terça-feira, 4 de outubro de 2011

If you fuck with the bull, you get the horn






Uma paisagem, um trem e a frase acima. Traduzindo para o português, poderíamos interpretá-la, literalmente, como “se você fode com o touro, ganha o chifre” ou, “se você mexe com o touro, você é chifrado” Deste modo, somos introduzidos a Mala Noche, longa-metragem de 1985, dirigido por Gus van Sant.

O filme está centrado na figura de Walt, dono de uma pequena loja e assumidamente homossexual. Ele tem uma grande atração por um rapaz mexicano, Johnny, que sempre está rondado por seu amigo Roberto, também imigrante. Gus van Sant acompanha, os diversos modos como Walt tenta seduzir o rapaz e convencê-lo a uma noite de sexo. A atração se transforma em uma espécie de obsessão; Walt sabe das condições precárias de vida de Johnny e inicia seus esforços oferecendo hospedagem (uma cama) e comida (e aqui, talvez possa se perceber o duplo sentido do verbo “comer”, a proximidade da gula e da luxúria fica nas entrelinhas da proposta).


Johnny é pintado como um elemento atraente pelo seu exotismo: de outra cultura (e, portanto, ao olhar norte-americano, um “chicano” por quem Walt arranha frases em espanhol) e mais jovem, fazendo com que o outro personagem diga que “ele deve ter dezoito, mas poderia ter dezesseis anos”. Interessante no que diz respeito à alteridade cultural é um dado referente à trilha sonora em que diversas vezes ouvimos ao fundo a música composta por Violeta Parra, “Gracias a la vida”, no Brasil muito conhecida pela interpretação de Elis Regina. Esta canção chilena é um ícone dentro do cancioneiro popular latino-americano, mas, de todo modo, não se trata de uma música mexicana. O que é possível concluir daqui, creio, é que, mais do que a representação de um homem “norte-americano” atraído por um “mexicano”, temos a atração pela figura emblemática do “latino”, e se assume justamente essa espécie de exotismo cultural.


“Mala noche” torna-se, portanto, uma narrativa sobre solidão e carência. Mais do que isso, é um filme sobre a passagem do tempo e seus efeitos, tanto num corpo que já se deitou com diversos outros, quanto na incessante e desesperada busca de alguém por um porto seguro. Filmando em 16mm e em preto-e-branco, Gus van Sant constrói rapidamente, e diversas vezes, algumas imagens que funcionam como possíveis metáforas para esse estado inquieto de Walt. Temos, por exemplo, logo no início do filme, Johnny correndo com um carro em um jogo de fliperama até que bate em outro e há uma explosão – o choque de corpos tão desejado. Mais à frente, em um jantar, existem planos que detalham o modo como o macarrão entra na água, ou ainda o modo como a água em si borbulha quando ferve no fogão. Trata-se de uma tensão sexual não resolvida e que impulsiona a série de tentativas e erros de Walt.


Johnny, por sua vez, também é incapaz de frear seu admirador. Por quê? Se ele o fizesse, seria impossível que essa espécie de compartilhamento da solidão tivesse continuidade. Mesmo que inexista vontade sexual dele junto a Walt, este segue ao seu lado e dá certo equilíbrio ao seu comportamento arredio e levemente “marinheiro”. Se Walt quer um “porto seguro”, Johnny prefere flanar e ser explorado como uma “ilha grande”. Momento interessante que demonstra isso é quando os três personagens centrais partem numa espécie de road trip. Johnny e Roberto deixam Walt fora do carro e partem. Eles, porém, são incapazes de largá-lo na estrada; andam por um curto percurso, param, fumam um cigarro e esperam que ele se aproxime do carro. Ao fazê-lo, novamente, correm e dão outra partida. São curtas ancoragens.

Seria simplista concluir, voltando à frase inicial do filme, que Johnny é o touro e Walt o atingido. Este sempre desejará àquele e não será contemplado com a reciprocidade (sexual, ao menos). Curiosamente, as únicas imagens coloridas do filme se dão quando Walt filma Johnny e seus amigos andando pelas ruas de Portland. É no olhar do personagem sobre os outros que a vida tem cores, ao passo que no olhar do diretor-narrador tudo é preto-e-branco e, sempre que possível, na penumbra.


Enquanto isso, Johnny, na sua busca por um ombro amigo, sempre se enxergará como mero objeto sexual, valorado em torno de quinze dólares, tal qual um michê. Substituído por Roberto, aquele que foi efetivamente companheiro de Walt por certo tempo, ele se vê sozinho e traído. Não lhe resta mais do que ter um ataque de homofobia e escrever à faca sobre madeira que o comerciante sempre será um “puto”, um “faggot”, um “viado”. O modo escolhido para lidar com o vazio, a confusão e a tristeza é justificar a perda do amigo em cima da orientação sexual de Walt e, quem sabe, talvez da sua própria


Temos, por fim, dois touros atingidos, com seus chifres quebrados. Um parado à beira de um caminho, em uma esquina, à espera de um novo tecido vermelho para se chocar; outro dentro de um carro, a correr, mas sem deixar de vista o retrovisor, que mostra o primeiro touro e outras esquinas onde novos quadrúpedes, com ou sem ferimentos, podem surgir.


Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (realizada na Caixa Cultural de Brasília e São Paulo, 2011), o Festival Brasileiro de Cinema Universitário, a Mostra do Filme Livre e o Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora.  Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). Realizador de curtas-metragens como "Boiúna" (2004), "A respiração" (2006) e "Preguiça" (2009).

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