marian era um stalinista convicto, seu discurso deixa claro que qualquer desvio experimental – formalismo – deveria ser encarado como uma doença contagiosa. A ressalva que ele faz, ao dizer que o “Formalismo condena à solidão”, é uma advertência neste sentido. Nesta lógica, uma vez “doente”, o paciente é obrigado a ir ao isolamento para se tratar. Apesar de que muitos stalinistas considerarem que alguns pacientes deveriam ser sacrificados para evitar a propagação da doença.

Estas críticas foram devastadoras para Eisenstein, pois duraram meses. Apesar de quase ninguém ter tido a oportunidade de assistir ao filme, ele se tornou um exemplo de desvio do realismo socialista e foi discutido, neste sentido, nas escolas de cinema e nos estúdios russos. Eisenstein só não sofreu represálias físicas, devido a sua reputação mundial. Já outros participantes da equipe, como o diretor geral da Mosfilm, não tiveram o mesmo destino e foram presos, por não terem interrompido o projeto.

Outros filmes deste período também sofreram as mesmas conseqüências de “O Prado de Biéjin”. Em um dos tópicos anteriores, citamos o caso de “Nova Moscou” (1938), mas outros tiveram a mesma sorte. “Pai e Filho” (1937) de Margarita Bárskaia e “A Lei da Vida” de Alexander Stolper foram alguns deles. O filme de Bárskaia não chegou a ser exibido, mas, mesmo assim, ela foi detida. Kenez (2003) destaca que Bárskaia, ao lado de Aleksander S. Kubar, foram os únicos diretores que foram presos durante os expurgos na indústria fílmica. Bárskaia em 1937 e Kubar em 1934.

Já o caso de Stolper foi sui generis. O seu filme “A Lei da Vida” (1940), chegou a ser exibido nos cinemas, mas depois de 10 dias de exibição, ele sofreu um ataque em um editorial publicado pela Pravda, e saiu de cartaz. Seu enredo construiu uma crítica direta a alguns lideres do Komsomol que abusavam do seu status.

Esta observação, feita por Kenez (2003), de que apenas dois diretores foram presos não atenua os impactos da censura na indústria cinematográfica. Se por um lado foi raro o número de diretores presos, outros profissionais da indústria fílmica foram presos às dezenas. Não obstante, a eficácia da censura impediu que o número de diretores presos aumentasse. Como já dissemos, a censura era feita em todos os estágios da produção, logo o produto final era resultado da aprovação dos censores, entretanto, em alguns casos, isto falhava, pois o cinema, ao contrário do que alguns dos ideólogos do realismo socialista pensavam, não é uma ciência exata.








Diogo Carvalho é Historiador pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente desenvolve mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (UFBA), onde realiza pesquisas sobre o cinema soviético. Membro da Oficina de Cinema-História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (UFBA). Trabalha com os seguintes temas: cinema, culturas, História, cultura digital, política humanidades e literatura beatnik. diogocarvalho_71@hotmail.com