terça-feira, 18 de outubro de 2011

Quizás, talvez, perhaps...



Cometerei um crime. Tentar comentar, mesmo que minimamente, um aspecto da obra de Wong Kar-Wai em cerca de seis mil caracteres, nada menos do que uma afronta pode ser. As breves linhas que seguirão partem da minha experiência recente em assistir a “Um beijo roubado” (cujo título em inglês é muito mais eficiente, “My blueberry nights”) e a um filme mais antigo de sua autoria, um dos responsáveis pela notoriedade de sua assinatura fílmica, “Felizes juntos”.

No DVD deste último, na indicação de sua censura, uma linha frisa que o tema da película é a “dificuldade amorosa”. Tendo em mente o lado clichê dessa afirmação, porém partindo dela, perguntemo-nos: como Kar-Wai constrói essas dificuldades?

Nos dois filmes citados temos, primeiramente, a questão do deslocamento geográfico. Os personagens de “Felizes juntos” partem de Hong Kong para a Argentina, enquanto o personagem interpretado pelo belo Jude Law é um inglês que habita Nova Iorque. Além disso, ambos giram em torno das tentativas e erros, das vontades não concretizadas. O inglês queria ser atleta, mas possui um pequeno bar; os dois primeiros chegaram visando uma ambientação outra para tentar recomeçar suas vidas juntos.


Um cinema do recomeço? Personagens que se encontram sempre em estados de transição, em lugares entre. Elizabeth, a personagem de Norah Jones, vaga pelos Estados Unidos, em busca de trabalhos que preencham sua mente e a mantenham sem tempo para pensar. Apenas dessa forma, com trezentos dias de muita informação e do intercâmbio com as mais diversas figuras, ela estará apta a um recomeço. Mas aqui se tem uma pequena diferença entre as obras. Se no filme mais recente o recomeço individual é um ponto de partida, na produção anterior é a possibilidade de recomeço para duas pessoas que impulsiona o andar. Os personagens de Wong Kar-Wai parecem estar vagando, como almas passantes. Eles não habitam espaços, eles apenas estão efemeramente dentro deles. Eles não são, estão. Os personagens de “Felizes juntos” não são gays – antes de tudo eles são humanos.

 Ponto que soma a essa leitura é a freqüência com que o diretor mostra os ditos “não-lugares”, os metrôs, os trens, os carros, os ônibus – os espaços de locomoção. Em “Um beijo roubado”, sempre que possível, intercalando as mensagens escritas entre Elizabeth e Jeremy, o diretor opta por mostrar-nos diversos ângulos do trem de Nova Iorque. Enquanto isso, em “Felizes juntos”, o metrô já pode ser lido como uma metáfora da mudança de estado, do momento de atitude perante os problemas. É levantar e fazer algo, é passar de uma estação (de um amor?) para outra ou para, pelo menos, a possibilidade de outra. É essa consciência de que (por mais cafona que possa soar) estamos no mundo meramente de passagem, assim como em um metrô, e precisamos enfrentar diversas estações. Se visarmos a Sé e estivermos na Luz, teremos de passar pela estação São Bento. Porém, chegar à Sé não é a finalidade última – sempre teremos o metrô. Bastará força para entrarmos novamente nele e seguirmos nossa viagem. Para onde? Nenhum lugar, talvez.




Partindo dessa possibilidade, desse ser levado pelos fatos, seus personagens podem soar vazios. Eu tendo a achar que este diretor, por outro lado, preenche seus personagens de lacunas, deixando a nós, enquanto espectadores, a densa missão de recodificarmos esses espaços. Talvez possamos dizer que eles são permeados por vazios, mas não que os mesmos são vazios em si. Essa forma de narrar em cinema talvez confunda-nos por acabar sendo um contraponto às massificadas narrativas do cinema contemporâneo, com personagens permeados por medíocres destinos e personalidades muito bem desenhadas. Obras em que os personagens não têm nós.

Wong Kar-Wai tem uma poética permeada por nós e, sutilmente, deixa-nos a opção de desatá-los. Ou então podemos seguir fruindo seus planos sem tentar também dominar os significados destas cores vivas, destas bruscas mudanças de velocidade das imagens, destes ângulos agudos e destas trilhas sonoras com canções as mais diversas, escolhidas a dedo. Pois, pensando bem, da mesma forma que esses personagens vagam com suas ausências, não seriam estas imagens tomadas por uma imanência, sem qualquer necessidade de transcendências alegóricas?

Esse caráter concreto das imagens de seus filmes faz-me pensar em relações possíveis com o célebre pintor Edward Hopper, que comumente construía suas figuras interagindo em paisagens urbanas ou dentro de seus espaços privados. Algumas vezes seus humanos parecem manequins. Em “Chop Suey”, por exemplo, temos duas mulheres sentadas uma perante a outra. Elas conversam? As figuras de Hopper têm voz? Se tiverem, devem estar a fazer dois monólogos – mesma impressão que temos em alguns momentos dos filmes de Kar-Wai, devido às diferentes freqüências dos personagens apresentados. Os mais interessantes momentos de interpessoalidade em Kar-Wai dão-se nas sutilezas, como no cigarro fumado em conjunto ou nas feridas de diferentes pessoas que sangram simultaneamente. Haverá espaço para uma futura cicatrização também? Isso, novamente, cabe a nós rascunharmos, tendo como base os rascunhos de atitudes de seus personagens.

Chegando já ao fim desta argumentação, acho que cabe lermos as obras de Kar-Wai junto a, por exemplo, a música cantada por Nat King Cole e incluída na trilha de “Amor à flor da pele”, “Quizás”. É um cinema do talvez, das possibilidades, das trilhas de leituras. Cada espectador que siga uma, assim como os personagens criados por ele. Incertezas tanto na consciência desses personagens perante suas atitudes quanto por parte nossa. Será que é nessa estação que queremos descer, será que é com essa pessoa que queremos dividir nossas inseguranças? Talvez, quizás ou até mesmo perhaps (como canta o Cake).

Uma amiga minha costuma dizer que, quando uma vez, durante uma discussão, foi perguntada “Aonde você quer chegar com isso?”, simplesmente respondeu “Eu só quero ir”. Talvez essa seja a melhor chave para a leitura dos filmes de Wong Kar-Wai.





Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (realizada na Caixa Cultural de Brasília e São Paulo, 2011), o Festival Brasileiro de Cinema Universitário, a Mostra do Filme Livre e o Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora.  Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). Realizador de curtas-metragens como "Boiúna" (2004), "A respiração" (2006) e "Preguiça" (2009).

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