terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Passagem






Uma circunferência e duas linhas. Um relógio? Não exatamente; um dos ponteiros é curvilíneo, ao passo que na extremidade do outro há um objeto que se assemelha a uma roldana. A base é em metal e, em verdade, uma desbotada caixa de biscoitos. Sua contemplação não se dá de modo vertical tal qual um relógio de parede, visto que este objeto se encontra sobre um cubo branco e dentro das paredes de um museu. O ato de observação, então, é semelhante ao de uma escultura e distante ao de uma pintura.

De todo modo, podemos comparar este objeto artístico, poeticamente, a um relógio e, para ser mais preciso, a uma ampulheta. Milton Marques cria um objeto de indício horizontal da passagem do tempo. Areia cobre esta superfície circular. Sobre a roldana de um dos elementos há um relevo com a frase que intitula o trabalho, “o esquecimento é destruir, não construir”. Com um mecanismo elétrico ligado, um movimento curvilíneo se inicia sobre a areia. Palavras são desenhadas sobre o plano. Enquanto isso, logo ao lado, o outro ponteiro limpa o recém-escrito.

Esse trajeto se dá de modo lento; é preciso um pouco mais de um minuto para que haja o apagamento relativo ao ponto oposto do diâmetro desta área. O espectador, portanto, toma este tempo para acompanhar o já anunciado: o desaparecimento da palavra, da forma, da construção. Há também a fruição do lento enferrujar dessa caixa de biscoitos, um dia viçosa e agora palco para este caderno sem pautas.  

“Esquecer é destruir”, porque para se construir é preciso lembrar. Mas existiria esquecimento sem lembrança prévia? Será possível interpretar o esquecer e o lembrar como transformação e não como um ato de erguer e desabar? A frase proposta pelo artista parece mais um estopim para a reflexão do que algo pronto e certeiro. Não à toa, no desenrolar desta imagem, novas frases são compostas como “não construir o esquecimento” ou “construir o esquecimento é destruir”. A leitura é fugidia assim como a estabilidade de qualquer marca na areia o é. Nesse sentido, o ponteiro-borracha de Milton Marques pode ser lido como um micro-vendaval, prestes a locomover pelas bordas do mar aquilo que um dia foi rocha, foi sólido.

A passagem de um estado físico ao outro, a passagem do tempo: o homem, seu entorno e sua inevitável desintegração. 

(registro do artista em vídeo: http://vimeo.com/25787839)

(Esta obra se encontra no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, a integrar a exposição "Os dez primeiros anos", em cartaz até 26 de fevereiro de 2012).





Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (realizada na Caixa Cultural de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, 2011). Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP).

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