Passagem
Uma circunferência e duas linhas. Um relógio? Não
exatamente; um dos ponteiros é curvilíneo, ao passo que na extremidade do outro
há um objeto que se assemelha a uma roldana. A base é em metal e, em verdade, uma
desbotada caixa de biscoitos. Sua contemplação não se dá de modo vertical tal
qual um relógio de parede, visto que este objeto se encontra sobre um cubo
branco e dentro das paredes de um museu. O ato de observação, então, é
semelhante ao de uma escultura e distante ao de uma pintura.
De todo modo, podemos comparar este objeto artístico,
poeticamente, a um relógio e, para ser mais preciso, a uma ampulheta. Milton
Marques cria um objeto de indício horizontal da passagem do tempo. Areia cobre
esta superfície circular. Sobre a roldana de um dos elementos há um relevo com
a frase que intitula o trabalho, “o esquecimento é destruir, não construir”.
Com um mecanismo elétrico ligado, um movimento curvilíneo se inicia sobre a
areia. Palavras são desenhadas sobre o plano. Enquanto isso, logo ao lado, o
outro ponteiro limpa o recém-escrito.
Esse trajeto se dá de modo lento; é preciso um pouco mais de
um minuto para que haja o apagamento relativo ao ponto oposto do diâmetro desta
área. O espectador, portanto, toma este tempo para acompanhar o já anunciado: o
desaparecimento da palavra, da forma, da construção. Há também a fruição do
lento enferrujar dessa caixa de biscoitos, um dia viçosa e agora palco para
este caderno sem pautas.
“Esquecer é destruir”, porque para se construir é preciso
lembrar. Mas existiria esquecimento sem lembrança prévia? Será possível
interpretar o esquecer e o lembrar como transformação e não como um ato de
erguer e desabar? A frase proposta pelo artista parece mais um estopim para a
reflexão do que algo pronto e certeiro. Não à toa, no desenrolar desta imagem,
novas frases são compostas como “não construir o esquecimento” ou “construir o
esquecimento é destruir”. A leitura é fugidia assim como a estabilidade de
qualquer marca na areia o é. Nesse sentido, o ponteiro-borracha de Milton
Marques pode ser lido como um micro-vendaval, prestes a locomover pelas bordas
do mar aquilo que um dia foi rocha, foi sólido.
A passagem de um estado físico ao outro, a passagem do tempo:
o homem, seu entorno e sua inevitável desintegração.
(registro do artista em vídeo: http://vimeo.com/25787839)
(Esta obra se encontra no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, a integrar a exposição "Os dez primeiros anos", em cartaz até 26 de fevereiro de 2012).
Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (realizada na Caixa Cultural de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, 2011). Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP).
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